11 julho 2005

Caras & Coroas

Na Grécia antiga, o amor entre homens, ou mais precisamente, o amor entre homens mais velhos e rapazes mais jovens (erastes e ermonenos, amante e amado, respectivamente) foi aproveitado para o bem do Estado e do crescimento intelectual e social dos rapazes. Esses relacionamentos eram vistos como ritos de passagem para a vida adulta. Embora não se tratasse estritamente de amor gay como nós o conhecemos hoje em dia, este tipo de relacionamento estava fundamentado na paixão erótica entre dois homens.

O termo homossexualidade, como é hoje entendido não se aplica à antiguidade grega por três razões: primeiro, a maioria dos gregos era bissexual. Segundo, o termo homossexual foi cunhado no século XIX e os conceitos “sexualidade” e “gay”, enquanto identidades sexuais são desenvolvimentos recentes, que surgiram apenas no século XX. A idéia do que seria um comportamento gay e a existência mesma, isto é, visibilidade de homossexuais, bem como o surgimento de reivindicações de direitos de gays e lésbicas na paisagem cultural mundial foi amplamente influenciada pelo ativismo gay iniciado no final da década de 1960. E por fim, e não menos importante, a paixão e amor erótico entre homens adultos (modelo do que seriam os relacionamentos homossexuais dos dias de hoje) era considerado de forma geral incomum e motivo de ridículo. Quando se listam exemplos importantes de tais relacionamentos na Grécia antiga não se podem negligenciar aqueles de Alexandre o Grande e seu amigo de infância Hephaiston, o herói mítico da guerra de Tróia Aquiles e seu melhor amigo e amante Pátroclos, Platão e seus poemas a efebos belíssimos. Já foi dito que Hérakles (Hércules) conseguia realizar melhor seus trabalhos quando seu amado Iaolos o observava.

Acreditava-se que o jovem se enriquecia pela amizade de seu amante e que este se esforçara para alcançar as alturas da realização humana, no campo de batalha, esporte, cultura ou profissão, para ser digno de seu jovem amado. Mantinha-se que estas parcerias de amantes tornavam os homens invencíveis na batalha. Quando amadureciam, escolhiam uma moça da mesma classe social e com ela se casavam.
Tais relacionamentos não eram exclusividade dos gregos antigos. Há relatos bem semelhantes, embora por motivações distintas, também entre culturas na África subsaariana, árabes desde os mouros no sul da Andaluzia , norte da África até o oriente médio, na Itália renascentista, Rússia, Índia, China, Japão, Oceania e nativos da América do Norte.

Há alguns anos, quando ainda era membro atuante do Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual resolvi participar de um dos inúmeros passeios em que se metiam os membros daquela instituição. Havia passeios que duravam um dia inteiro: pic-nics na Floreta da Tijuca, acampamento nos jardins do Museu de Arte Moderna, viagens a praias distantes, entre outros, que visavam principalmente a integração, desenvolvimento e troca de idéias e afetividade seja de cunho homo-afetivo, sexual ou não. Nessa época o nosso grupo andava muito próximo de um outro grupo de homossexuais que se reunia nos fins de semana em algum endereço furtivo do centro da cidade, chamado Caras & Coroas. Como próprio nome sugere, era um grupo bastante heterogêneo composto de pessoas que se encaixavam em duas faixas distintas de idade: uma de rapazes em torno de vinte e cinco anos e a outra, de senhores já beirando os sessenta. As reuniões desse grupo não possuíam o caráter acadêmico que permeava as nossas, oficinas de discussão de organização quase acadêmica, bem mais intelectualizadas; eles não discutiam temas importantes para a comunidade GLS e nem se empenhavam pela causa gay de forma geral. Como a Turma OK, o primeiro grupo de gays do Brasil, fundado em 1960, único compromisso daquela galera era o de se divertir. E muito.

Desta feita o grupo Caras & Coroas organizou um evento e nós fomos convidados a participar. Tratava-se de um passeio de escuna pela enseada de Itacuruçá, situada no litoral sul do Estado do Rio de Janeiro. A saída estava marcada para as nove horas da manhã e chegada, às seis da tarde; ou seja, um dia inteiro de farra nos aguardava. Paguei uma pequena quantia que cobria despesas de transporte por ônibus fretado até o ancoradouro e um bufê de frutas tropicais a bordo da embarcação. Eram dois ônibus de 45 lugares cada e estavam ambos lotados, com todos os assentos vendidos. A viagem não duraria mais que sessenta minutos até lá. Mal havíamos deixado a rodoviária no Rio e eu já me sentia adernando em águas clandestinas. Sabe aquela história de “entrei de gaiato no navio”? Pois é. É assim que me senti. Devido a minha idade, e o grupo era composto essencialmente por faixa etária, eu já estava deslocado: não era nem tão novo para ser considerado cara e nem tão senhoril para ser tido como coroa. De repente tive um pressentimento: vou sobrar.

Dentro do ônibus a algazarra era geral. Já de manhã cedo havia latas de cerveja rodando, brincadeiras, jogos, concurso de calouro, azaração, beijo na boca, gargalhadas em todos os decibéis, enfim, percebi: ou eu entro nessa ou estou frito. Como sempre, optei pela alegria. A chegada a Itacuruçá não foi menos barulhenta e alvoroçada. Graças ao bom Deus o ônibus parou já em frente da escuna e entramos todos sorridentes, querendo curtir ao máximo aquela manhã de sol e um céu azul que mata de inveja qualquer outro resort do mundo. Mesmo assim, tivemos que passar no meio de uma pequena multidão de pescadores que se aglomerava nas tábuas do píer, entrei de cabeça baixa tentando me proteger o mico que já se ensaiava antes mesmo de começar o passeio. Aquela hora de homens rudes nos recebeu com um coió de proporções épicas.

O dia foi maravilhoso, e o clima a bordo era de festa. A mesa de frutas tropicais estava linda, e eram todas quase tão frescas, limpas, fartas, cheirosas disponíveis e por que não desfrutáveis, quanto qualquer outra a bordo. Num certo momento a embarcação parou para nadarmos, pulávamos na água sempre aos berros e alguém imitou Esther Williams. Depois fomos para uma ilha e houve desfile de moda na areia da praia. O vestuário foi criativamente arranjado e produzido com folhas de bananeira, toalhas, toucas, bóias e diversos apetrechos encontrados na ilha ou a bordo. O dia transcorreu assim: num estado de felicidade infantil que há muito eu nem me lembrava que existia.

Pouco tempo depois de zarparmos, percebi que vários casais de idades díspares haviam-se formado. Pessoas que se sentavam em poltronas separadas do ônibus agora já se sentiam à vontade para demonstrar publicamente o afeto repentino surgido assim, assim um pelo outro. Alguns desses caras eram tão bonitos, jovens e fisicamente bem dotados que gastei muitos minutos observando de soslaio, tentado secretamente entender por que buscavam os carinhos que homens que poderiam ser seus pais com larga margem de segurança quando poderiam simplesmente estalar os dedos em qualquer boate ou praia da moda e teriam quantos homens quisessem a seus pés. Mas não importa, nada de tentar entender o que não tem explicação; teria talvez que me debruçar sobre as páginas escritas por aquele que tudo explica, Herr Freud, o pai da psicanálise. Mas não: o melhor era desviar a atenção e tentar curtir o passeio.

Na viagem de volta à terra, já de tarde, deram início a uma brincadeira que parecia ter o objetivo de arranjar os últimos casais que porventura ainda tivessem alguma chance de se formar: o correio sentimental. Distribuíram umas placas pequenas de papelão cada qual com um número, que deveriam ser usadas presas ao calção de banho durante tempo suficiente para que todos fossem vistos e identificados. O meu número era setenta e um, que em numerologia dava oito, que reduzido ao seu formador, ou seja, dividido por dois, dá quatro. Pensei: “quatro só pode ser número bom, por que é redondo e é par. É isso, eu quero um par. Acho que minha sorte vai mudar. Tem muita gente bonita aqui dentro e ainda disponível”.

Num determinado momento, apareceu um mestre de cerimônias que distribuiu cartões em branco e lápis para todos mandarem suas mensagens de amor aos seus eleitos. Passei a mão no que recebi e escrevi três cartões, três torpedos, o golpe de misericórdia derradeiro, a última bala da agulha. A viagem estava chegando ao final. Eu já não tinha muito tempo.Os cartões foram devolvidos e ele então passou a ler em voz alta o conteúdo das missivas para seus respectivos destinatários, interpretando a seu modo cada frase. Tudo muito engraçado, enquanto seguia lendo, olhos curiosos vasculhavam em volta escrutinando rostos e sungas, tentando identificar o número para qual ele lia e também o autor do bilhete anônimo. Tinha torcida, quem será!, quem será! Quando os casais e formavam havia torcida, palmas e mais risadas. Se o eleito aceitasse a cantada, os dois iam para o cento e se beijavam sob protestos e mais palmas. Ao final quase todos dos noventa participantes do passeio estavam devidamente casados.

Quando o mestre de cerimônias abriu o único bilhete destinado ao numero setenta e um, fiz cara de tímido, virei os olhos, pus a mão no rosto, olhei em volta, subi na mesa em que estava o mestre, perguntei quem será! quem será! e cantei whatever will be, will be. A nota dizia: “ao gato de sunga azul, numero setenta e um, sua beleza e sensualidade irradiam por toda a embarcação, quisera eu ser seu eleito. Decifra-me ou te devoro”. “Que se apresente então o meu príncipe. Tô no maior miserê!”, declarei. Todos riram muito da minha graça, mas o meu pretendente nunca apareceu. Acostumado ao fado que chamo de azar intrínseco de um sujeito cagado de urubu, resolvi evitar o constrangimento de ter sido o único a não receber um bilhete sequer e, astutamente, escrevera eu próprio aquele bilhete endereçado a mim. Ninguém jamais soube de mais esse golpe baixíssimo meu.

Na viagem de volta ao Rio, a disposição dos passageiros em suas poltronas havia se alterado completamente. Apenas uma meia dúzia de gatos pingados continuava tão só quanto quando havia embarcado de gaiato naquele navio: os muito feios, os muito velhos e os muito azarados. Que aconteceu com aquelas duas beldades que receberam meus torpedos, perguntar-me-ás? Na viagem de volta, sentavam-se juntos às poltronas 23 e 24, respectivamente.

taradoporpés30

Os tipos humanos que se encontram na internet são, para mim, o principal motivo por que passo tanto tempo conectado nas salas de bate-papo. Recentemente um sujeito que se fazia chamar por taradoporpés30 mandou para mim uma mensagem convidando para conversar. Curioso, quis saber o porquê de tal nick e ele me disse que gostava de pés. Com um pouco mais de conversa ele disse que é louco, alucinado por pés. Isso aguçou minha curiosidade, pois percebi se tratar de um caso típico de perversão sexual. Como ainda não havia conhecido nenhum perverso verdadeiro resolvi esticar o papo. Depois de pouco mais de meia hora ele pediu meu número de telefone, no que prontamente atendi. Ligou em seguida um rapaz de voz mansa, bastante educado, português correto de quem passou anos na escola e me convidou para ir ao seu apartamento.

Eu não tenho nenhum fetiche, e os pés, para mim, servem apenas a seu propósito mais elementar, mesmo assim concordei com sua proposta, em troca de uma entrevista. Ele perguntou se eu tinha calça preta social, sapato preto engraxado e limpo, e meias de seda transparente. Como não tinha certeza desse último ítem, pedi desculpas e fui dar uma olhada nas gavetas do guarda roupa. Para minha total surpresa encontrei um par que não via desde o tempo em que eu ainda usava terno para trabalhar. Munido do equipamento que meu interlocutor requeria, marcamos um encontro na esquina aqui de casa, às 11:30 da noite. Em poucos minutos apareceu um carro que julgo ter custado uns R$60.000,00. Sem mais delongas entrei, bati a porta e lá fui eu matar minha mórbida curiosidade, que também passa muito perto da perversão.

O rapaz dizia – e parecia - ter trinta anos, era branco, corpo ligeiramente acima do peso, compleição clara, rosto barbeado e cabelos pretos cortados curtos. Dizia ser formado em administração de empresas com mestrado na FGV e trabalhar para um jornal de grande circulação no Estado do Rio. Era visivelmente educado, calmo e aparentemente de boa índole. A viagem até o prédio onde reside não demorou mais que quinze minutos, durante o trajeto conversávamos de maneira descontraída e ele falava que era difícil encontrar pessoas dispostas a brincar com ele. Não duvidei.

Antes de tomarmos o elevador fiz questão de cumprimentar o porteiro e perguntar o seu nome. Nunca vi medida de segurança mais inepta, mas na hora não me ocorreu solução mais criativa: eu já estava praticamente dentro da toca do leão. Assim que chegamos ao seu apartamento na Praia do Botafogo reparei como estava bem decorado, limpo, perfumado, e cada coisa no seu devido lugar. A vista é realmente de tirar o fôlego e ficamos conversando alguns minutos antes de irmos para o quarto. Meu amigo estava visivelmente impaciente enquanto me explicava o que estava pretendendo fazer comigo lá dentro:
- Vou te amarrar à minha cama e fazer cócegas no seu pé.
- O que mais?
- Mais nada
- Vai me bater?
- Não
- Vai me machucar?
- Não
-Pretende me matar e esquartejar?
- Claro que não. Sou tarado, mas não sou criminoso.
- Promete?
- Prometo.
- Então vamos lá.

Antes de irmos para o quarto ele resolveu tomar um banho e eu resolvi ir até a cozinha para roubar um copo d’água e abrir o freezer. Quem sabe ali dentro não haveria uns corpos congelados? Não tinha nada. Tudo normal. Não era ali que ele os colocava. Depois, ele saiu sorridente e me conduziu ao quarto. Como não sinto tanto cócegas, calculei o nível de desconforto e lá fomos nós. O quarto também estava muito bem decorado e como nada ali me fazia supor que ele matava seus parceiros, deitei-me sobre seus lençóis de linho e me entreguei em holocausto. Por precaução resolvi fazer exatamente o que ele mandava, afinal perverso é perverso, por definição. Educadamente ele pediu que eu abrisse braços e pernas e os amarrou, cada qual a uma extremidade da cama com uma fita de velcro, preta como a calça, meias e sapatos que eu estava usando.

Quando ele baixou a iluminação do quarto senti sua respiração ofegante ficar mais e mais pesada. Ele colocou uma luminária pequena no chão e um banquinho em frente aos pés da cama, sentou-se totalmente vestido, tirou meus sapatos com cuidados e ficou apreciando meus pés calçados apenas com as meias de seda. Sua excitação entrou visivelmente em um crescendo até ele quase não mais resistir. De repente passou a fazer cócegas na sola dos meus pés, mas não como um adulto faria nos pés de outro adulto. A brincadeira que se seguiu mais parecia a de uma criança fazendo traquinagem pois enquanto fazia movimentos rápidos com os dedos de ambas as mãos ele os percorria ao longo da sola de meus pés e dava risinhos e produzia sons onomatopéicos com a boca que tentavam reproduzir tais movimentos. Levantei o rosto ansioso para ver melhor o que estava acontecendo lá embaixo, no que ele me repreendeu:
- isso aqui não é pra você ver. Você tem os pés mais lindos que eu já vi.
Obedeci calado e em seguida veio novo comando:
- agora finja que você está querendo se soltar das amarras, lute um pouco com as cordas. Geme!
“Que cordas? Este lacinho de velcro fajuto eu arrebento num puxão” Pensei. Novamente obedeci, mas dessa vez lutando para não rir e estragar de vez seu número. Naquela posição desvantajosa o que eu menos queria era desagradá-lo. Em menos de 10 minutos o jogo estava terminado. Ele se levantou, acendeu a luz de cima, deu um sorriso e disse:
- Pronto, terminamos.
Eu, que já estava me animando com a brincadeira, disse:
- Espera um pouco, não vai tirar as calças?
- Nada de tirar calças, já disse que terminei.
- E você gozou?
- Claro que gozei, estou todo melado aqui.
- Bom, então vá se limpar e vamos passar para a segunda parte: a entrevista.
Ele me desamarrou, me ofereceu água, eu aceitei e fui para a sala esperar que ele saísse do banheiro.

A teoria freudiana para as perversões preconiza que essas têm sua origem num período anterior à dissolução do Complexo de Édipo, o que deve acontecer por volta dos cinco de idade, segundo alguns autores. Ao constatar que a mãe não tem pênis (castração), o menino não consegue elaborar mentalmente essa falta e substitui o órgão faltoso por elementos que estejam dentro do escopo de seu universo visual: geralmente toma por objeto de seu desejo elementos e acessórios que se encontram abaixo da cintura dos adultos como meias, cintos, sapatos, mais comumente, mas também não raramente objetos de pelúcia, veludo, que tentariam imitar os pelos pubianos da mãe, ou tesouras. Essa última, escolhida mais pela sua utilidade e pelo movimento que pode significar o corte do pênis materno do que para cortar mechas de cabelo de suas eleitas. Quando o perverso o faz, está apenas dando a ela a sua finalidade: afinal para que serve uma tesoura? Além disso, contrariamente aos traços de perversão e fetichismo, em que o sujeito elege peças de vestuário como adereços ou mesmo utilitários nos jogos eróticos pré-coitais e que podem comparecer em outras estruturas psíquicas, o perverso estrutural substitui o sexo genital pelo gozo resultante de sua brincadeira, manipulação ou simples contato visual com o objeto eleito. De qualquer forma, ao atingir o orgasmo sem tocar o pênis, o perverso parece estar gozando como gozam as mulheres: sem pênis, mas no lugar anatômico do pênis.

Por ter passado também pela castração, uma menina raramente desenvolve a perversão estrutural na fase adulta. Dificilmente se verão mulheres perversas, e ainda menos fetichistas, assassinas em série e outras. Lacan contesta a afirmativa de Freud de que não existe perversão feminina argumentando que o fetichismo feminino é o próprio corpo, pois a mulher é seu próprio falo. O que o perverso faz é tentar destruir a prova da castração para fugir à angústia da falta do pênis na mãe.

Na sala, nosso amigo me relata que é filho único, teve infância feliz no bairro da Gávea, freqüentou bons colégios, sua mãe é professora. Porém, quando fala de seu pai é que as peças começam a se encaixar perfeitamente no quebra cabeça da origem das perversões. Seu pai é um próspero advogado que usa terno preto para trabalhar e que gosta de meia de seda preta. Me deu esse e outros detalhes sem se dar conta de que revelava de onde tudo saiu. Não precisava ter sido mais explícito. A brincadeira das cócegas me parece ser remanescente do período em que o rapaz se deu conta da “imperfeição” da mãe.

Em tom de brincadeira ele me relata que sua tara por meias pretas é tamanha que chega a colocar em risco o seu trabalho.
- E você, do que gosta? perguntou repentinamente.
- Homem, sexo trivial básico sem bizarrice, respondi sem pensar.
- Então imagina você chegar para trabalhar e ver cinco homens nus ao redor de uma mesa de reunião. É assim que me sinto quando tem reunião de diretoria. O tampo da mesa é de vidro e preciso me concentrar para não olhar para seus pés, pois se a calça lhes sobe um pouco nas canelas e mostra a meia preta eu fico tão excitado que me desconcentro e quase ponho tudo a perder. Um dia eles vão acabar desconfiando.

“Eles já devem saber, seu bobo. Alguém consegue esconder uma ereção?”, pensei.
O que a psicanálise conseguiu ao longo dos anos é tratar a perversão não como um desvio da norma, mas como mais uma alternativa para o sujeito vivenciar sua sexualidade e tem lutado para que esta não mais seja vista como uma aberração e tratada de maneira pejorativa. Afinal, a sexualidade não pode mais ser vista e classificada de maneira ortopédica e normativa simplesmente por que ela, assim como outros traços que definem o individuo, é única e só quem dá conta dela é o próprio sujeito.

04 julho 2005

Alma Aprisionada

A sexualidade humana sempre foi terreno arenoso, fluídico, sem contornos definidos e talvez por isso desperte o interesse de estudiosos há séculos. Muitas teorias têm sido propostas para explicar a orientação sexual de adultos. Nenhuma, contudo logra explicá-la em sua inteireza. Algumas possuem abordagens ontológicas bastante críveis, como aquela proposta por Sigmund Freud e seu famoso Complexo de Édipo. Formulada há um século, já foi alvo de todo tipo de crítica, mas ainda não foi desbancada. Outras teorias falam de um alelo no gene da sexualidade (sic) que deu errado, e há ainda aquelas abordagens de cunho religioso segundo as quais a reencarnação serve para expiar erros cometidos ou recompensar benfeitorias em outras vidas. As teorias são tantas quantas são as sexualidades. Particularmente, eu acho que cada um tem a sua sexualidade, então, classificações perdem todo o sentido.
Mas orientação sexual sozinha não abarca a complexidade de todas as nuances do sujeito do desejo. Outros conceitos como identidade de gênero conseguem esclarecer e complicar ao mesmo tempo duas das principais características do ser humano, qual seja a sua inserção na cultura e sua sexualidade.
Acostumadas a estereótipos heteronormativos comuns como o do homem que gosta de mulher e da mulher que gosta de homem, muitas pessoas não se apercebem da existência de outras variações ainda menos comuns que gays e lésbicas, como os transexuais homossexuais. Existem homens que gostam de mulher, mas que se sentem mulheres, então eles transformam seu corpo físico através de cirurgia radical para parecer mulher (emasculação, ablação de pênis, construção de neovagina, implantes de prótese de silicone nos seis, entre outros), é a chamada mulher transexual e continua gostando de mulher. Outra variação, menos comum é o contrário disso: mulheres que transformam seu corpo para parecerem homens, (com cirurgia para remoção dos seios e tratamento com injeções de testosterona), e continuam se sentindo atraídas por homens, são os homens transexuais.
A medicina, sempre ávida em categorizar, patologizar e curar o bicho humano não tardou a dar nome, definir e classificar a transexualidade. Com nomes pomposos essas publicações fazem o deleite da classe médica. Os livros e artigos de medicina ainda empregam o termo transexualismo.
O termo “transexualismo” aparece nos dois principais manuais de diagnóstico utilizado profissionais de saúde mental, da Associação Psiquiátrica Americana: Manual Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, atualmente em sua quarta edição) e n Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID, atualmente em sua décima edição). A CID-10 inclui o transexualismo, o travestismo bivalente e transtorno de identidade do gênero de infância em sua categoria distúrbio de identidade de gênero, e define o transexualismo como" desejo de viver e ser aceito como membro do sexo oposto, geralmente acompanhado por um sentimento de desconforto, ou inadequação ao seu sexo anatômico e um desejo de se submeter a cirurgia e tratamento hormonal para tornar o corpo tão congruente quanto possível, com um do sexo preferido.
O diagnóstico do DSM requer quatro componentes:
1 - Um desejo ou a insistência de que se é do sexo oposto biológico.
2 - Evidências de um desconforto persistente e sensação de inadequação ao sexo biológico do indivíduo
3 - O indivíduo não pode ser intersex (apresentando traços sexuais externos comuns aos dois sexos).
4 - Evidências de sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no trabalho ou na vida social.

Para mim, entretanto, essas classificações médicas são todas ineptas pois não conseguem ao menos arranhar a superfície de assunto tão delicado. Por isso, o importante é respeitar esse sujeito, independentemente de seu invólucro, aquele com o qual ele/ela se insere no mundo. Se tiver dúvida, se não souber qual pronome usar ao se referir a ele/ela, então pergunte. A pergunta, embora possa parecer tola procede, pois por incrível que pareça existem aquel@s que sentem que as terminologias masculino/feminino não abarcam a complexidade que el@s atribuem a seus seres e preferem ser chamados ao mesmo tempo de homem/mulher, ou nenhum dos dois. Por isso, não precisa entender, pois o tema é mesmo complexo e poucos especialistas sabem realmente com o que estão lidando. Apenas respeito para com essas pessoas já seria um bom começo.
Uso esta breve introdução para apresentar um fato que me ocorreu há alguns anos.

A reunião do Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual estava marcada para começar às 20h30min naquela sexta feira fria de junho, mas cheguei por volta das 20h00min porque precisava preparar umas coisas antes de começar a oficina. Naquela época eu estava responsável pelo café e os biscoitos e tinha que ligar a cafeterira botar a mesa, e organizar os detalhes que faziam nosso encontro semanal mais saboroso.

Desde a semana anterior sabíamos que iríamos conhecer e entrevistar um homem transexual. Mesmo sem saber exatamente o que isso queria dizer, cheguei cheio de expectativa, sabendo que ia conhecer algo inusitado. Eu tinha visto esse senhor lá desde que entrei, mas como na nossa sede sempre havia pessoas estranhas – nas várias acepções da palavra – não dei importância. Quando a roda se fez e ele se sentou no centro percebi que era ele o nosso convidado da noite. Nada naquela pessoa poderia trair um passado feminino, se é que houve: tratava-se se um homem de aproximadamente 52 anos, ligeiramente calvo, barbeado, mas não era imberbe, trajava calça masculina escura de um tecido que parecia brim, com bolso-faca e uma camisa de flanela xadrez com as mangas arregaçadas até os cotovelos, sapatos pretos de amarrar, relógio grande de desenho masculino e mais nada. Sentou-se com as pernas cruzadas, o tornozelo direito apoiado sobre o joelho esquerdo e recostou-se na cadeira, a camisa ligeiramente entreaberta, exibia peito musculoso e peludo, abdômen sem barriga, os braços ligeiramente jogados para trás na cadeira. Apresentou-se como Antonio e começou a falar quase sem mexer a cabeça, com a voz pausada, de inflexão reta, sem demonstrar emoção sobre sua historia pessoal. O combinado seria que, ao final, se alguém desejasse, poderia fazer perguntas visando informação sobre tipos humanos que envolvem orientação homossexual.

Ele é carioca, nascido e criado no bairro de São Cristóvão. Freqüentou a escola até o segundo grau e desde criança sempre se percebeu como menino. Só gostava das brincadeiras dos meninos e achava as meninas muito bobas. Quando ainda vivia como menina, era um capetinha desordeiro e gostava de ser tratada como menino. Subia em árvore, brigava, atirava com sua espingarda de brinquedo e, nas festas, vestia-se de pirata, com tapa-olho e bigode desenhado com cortiça queimada. Era craque no futebol, mas também gostava de jogos de contato físico, como as lutas e pega-pega. Sua avó, preocupada com sua aparência viril vivia lhe dando vestidos de presente, para seu total desânimo. Quando saiam juntas, ela sempre parava em frente às vitrines das lojas e lhe mostrava brinquedos, roupas de menina e repetia “Vai ficar lindo em você!”. Nesses momentos, ela queria matar a velha.

Durante toda a entrevista Antonio não revelou seu nome de mulher, e por sorte, ninguém perguntou. Ele disse que essa era uma marca de seu passado que gostaria de deixar enterrado. Com certo orgulho, ele afirma que nunca namorou rapazes, nunca fez sexo com homens. A única vez que um amigo tentou lhe abraçar numa festa, meio bêbado, já tentando lhe dar um beijo, ele reagiu da maneira que qualquer homem reagiria à investida de outro: com violência, deu-lhe um tapão na orelha que o atirou ao chão. Afinal, ele se sentia um homem heterossexual. Não precisou explicar mais nada, cada um ali parecia ter entendido o despropósito dos avanços românticos de alguém por quem não se sente minimamente atraído.

As primeiras diferenças que percebeu como conseqüência de suas disforia de gênero era o fato de seus amigos de infância, todos meninos, urinarem de pé e ele não. Ficava frustrado por que não conseguia. Mas tentou muito. Teve uma infância relativamente feliz até se ver preso na armadilha que a natureza lhe preparara na adolescência: o crescimento dos seios e a menstruação, entre outros horrores que se faziam notar em seu corpo, acarretados pela explosão dos hormônios. Quando começou a menstruar ele foi tomado de um horror que viria a persistir até a cirurgia de remoção dos ovários e útero, vinte e cinco anos mais tarde. Aquilo era a prova de que havia algo de muito errado no seu corpo, algo que estava além do seu entendimento e certamente sem chance de aceitação. A confusão e a raiva que balizavam sua estrutura psíquica o levaram pelo caminho das drogas e do álcool contando até uma tentativa de suicídio. Saiu cedo de casa por não conseguir fazer sua família entender que ele era um homem nascido dentro do corpo de uma mulher, uma alma aprisionada, em suas próprias palavras. As brigas com os pais eram constantes e não houve para ele alternativa senão interromper os estudos e começar a gerir seu próprio sustento a pouca idade de dezoito anos.

Aprendeu o ofício de mecânico numa oficina situada à Rua Bela, e como tinha queda para o negócio, em pouco tempo montava e desmontava motores de fusca, e isso ele relata sem conseguir esconder uma ponta de orgulho. Em poucos meses era considerado um dos melhores mecânicos da oficina. Era aceito por seus colegas e amigos, todos sabiam que se tratava de uma mulher, mas conseguiu impor respeito simplesmente com uma atitude viril e o estabelecimento de limites claros. Os anos se passaram e Antonio continuou trabalhando nessa oficina. Os funcionários eram todos muito amigos, jogavam futebol no sábado à tarde. Com eles vinham suas esposas, namoradas e filhos, pois sempre tinha um churrasco e cerveja para acompanhar a farra. Ressentia o fato de não poder tomar banho com os amigos depois do jogo, pois o chuveiro era coletivo e em sua opinião seria um despropósito tirar a roupa e expor aquilo que ele considerava uma anomalia: um corpo perfeitamente saudável de mulher, esculpido ao longo de anos de exercícios físicos pesados que a profissão exigia.

Aos vinte e dois anos conheceu uma mulher, se apaixonaram e foram morar juntos. Dez anos depois arranjaram um esquema com um amigo homossexual para ela engravidar, um favor especial: ele se masturbaria, ejacularia dentro de uma seringa sem agulha e Antonio injetaria o esperma no colo do útero de sua esposa, a qual já aguardava deitada na cama do casal no quarto contíguo, devidamente preparada e no seu dia mais fértil. Tudo isso porque os três concordavam que uma relação sexual entre os dois estava fora de cogitação e seria de péssimo alvitre. Não deu outra, ela engravidou na primeira tentativa. O menino nasceu de parto normal nove meses depois e viveram felizes por mais doze anos.

Trabalhou mais do que o habitual, durante anos juntou todo o dinheiro de que precisava e conseguiu fazer a tão sonhada cirurgia. Primeiro os seios foram extirpados por um cirurgião plástico, e seis meses mais tarde este conseguiu lhe fazer um arremedo de pênis utilizando retalhos de tecido do próprio abdômen e a introdução de uma prótese de silicone: o que ele chamou de rolinho primavera. É claro que ele não nos mostrou seu genital, mas explicou que está sempre em estado de prontidão, intumescido, o que às vezes pode causar certo embaraço quando veste calção de banho para ir à praia. Por isso, costuma usar o neopênis virado para baixo, dentro da sunga. Disse que não sente prazer sexual no seu órgão por assim dizer, mas seu clitóris está preservado, embora não o estimule manualmente e se compraz em penetrar e ver o deleite refletido nos olhos de sua esposa. Seus caracteres secundários foram conseguidos com injeções de testosterona, uma injeção semanal, em casa, na barriga com agulha hipodérmica. Com os anos, sua voz adquiriu um timbre mais grave de barítono, os pelos corporais ficaram mais espessos e cresceu uma barba cerrada da qual exibe também certo orgulho, embora, ainda segundo ele, esteja sempre barbeado. Devido à sua já meia-idade possui uma ligeira calvície que não lhe desagrada completamente, pois a toma como acidente de percurso. “Careca faz parte”, arremata ele, dando risadas.

Como foi o caso, a vida deu suas reviravoltas. Quando seu filho contava doze anos, e ele quarenta e dois anos, Antônio se apaixonou por um homem. É isso mesmo, senhores: nosso amigo, depois de ter vencido o Cérbero guardião dos portões do inferno para virar homem resolveu se apaixonar por outro homem e deixou lar, emprego, esposa e filho em São Cristóvão e foi viver com o novo namorado. Alguns meses depois de rompido o relacionamento de vinte anos, ele se mudou para Bangu, para viver um amor homossexual, e não me perguntem qual dos dois fazia papel ativo na relação. Ou mesmo se havia relação sexual.

Ao final da entrevista não resisti à tentação e perguntei se ele algum dia se arrependeu de ter se transformado em homem, ao que respondeu que não, o que suscitou uma cascata de perguntas na minha mente. Mas preferi não soltá-las: para que você se transformou em um homem se era para se apaixonar por outro homem? Se era para se apaixonar por um homem, por que não continuou sendo mulher? Será que seu desejo era o de viver sempre na contra mão da sexualidade? Será que sempre quis ser gauche na vida? Por eu não conseguimos controlar nossos desejos? Por que razão e emoção na andam juntos?
Depois que ele se foi, fiquei com a sensação de que tinha muito mais perguntas do que respostas, e me consola apenas o fato de saber que aquelas, muito mais do que estas, é que são as verdadeiras molas do mundo.

Souza & Lima

Ontem fui a um jantar na casa e um casal de amigos que se uniram recentemente e recebiam amigos para mostrar a casa nova. Lá conheci um casal de senhores que vivem em simplicidade doméstica, casados há mais de meio século. O que me chamou atenção neles a princípio foi sua discrição e o carinho com que conversavam um com o outro, de mãos dadas, quietos a um canto da sala. Não tardei em me apresentar a eles sem constrangimento. Depois de alguns minutos já conversávamos animadamente segurando as mãos, como velhos amigos, eu fazendo inúmeras perguntas, como é meu feitio, e ouvindo as explicações fartas de detalhes. A figura daqueles dois tanto me impressionou que resolvi escrever sobre eles, para não me esquecer deles.

Eles se conheceram em 1953 quando o mais velho, que chamarei Sr. Souza tinha 37 anos e o mais jovem, Sr. Lima contava apenas 17. Sr. Souza estará completando 88 anos em breve e seu companheiro, 68. Ainda lúcido – a despeito de ocasionais repetições - e altivo e de aparência saudável, o mais velho trajava um surrado terno escuro e seu companheiro usava roupa bem mais social. O encontro dos dois foi muito engraçado, e eles contam os dois juntos, às gargalhadas, falando ao mesmo tempo, um completando a frase inacabada do outro. “Quer saber como nos conhecemos?” perguntaram. Quem não gostaria?, pensei. Lima era aprendiz de desenhista e trabalhava em um escritório situado em um prédio ao lado do banco de que Souza era gerente, na esquina da Rua da Assembléia com Quitanda, centro do Rio de Janeiro. Um dia Souza precisou ir lá por algum motivo. Mal entrou e viu Lima abrindo uma porta com o cotovelo, pois nas mãos carregava uma bandeja cheia de lápis e materiais de desenho. De repente Lima se virou e deram os dois um encontrão daqueles e tudo voou pelos ares e caiu espalhado no chão. Sr. Souza prontamente se desculpou e se abaixou para ajudar a catar o material do outro. Só quando haviam terminado é que ele olhou para o rosto garoto e estremeceu, “era uma flor de formosura, uma candura no olhar, uma beleza casta de um anjo de Boticcelli que até então eu só julgava existir nas revistas de cinema. Os cachos de cabelos loiros lhe caiam sobre a fronte, lindamente adornada com aquele par de olhos azul da cor do mar”. Que engraçado alguém descrever o rosto de um rapaz com estas palavras, pensei. Hoje se alguém as usasse, eu jamais idealizaria um rosto atraente. Enfim... Foi amor à primeira vista.

A partir dali Sr. Souza se ocupou de escrever longas cartas apaixonadas e pedia ao ascensorista para entrega-las ao garoto. Perguntei se eles achavam que o funcionário do elevador sabia do que se tratava e eles disseram que decididamente não, nem lhe passava pela cabeça.
- Mas foram oito cartas, eu disse.
- Mesmo assim, Lima respondeu.
- Mas oito cartas em uma semana! insisti.
- Mesmo assim! repetiu ele, um semitom acima. Naquela época as coisas não eram como hoje, havia muito mais respeito e inocência, redargüiu o outro.
Pode ser, pensei, mas então foi preciso mesmo muita inocência. Lima, em sua enorme inocência, apavorado e sem saber direito o que estava acontecendo mostrou as cartas a sua avó, que o criou e a quem ele chamava de mãe. Ela, que embora nascida no século XIX vivia anos luz adiante do seu tempo, disse apenas: “Só sei que isso não são cartas de menino, são de homem vivido. Você faz o que quiser da sua vida”. Parece que o aceite houvera sido dado.

Souza pegava Lima na saída do expediente e iam passear de bonde, tomar um sorvete e caminhar pela Cinelândia no fim de tarde, início da noite. E viam filmes de Carmem Miranda, a quem Sr. Souza conheceu muito bem pois tinham amigos em comum. Disse que ela era sambista como o é hoje Beth Carvalho antes de se tornar rumbeira chica-chica-bum, o que me surpreendeu pois sempre achei que ela já nasceu com aquelas frutas na cabeça. Freqüentaram o Cassino da Urca e ele participou e ganhou concurso de sósia do Getúlio e deu autógrafos na rua. E assim se passaram os meses e só depois de um ano, deram o primeiro beijo. “Afinal, eu não podia me fazer de fácil, o que ele haveria de pensar de mim?” se desculpou Lima. “Não queria dar a impressão que eu estava apenas interessado em me aproveitar dele”, completou Sr. Souza. E eram presentes e cinema e jantares e “mimos” e a paixão dos dois crescia a cada dia até que, três anos mais tarde, decidiram irem morar juntos na Rua do Rezende no centro da cidade.

Mas a família do Sr Souza era da alta sociedade, seja lá o que isso signifique, era o mais jovem de seis irmãos que, acreditava ele, de nada sabiam e nem desconfiavam. Assim, optou por uma solução simples mas engenhosa: resolveu adotar Lima como seu legítimo filho. Naquela época uma diferença de vinte anos era enorme e o suficiente para justificar uma adoção. Hoje, esses vinte anos já se diluíram e eles não apresentam traços que os difeririam de outros tantos pensionistas da terceira idade. A família do mais velho achou que Lima era produto de um romance fugaz com uma dançarina qualquer, uma coquete do dancing e se contentaram em aceitar sua decisão sem mais perguntas. Todas ficaram felizes e orgulhosas com a nobreza do gesto do irmão, só que nunca foram visitá-los em sua nova casa.

Anos depois, em 1960, ano em que eu nasci, mudaram-se para Nova York, onde trabalharam para companhias brasileiras, cujas aposentadorias são o que os sustenta ainda hoje. Conheceram muitas pessoas interessantes, ganharam bastante dinheiro, fizeram diversos cursos, foram assistir a todos os musicais da Broadway e lá viveram felizes por quinze anos.

Quando perguntei se seus diversos sobrinhos e sobrinhos-netos alguma vez perguntaram sobre o que os unia Sr. Souza sentiu-se quase aviltado com a indiscrição da pergunta e foi veemente, com dedo em riste: “Nunca ousaram perguntar nada sobre minha vida particular, nunca dei entrada para tanto. O que faço da minha vida nunca foi da conta de ninguém”. Eu achei uma pena que eles tivessem que viver suas vidas em segredo de suas famílias, colegas de trabalho, ficando essa interessante história de amor restrita a um grupo reduzidos de amigos, depositários de sua confiança e confidências, talvez cúmplices ou parceiros do mesmo tipo de amor que hoje em dia, felizmente, já ousa dizer seu nome. Esta foi a impressão que ficou. Não posso deixar de pensar sem uma ponta de pesar nos milhares de gays jovens cujas vidas poderiam ter sido tocadas de maneira bastante positiva tivessem eles ouvido falar desses dois e talvez descobrissem que dois homens podem, sim, viver juntos vidas de pessoas comuns, a salvo da busca incessante por amor e da promiscuidade que grassam nesse meio. Mas eles optaram por viver na mais completa obscuridade.

Hoje em dia já acho que um bom exemplo pode muito mais que a incansável militância das ruas. Sei que os tempos eram outros, e os riscos seriam grandes demais, mas tenho admiração por aqueles que não têm medo, pelos que metem a cara, pelos que se ferram em nome de um ideal, pelos bois de piranha, pelos faróis que mostram o caminho, gosto daqueles que se mostram, se expõem, se arriscam, se comprometem. Desprezo os pelegos, os medrosos, os fura-greve, os que comem pelas beiradas, os que se escondem nos armários e embaixo da cama, os que molham só os dedos. Creio que viemos ao mundo para transformá-lo de alguma maneira, para deixar nossa marca, para fazer diferença. Se não fosse por uma contribuição mesmo ínfima, um grão de areia na vida de alguém mesmo desconhecido, penso que minha vida não valeria a pena. Como Platão, também acho que vida que não se consagre ao incessante procurar, não vale a pena ser vivida. Infelizmente, meu leitor não saberá ao certo o que realmente sinto por essas curiosas personagens que conheci, pois nem eu sei. É que meus sentimentos são duais, iguais, mas opostos.

E qual o segredo desse amor que já atravessa meio século? Pensaram longamente, olho no olho. Amor, respeito e acima de tudo muita sorte. “Ah! Quem me dera viver cinqüenta anos ao lado de alguém!”, suspirei. “Bom, faça as contas você mesmo, você tem quarenta e três anos, e se ainda não tem namorado é melhor se adiantar. A casa está cheia de gente jovem e bonita e acho bom você arranjar um companheiro ainda hoje. Alguém há de lhe servir”, foi o conselho.

De nada adiantou. Vim para casa sozinho. Mas feliz por ter conhecido dois sujeitos tão especiais.

Racismo x homofobia

Quando eu era adolescente e vivia atormentado por problemas que creditava a minha orientação homossexual, jamais me preocupei em entender como outras formas de preconceito mostram suas garras afiadas em nossa sociedade. De tão efeminado, vivia me escondendo de todos que pudessem me atacar. Mas eles sempre me achavam. As humilhações em casa e na escola eram diárias e algumas vezes maquinei soluções macabras para abreviar tamanho sofrimento.

Quando vi os Dzi Croquettes na televisão, cobri o rosto horrorizado. “O que é isso meu Deus? Não quero nunca ser com eles”, implorava. Eu tinha horror aos gays assumidos, mas hoje imagino que minha rejeição a esses estereótipos tenha sido mais por não conseguir entender como eles suportavam as torturas psicológicas, morais e mesmo físicas que nossa sociedade caprichosamente lhes dispensa do que por conta de algum ranço moralista que eu silenciosamente carregava. Havia os negros, os judeus, o gordinho da escola, a menina estrábica, o menino efeminado, os cabeludos com "tendência" a hippie, e tudo o que diferia do resto, daquilo que era considerado normal. As crianças e os adolescentes, reconhecidamente cruéis, nunca perdoaram nada que escapasse à sua compreensão de normalidade.

Muitos anos depois tornei-me pai adotivo de um menino negro e comecei a me dar conta da existência de um outro tipo de preconceito que até então não conhecia. Houve ocasiões em que meu filho foi tirado do banheiro de um restaurante onde jantávamos simplesmente porque ele lá entrou para lavar as mãos; já lhe foi negado um refrigerante no balcão de um bar roscófi por medo de que ele não tivesse dinheiro; já vi o baleiro mandá-lo me agradecer pelas guloseimas que eu havia lhe comprado; já o vi levar sabão no supermercado porque deixou cair uns sacos de biscoito mal empilhados; já o vi levar uma descompostura numa loja de departamento porque deixou cair um copo comum de cozinha da prateleira, e vai por ai. No início eu ficava assustado com tamanha violência e tentava defendê-lo com educação contra seus algozes. Na sua infinita inocência muitas vezes ele mal entendia o que estava acontecendo e ficava olhando espantado as cenas de preconceito explícito. Já cheguei o dedo no nariz de completos estranhos umas três vezes, juntou gente, um barraco. Hoje em dia ando bem mais agressivo e se meu filho tornar a ser humilhado na minha presença, acho que vou rolar no chão com alguém.

Conversando com alguns amigos negros eles me disseram algo que parece óbvio, mas em que eu ainda não tinha pensado: nas famílias de negros conscientes de sua raça, desde cedo as crianças são levadas a aprender a se defenderem dos ataques racistas. Se algo acontece na escola, na rua, ou no mercado, a criança chega em casa e a primeira coisa que faz é contar a seus pais, para que esses tomem as devidas providências. Elas aprendem a respeitar o próximo, mas ainda mais a si mesmos. Parece certo e muito justo.

O psicanalista Jurandir Freire Costa, em seu ensaio “Da cor do corpo à violência do Racismo” relê Marilena Chauí e afirma que: “ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa nem repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os Ideais de Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro. (...) A violência racista do branco é exercida, antes de mais nada, pela impiedosa tendência a destruir a identidade do sujeito negro. Este, através da internalização compulsória e brutal de um Ideal de Ego branco, é obrigado a formular para si um projeto identificatório incompatível com as propriedades biológicas do seu corpo. (Costa, 1979,p.104).

Mas eu mesmo, embora concorde com a parte em que o renomado psicanalista denuncia a violência e insultos que os negros sofrem diuturnamente, leio suas palavras não sem uma ponta de desconfiança pois creio que ser negro, branco, amarelo ou marrom, não faz parte da constituição psíquica do sujeito. Aliás esse assunto de raça sempre foi prato cheio para o desenvolvimento de outro tema correlato: a eugenia, ao que todos sabemos onde leva. No inconsciente, que para mim é Deus, não percebo os tais Ideais de Ego, assim mesmo, com maiúscula, pois no inconsciente não há inscrição de raça. Lá não há negros assim como não há brancos, gordos, gays, judeus, deficientes físicos e visuais ou o que quer que seja.

Além disso, nunca soube de nenhum menino efeminado escorraçado na escola que tenha chegado em casa contando aos pais sobre seu suplício diário. E se for visto sendo humilhado e seu segredo descoberto, será novamente punido em casa. Conheci dezenas de rapazes pra lá de alegres (alegres por que, bolas?), a quem não consegui impedir que me contassem as histórias escabrosas de suas vidas, que narram fatos bizarros envolvendo tortura física e psicológica por parte da família, grupo religioso, colegas de escola e de trabalho, e outros.

Por cinco anos participei assiduamente das oficinas de sexta-feira do Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual no Rio de Janeiro onde se trabalham temas que vão da auto-estima e saúde a experiências traumáticas, de relações familiares à emancipação dos homossexuais, amor, desejo, culpa, etc., temas corriqueiros que qualquer pessoa bem poderia estar discutindo numa sexta-feira à noite, se não tivesse nada melhor para fazer. Era um compromisso semanal quase religioso e, não obstante as divergências, eu não poderia negar que minha auto-estima aprendeu a respirar alma nova depois que se falou sobre esse tema. Lá ouvi depoimentos que fariam corar Jean Genet e matariam de inveja E.A.Poe. Muitas vezes questionei a validade do movimento, criticando as passeatas dizendo que as revoluções devem ser promovidas numa esfera particular: cada um fazendo a sua, em casa, no trabalho, no grupo social, respeitando-se e fazendo-se respeitar enquanto profissionais e por suas qualidades de caráter, argumentei que ninguém nunca viu passeata de gordos em cadeira de rodas exigindo respeito e visibilidade e ouvi diversas repostas, umas mais ou menos convincentes que outras; entre elas:

“Por que gays e lésbicas são discriminados em casa e no trabalho e por que nossos gestos são mais importantes do que quem somos, e se somos humilhados e assediados, isso é problemas nosso e se somos atacados, fomos nós que provocamos e se levantamos a voz, estamos querendo aparecer, se curtimos o prazer do sexo somos uns pervertidos, se temos AIDS nós merecemos, se marchamos com orgulho nas passeatas estamos é querendo recrutar crianças e desarticular a família brasileira, a igreja e o Estado e se queremos ter filhos somos considerados pais inadequados e se nos levantamos por nossos direitos estamos extrapolando nossos limites e por que somos forçados a constantemente nos questionar a nós próprios enquanto pessoas humanas, e se nunca tivemos relacionamentos com pessoas de sexo oposto é porque nunca tentamos e se temos um relacionamento com uma pessoa do mesmo sexo ele não é reconhecido ou validado e ouvimos sempre dizer que nosso amor não é “real” e se nos declaramos homossexuais estamos simplesmente passando por uma fase e por que história gay e lésbica é virtualmente inexistente na literatura e por que a homofobia é sancionada pela corte suprema dos tribunais e... e tantos e tantos motivos é que faço parte do movimento para diretos civis de gays e lésbicas”.

Ninguém pode negar que há preconceito racial no Brasil, o qual deve ser combatido com toda força por todos os cidadãos amparados pelo braço da lei, mas também não se pode negar que o preconceito sofrido pelos homossexuais também é perverso, pois começa dentro de casa, em tenra idade, da qual não se pode fugir. Não há abrigo senão na mentira e na arte da dissimulação, na qual, para sobreviver, muitos gays se tornam experts. A homossexualidade tem a vantagem de poder ser escondida, acobertada por um bom disfarce como um casamento, ou atitudes mais viris, por exemplo. Já a negritude vem estampada na pele e não há o que se fazer para acobertá-la, mesmo se esse for o interesse do cidadão.

O que sugiro é que as minorias se agrupem para discutir os temas específicos que mais lhes afligem sempre visando o desenvolvimento e melhoria da auto-estima, pois só ela é capaz de nos fortalecer, e assim, tornarmos mais forte para nos protegermos do nosso algoz-de-cada-dia.

Para que servem os músculos?

Em julho de 1995 o Grupo Arco-Íris de Consciência Homossexual realizou a primeira passeata do Orgulho Gay na Avenida Atlântica, Rio de Janeiro. Minuciosamente planejada, não contou, entretanto, com mais de uns cem gatos pingados que, lutando primeiro contra o constrangimento, e perante os olhos incrédulos de expectadores que se aglomeravam nas calçadas, carregavam faixas exigindo respeito e visibilidade.

Preparamos centenas de máscaras para serem distribuídas entre a população para que as pessoas pudessem participar do evento sem se exporem. A idéia era que, oferecendo este artifício, mais pessoas se sentiriam encorajadas a entrar elas também na marcha. Para nossa surpresa, entretanto, na hora H, ninguém usou a máscara e preferiram caminha com ela na mão em sinal de protesto contra a discriminação. Foi um momento histórico para o movimento homossexual brasileiro, então dando seus primeiros passos, do qual tenho orgulho de ter participado. O movimento cresceu rapidamente, e se espalhou como um rastilho de pólvora, e hoje não é raro contar com mais de algumas centenas de milhares de participantes nas principais capitais do Brasil. A passeata de São Paulo é considerada a maior do mundo atualmente, com números de participantes que passam da casa dos 3 milhões.

Ano passado, mais por ter não ter nada melhor para fazer, resolvi dar uma olhada na movimentação daquelas centenas de milhares de foliões de que se aglomeravam nas proximidades do Posto Quatro da Avenida Atlântica. O local estava muito cheio de pessoas das mais diversas facções sócio-politico-sexuais. O clima era de festa, com quase todos dançando e bebendo despreocupadamente, que mais se assemelhava a carnaval do que a manifestação, política uma vez por ano exigindo respeito e visibilidade. A impressão que tenho é que se pudesse resumir o evento numa frase seria : “sou gay sim, estou aqui, e daí?”

O Rio de Janeiro, como quase todo o Brasil – e o mundo - sabe é uma cidade prodigiosa em homens bonitos, que em certas épocas do ano saem de seus casulos (leia-se academias de ginástica) e tomam as ruas para o deleite da população feminina – e boa parte da masculina também. Exibem seus corpos esculpidos em mármore de rara beleza e ao mesmo tempo em que nos fazem delirar, também podem nos fazer sentir como o último dos mortais. Para evitar sofrimento, o melhor a fazer é não comparar, não analisar nada, e buscar conforto na mentira de que o intelecto traz mais prazer que belos músculos.

De repente, avistei um casal de rapazes ali pelos seus 26-28 anos aos beijos e abraços, no meio daquela aglomeração de corpos que se formava. Os dois lindos, fortes, músculos perfeitos, saídos da praia, dois semideuses, trajando apenas sumárias sungas de banho e mais nada. Fitei o longo beijo do casal apaixonado, encostado a um carro, não sem uma ponta de inveja. Ao meu lado havia três rapazes, meio classe média no vestir, adolescentes muito mal encarados e que se irritaram muito ao ver aquela cena. Estavam enojados com aquele beijo e ouvi um deles dizer que “gay tem mais é que morrer tudo”. Eram os típicos trouble-makers de classe média, produto de qualquer cidade grande, que saem às ruas somente para procurar confusão. Quando vi que se preparavam para atacar o casal, eu me aproximei deles e tentei avisar para que tivessem cuidado. Segurei de leve um deles pelo braço, mas não consegui me aproximar. Fui rechaçado com um leve gesto de mão que denotava incômodo e me empurrou para trás, sem me olhar no rosto, acostumado que deve estar com assédio toda vez que sai às ruas.

Nesse momento, num segundo, o maior dos três moleques passou como um raio no meio do casal e desfechou um tremendo murro com a mão fechada na boca dos dois, enquanto se beijavam. Eu estava perto e vi tudo: levaram um soco para lá de dolorido na cara, os dois. A boca de um deles sangrou profusamente. E o que me causou ainda mais indignação: os dois nada fizeram. Limitaram-se a rir desconcertados daquele constrangimento, fingindo que não passava de um empurrão, coisa comum em lugares cheios de gente.

Fui para casa revoltado, com raiva dos dois covardes fracotes, (meia lua inteira, sopapo na cara do fraco, estrangeiro gozador) pensando em quantas passeatas mais serão necessárias até que os homossexuais aprendam o exercício da auto-estima e retribuam os socos que levam no cotidiano. Tinha mais raiva deles do que daquele moleque frajola, do qual vergonhosamente apanharam. Se o sujeito não está preparado para se defender, então não tem direito ao menos de pleitear respeito e igualdade, que dirá beijar em publico. “Se queres a paz, prepara-te para a guerra.” Era melhor ter ficado na segurança de suas casas. Horas a fio na academia, talhando a ferros músculos perfeitos. Os dois fortões, ou melhor, duas moças fortonas. Para que servem afinal esses músculos tão lindos e fortes?, pensei. Para me seduzir é que não são!

O perigo mora embaixo

Um dos meus passatempos favoritos é conversar com completos estranhos pela internet. Recentemente conheci um sujeito a quem chamarei aqui de Junior, que me relatou uma história que merece alguma reflexão. Conversamos um pouco numa sala de bate-papo e como o assunto estava deveras interessante, pegamos no telefone para completar nosso deleite.

Demonstrando ressentimento e nostalgia por tempos mais faustos ele me contou que atualmente reside em uma quitinete junto com mais três amigos no Bairro de Fátima no centro da cidade, mas que já viveu em condições muito melhores em um amplo apartamento em Guadalupe, subúrbio do Rio de Janeiro. Teve que sair de lá fugido devido a um incidente envolvendo seu ex-namorado, com quem morava e uma criança de apenas oito anos. Durante um período em que seu companheiro estava desempregado, este recebia visitas constantes dessa criança, a quem meu interlocutor havia batizado, já que era amigo dos pais dele desde antes do seu casamento.

Um dia desconfiou das atitudes suspeitas do garoto dentro de sua casa, e, depois que este foi embora, inquiriu junto ao seu companheiro o que realmente estava acontecendo entre eles. No inicio ele desconversou, demonstrando-se indignado ante a suspeita mas depois de alguma pressão acabou admitindo que recebia o menino pelo menos uma vez por semana e que eles faziam sexo “completo”, em suas próprias palavras, “mas por insistência dele. Aquele moleque é maluco, mal entra aqui e já vai metendo a mão no meu pau”, arrematou.

Horrorizado, ele exigiu que isso nunca mais acontecesse e o ameaçou exposição junto aos pais do menino se ele não acatasse. Lembrou-se de um fato que havia acontecido três anos antes, quando o menino contava apenas cinco anos de idade. Uma noite, os pais dele saíram para uma festa e pediram que ele dormisse na casa do tio Junior, que a essa época ainda morava sozinho. No meio da noite ele acordou, deitado de barriga para cima, pernas abertas, com o vulto de uma criança sentada em cima de sua cama, segurando seu pênis ereto com as duas pequenas mãos, pronto para dar a primeira bocada. Aterrorizado, ele não deu alarme, simplesmente soltou um ronco e virou-se na cama. O garoto, assustado, pulou no chão e saiu correndo de volta para sua cama armada no sofá da sala. É claro que ele não poderia sancionar aquilo com um sermão sobre sexualidade às 3 da manhã. Nunca comentou o ocorrido com ninguém.
No dia seguinte à sua conversa com o namorado, quando Junior se encontrava sozinho no apartamento o menino veio visitar o “tio”. Meu amigo aproveitou a situação e chamou o garoto para uma conversa informal, mas conclusiva. Então, sentaram-se no sofá, e disse delicada mas de maneira incisiva, sem dar maiores detalhes, que definitivamente não gostaria que ele voltasse ali quando o “tio” André estivesse sozinho no apartamento. O garoto, vendo-se acuado e exposto partiu para ataque direto contra ele. Atirou-se literalmente sobre ele, com uma mão ele o agarrou nos testículos e com a outra, dedo em riste, brandindo a mão no ar, o enfrentou dizendo: “quem você pensa que é para me dizer o que eu posso ou não fazer? Eu sei muito bem que você trepa com ele. Por que eu não posso?”.

O ódio que ele leu nos olhos da criança ainda o faz arrepiar, o mesmo tipo de sensação que ele diz ter experimentado no momento em que o ergueu nos braços na hora do batismo. De repente quem estava diante dele não era mais uma criança inocente de oito anos, mas um homem amoral e sem escrúpulos, pior, um rival. Desvencilhando-se das pequenas mãos que o ameaçavam, escolheu a melhor resposta que lhe ocorreu no momento. “Nesse caso, já que você sabe disso, deve saber também que ele é MEU namorado, e não seu. Vá procurar um pra você e nunca mais volte aqui, senão vou contar tudo para seu pai”. O garoto o olhou mais uma vez nos olhos e disse friamente, entre dentes: “atreva-se”. Para fazer graça ele me contou que aquela cena parecia coisa de novela das sete, clichê barato pré-fabricado, mas aterrorizadora. Com essas palavras enxotou literalmente o garoto porta fora, puxando-o pelo braço, o coração batendo acelerado no peito.

Mais tarde, quando seu companheiro chegou, ele lhe relatou o ocorrido e disse ainda que eles corriam sério risco, que talvez fosse melhor fazerem uma viagem por algum tempo. Mas não deu tempo. Dois dias depois, quando se encontrava no escritório em que trabalhava, recebeu um telefonema de alguém informando que seu namorado havia sofrido uma tentativa de homicídio e estava entre a vida e a morte no hospital, todo quebrado. Ao chegar lá alguém lhe contou que o pai flagrou o garoto fazendo sexo com outro menino, deu uma surra no filho e perguntou onde ele havia aprendido tal coisa. A resposta veio de súbito: “com tio André e tio Junior, foi ele que me mandou arrumar um namorado”. Essas palavras foram tudo do que o pai, um grosso soldado raso da policia militar precisava para tomar sua decisão : matar os dois. Sem pestanejar foi à casa deles, agarrou “tio”André pelo colarinho, o arrastou até a rua e bateu nele até que caiu inconsciente, jogado no chão, numa poça de sangue, na frente de uma multidão. Depois pegou um paralelepípedo e só não estourou seus miolos porque a esposa, que assistia a tudo da calçada, interveio e impediu um assassinato. Pelos que assistiam a cena, ele mandou um recado ao “tio”Junior que destino ainda pior o aguardava, quando lhe pusesse as mãos e que dessa vez ia fazer o serviço completo. Também não pôde mais voltar ao seu local de trabalho pois o tal militar lhe disse que o pegaria lá também.

É claro que desde esse dia meu amigo nunca mais voltou em casa, nem para pegar roupas, pois seu algoz morava no mesmo prédio, dois andares abaixo. Saiu de lá com as roupas do corpo sabendo que se for pego poderá enfrentar a morte e o que é pior, com a sanção da polícia, da sociedade, e até dos presos, colegas da cela em que ele fatalmente cairia caso fosse julgado por um tribunal. Perdeu quase tudo que tinha. Uma amiga conseguiu trazer para ele a maioria de seus pertences. Mas os móveis ele nunca mais viu.

Quando eu lhe contei que tenho não um, mas dois meninos dentro de casa, com nove e onze anos respectivamente, ele se benzeu. Disse que eu não tenho idéia do tremendo risco que estou correndo porque imaginação – e maldade - de criança não tem limite. Diz ter aprendido essa lição da pior maneira possível. Segundo o pai da psicanálise criança tem sexualidade sim, e exacerbada, coisa que toda babá sabe de cor. E depois de Melanie Klein, então não pode restar qualquer duvida quanto a isso. Resta aos adultos reprimir nelas esse impulso até que estejam em uma idade em que a sociedade possa aceitar que desenvolvam e gozem de uma vida sexual completa. Junior considera seu ex-namorado culpado por não ter resistido aos apelos sexuais do menino. Depois que André saiu do hospital, eles terminaram o relacionamento de três anos e nunca mais se falaram.

A mente infantil é realmente muito fértil, mas devemos ouvi-las sob o crivo do bom senso e sentido de proporção. Como canja de galinha, um pouquinho de pé-atrás também não pode fazer mal. Não se pode dar crédito absoluto a tudo que elas falam por que, além de criativas, podem também ser bastante mentirosas e maldosas, como qualquer pessoa. Por isso, antes de julgarmos, execrarmos publicamente e atirarmos na cadeia pop-stars pré-julgados por sua aparência, excentricidade e esquisitice, devemos ouvir todas as versões e só depois tirarmos as devidas conclusões. Se é que isso seja possível . Talvez as crianças não sejam apenas esses doces anjinhos que nos enternecem e fazem com que as desejemos a qualquer custo.

Pai adotivo e gay

Amanhã, quinta-feira (17/01/02), o canal de tv GNT vai apresentar uma reportagem sobre formas alternativas de família, para a qual dei uma entrevista. Devo dizer que não é fácil falar de minha vida particular na media, mas por um posicionamento até certo ponto político, eu me cobro uma participação neste movimento. Durante cinco anos participei ativamente das reuniões do Grupo Arco-íris de Conscientização Homossexual. Alguma coisa ficou daquelas reuniões.
Tenho 41 anos, sou homossexual assumido, tenho um companheiro que mora comigo há dois anos e desde 1997 sou pai adotivo solteiro. A adoção de meu filho foi concedida pelo polêmico juiz Siro Darlan, àquela época juiz da Primeira Vara da Infância e Juventude, cuja abertura de pensamento surpreende não apenas a sua classe, mas a todos. Além disso, meu filho é negro, o que apresenta algum adicional nas contas do preconceito que enfrentamos no dia a dia. Esta reportagem vem no bojo ainda da morte desafortunada e prematura de Cássia Eller, com o desdobrar da guarda e custódia de seu filho Chicão.
Quiseram saber minha opinião sobre o estado de coisas no que se refere à posição dos homossexuais e cidadania no Brasil. Disse que não tenho como falar sobre os gays em geral, mas que pessoalmente nunca tinha sofrido hostilidade pelo fato de ser gay e ter adotado uma criança. Preconceito bem maior enfrentam os negros numa sociedade racista hipócrita como a nossa. Quando perguntados, ninguém admite ter preconceito contra coisa nenhuma, mas na prática a realidade é bem outra. E disso eu só me dei conta após me tornar pai de um menino negro.
Meu filho, agora com seis anos, freqüenta uma escola extremamente vanguardista - a mesma escola onde estuda o Chicão - Centro Educacional Anísio Teixeira. Lá encontrei professoras investidas na educação das crianças, interessadas em lidar com as idiossincrasias de cada uma delas, sem passar aquele rolo compressor da adequação social tão comum em outras instituições.

Surpresa maior eu tive no final do ano quando, numa reunião de pais, eu comentei com a orientadora que eu tinha um companheiro e ela me recomendou a convidá-lo para participar da próxima reunião, já que ele mora conosco e participa na educação do menino. Isso é sinal dos tempos, nem tudo está perdido. Não conheço outra escola tão aberta às diferenças como o CEAT. Eles tratam essas diferenças com o mesmo espanto de tratariam alguém que usa boné. Por isso não me causou surpresa ao ler num jornal que a escola emitiu um documento assinado por todas as professoras que haviam trabalhado com o Chicão, e muitos pais de alunos que a conheciam, ao todo trezentas assinaturas, em que afirmavam ser a companheira de Cássia a pessoa mais apropriada para ficar com sua guarda. Ela sempre participou de todas as reuniões e demonstrou grande interesse pelo bem estar do menino. Recentemente, numa festa de Bumba meu Boi, as crianças cantavam no pátio debaixo de um sol incandescente que só o Rio conhece. De repente avistei Cássia Eller com uma câmera na mão, filmando cada passo do filho, que tocava tambor atrás do boi. Me deu aquele frio na barriga.
Quando ela parou num canto para tomar uma água, com a maior cara de pau me aproximei dela e disse que sentia muito, mas que nem ali ela estava a salvo da horda de fãs que a perseguiam por toda parte e pedi para tirar uma foto com ela. Ela riu com a boca aberta e disse que eu era mesmo cara de pau mas que parecia ser gente boa. Mas com grande boa vontade se encostou à parede ao lado do bar e meu companheiro bateu uma foto. Depois perguntou se eu era tio ou pai de alguém ali e eu disse que era pai. Não conversamos, em segundos ela se foi. Noutras ocasiões vi Maria Eugênia, mas nunca falei com ela. Este breve encontro com meu maior ídolo vivo se deu meras três semanas antes de sua morte. Sua imagem e seu cheiro ainda hoje estão bem vivos na minha lembrança.

Acho que a luta para a garantia de direitos iguais para casais homossexuais será árdua e longa, pois toda vez que a deputada federal Marta Suplicy saca da bolsa seu projeto de lei que assegura a união civil, a bancada evangélica do Congresso contra-ataca com Bíblia na mão, cânticos, hinos, piadinhas e chacotas. Mas com chacota e piadinhas sopradas pela frente e pelas costas todos nós já estamos acostumados.
Não creio que este será o maior impedimento ao seu projeto. Acho que eles irão precisar de um pouco mais que orações para nos vencer. Não podem impedir a roda da história de girar para frente. Não imagino viver para ver os homossexuais serem aceitos, entendidos ou admirados pela sociedade, mas espero que minha pequena contribuição seja como mais um grão de areia calçando esse terreno movediço das injustiças da exclusão social e do preconceito contra os homossexuais.
Se conseguirmos ter nossos direitos respeitados, já teremos conquistado muitíssimo. Podem até não gostar de nós, mas terão que aprender a nos engolir. Sou um sujeito de hábitos simples, trabalho o dia todo como professor e tradutor de inglês e alemão, pago minhas contas, às vezes deixo de pagar alguma por falta de grana, como tanta gente. Por isso, quase não entendi o ar de espanto da entrevistadora quando eu narrava o nosso dia a dia de uma casa com criança. Pedro Paulo tem reações normais de uma criança com pai que tem um relacionamento. Não é exclusividade de pai ou mãe homossexual, pergunte a qualquer pessoa que tem um filho e inicia um relacionamento.
Tem chilique todo dia. Criança de seis anos tem ciúmes e é possessiva. Por ciúmes, ele quer se sentar ao meu lado à mesa, não gosta de se sentar no banco de trás do carro, e por ai vai. Recentemente escrevi um livro contando a minha experiência de pai adotivo solteiro homossexual. Ele será brevemente publicado pela Edições GLS, de São Paulo. Nunca me interessou a notoriedade fácil, mas passageira que esta adoção pode conferir. Se hoje divido a minha experiência nos meios de comunicação de massa, é para que mais pessoas em situação semelhante busquem seu desejo de se tornarem pais/mães e dêem o passo rumo à adoção. Se isso lhes trará a tão perseguida felicidade, não posso garantir. Não creio que os gays e lésbicas sejam melhores pais/mães que quaisquer outras pessoas. Só acho que se os deveres são iguais, iguais também devem ser nossas prerrogativas e direitos.

Eu também tenho dúvidas

Sou psicanalista, fiz minha formação por nove anos na Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano e há quatro ano comecei a atender pacientes encaminhados a mim pelo Grupo Arco –Iris de Cidadania LGBT. Através dessa ONG recebo de vez em quando cartas e emails de leitores de todo país relatando questões importantes de suas vidas e pedindo aconselhamento. É motivo de grande orgulho para mim receber cartas de cidadãos que crêem estar diante de alguém que tem respostas para seus embates pessoais. Mal sabem elas que eu também me digladio com meus enigmas.

Recentemente recebi um email bastante emocionante de um jovem leitor que não se identificou. Disse apenas que tem 14 anos, mora no interior do Paraná e está passando por sérios problemas em casa devido ao fato de ter se descoberto homossexual. Sua família é evangélica e seus pais são bastante conservadores. Sofre perseguições na rua, na escola, na igreja e em casa e sofre calado. Terminava pedindo minha opinião sobre como ele deve agir.

Costumo responder a todas as mensagens que recebo, mas essa, em especial me comoveu, pois vem de uma pessoa muito jovem, que está passando por grande dificuldade. Quisera eu poder ajudá-lo. Infelizmente não tenho solução para as questões que as pessoas me propõem pelo simples motivo de que ninguém as tem - se alguém as tem, só pode ser o próprio remetente. O que está ao meu alcance, entretanto, é sugerir estratégias para lidar com certos problemas, baseadas tão somente no bom-senso e em alguma investigação da alma humana.

Fico lisonjeado em saber que alguém imagina que eu possa ser detentor de algum saber especial, alguém que se encontra em estágio superior do desenvolvimento humano, algum pendor intelectual que a experiência pode ter me dado. Por carta pedi a ele que não se esquecesse que minhas experiências são só minhas e tudo que aprendi de meus erros e acertos só valem, se é que valem, no restrito contexto da minha esfera pessoal.

No entanto, disse a ele que precisa ser forte, não deve afrontar sua família para não criar um mal maior, não deve tentar impor a eles a sua natureza, pois eles talvez não estejam preparados para aceitá-la. Por mais que seja importante para ele se impor neste momento não pode se esquecer que depende de seus pais. Há um grande número de jovens que são expulsos de casa em tenra idade quando se revelam homossexuais.

Sugeri que ele tenha precaução e espere o tempo passar com calma até que se sinta forte o suficiente para enfrentar qualquer reação por parte de seus pais – aliás, lembrei que precaução e canja de galinha são as duas únicas coisas que não podem fazer mal. Deve buscar sempre resguardar a integridade da relação sadia que ele disse tentar desenvolver com seus pais. Não podemos esquecer que somente depois da completa independência financeira é que conquistamos o direito de vivermos em plenitude a grandeza e a dor de sermos quem somos. Esta pode parecer uma solução extremamente dura e longínqua para meu pequeno interlocutor, mas não vejo outra. Vamos colocar da forma mais simples possível: quem depende do outro, tem que dançar conforme a música, e ponto final.

Sugeri também que ele tente buscar ajuda do psicólogo da escola - se tiver - ou que tente confiar em um amigo que o ouça com isenção.
Aqueles que têm a sorte de nascer num lar onde há entendimento, amor, bom senso, abertura, solidariedade, encontram o apoio de que necessitam para enfrentar o trauma de se descobrir diferente da maioria, principalmente em um quesito tão pessoal como a sexualidade. Os outros precisam ter paciência e resignação e esperar que o tempo cure as feridas que ele mesmo abre. Alguns animais se fingem de mortos para se protegerem de seu agressor, o que constitui uma estratégia de defesa sem dúvida inglória. Pode parecer entreguismo sugerir que meu pequeno leitor se curve ante os ataques de um adversário mais forte, mas no momento não me ocorre solução mais sábia para diminuir seu sofrimento. Talvez essa dica sirva para tantos outros que não tiveram a iniciativa, ou coragem, de escrever.

Depois de respondida a mensagem do garoto restou ainda a desagradável sensação de não ter conseguido atingir meu objetivo, que era levar algum alento para esta pessoa que sofre nalgum lugar do Estado do Paraná. A ele, minhas desculpas.

Espelho, espelho meu...

Há poucos dias estava surfando pelos canais de televisão, quando, de repente, me deparei com uma entrevista com o ator darling da vez Rupert Everett. Mr Everett, como alguns talvez possam não estar se recordando fez filmes de grande sucesso ao lado da mega star Julia Roberts - O Casamento de Meu Melhor Amigo - e estrelou o festejado “Sobrou para Você”, em que aparece ao lado de Madonna, entre outros. Trata-se de um ator inglês de quase dois metros de altura, que faz uma bela imagem na telona, (embora pessoalmente nem tanto) exibindo um queixo quadrado, olhos expressivos, boca bem cortada e lábios grossos. Ele despontou no teatro em Londres nos anos 80 ao lado de Kenneth Branagh colhendo prêmios e arrebatando crítica e público e ao mesmo tempo incendiando paixões entre admiradores de todos os sexos. Em pouco mais de dez anos, saiu do anonimato absoluto para fazer fama e fortuna (seu cachê atualmente está em torno de U$8.000.000,00 por filme) e vez por outra pode ser visto nas cerimônias de entrega do Oscar da Academia ao lado de beldades como Madonna, Michelle Pfeiffer, Wynonna Ryder e a própria Ms Roberts, que é sua amiga particular. Já vi pela televisão estrelas do naipe de Susan Sarandon cobri-lo de elogios dos mais envaidecedores. Os jornais cariocas informaram que ele esteve no Rio para passar Reveillon e foi visto, incógnito, na praia gay de Ipanema. Não sei se para seu deleite ou horror, lá passou praticamente desapercebido.O homem realmente é muito belo e inteligente, sabe o que está dizendo. E surpreendente. Faz alguns anos, ele resolveu revelar numa entrevista para um grande canal americano, cujo nome agora me falha uma peculiaridade de sua personalidade: ele é homossexual assumido. Dito assim isso pode parecer bastante corriqueiro numa página GLS, e é. Não é segredo de ninguém que Hollywood está coalhada de gays e lésbicas, alguns dos quais enfrentando tremenda pressão dos grupos de gays e lésbicas que insistem que seu coming out seria de suma importância para a causa homossexual. No entanto, trata-se do primeiro ator de projeção internacional que faz tal revelação. Perguntado por que resolveu relevar ele próprio esse detalhe que poderia, sozinho, derrubar qualquer promissora carreira naquela industria tão homofóbica ele disse que o fez simplesmente porque não quer ser constrangido por um repórter que lhe jogue esta pergunta na cara sem aviso prévio. Não quer dar o prazer do furo de reportagem para ninguém. Como Madonna e eu, Mr Everett é sua própria Kitty Kelly. Mas o que talvez tenha me chamado mais atenção foi o fato de ele ter dado essa entrevista abraçado ao seu cão. Não tenho a menor idéia de que raça possa ser, mas me lembro de ser um bicho tão grande que se ficasse de pé, talvez chegasse à altura do dono. Era praticamente um bezerro negro, exibindo uma bela e aparentemente cara coleira de ouro e brilhantes. Não sou amante de animais, mas aquele cão era realmente maravilhoso com seu pelo curto e brilhante. Ao final do bate-papo, quando perguntado sobre sua vida amorosa ele disse que, aos 43 anos, nunca se apaixonou, nunca teve namorado, nunca dividiu sua vida com ninguém, nunca foi paixão de ninguém, mas sempre o tolo apaixonado e aquele cão é o que dele mais próximo havia chegado o amor. De repente, aquele homem imenso se transformou. Uma extrema fragilidade lhe escapara aos olhos, e, com ternura, abraçou seu cão, abaixou os olhos e a entrevista terminou.
Isso talvez nos leve a algumas reflexões sobre poder, beleza, popularidade, fama, dinheiro e etc. De que valem todas essas coisas se nos sentimos sós? Creio que se não lhe fizesse falta alguma o amor, Mr. Everett nem teria se referido a ele. Poderia ter dito simplesmente que nunca teve ninguém e ponto, mas o cão vem lhe suprir que algo de que ele sente falta. Então, quando você for ao cinema da próxima vez e vir um artista de grandeza estelar e sonhar com uma vida de pretenso glamour nem que seja por um dia, não se esqueça de que o ônus e a delícia de sermos quem somos, só o próprio sujeito pode saber. E olhe lá.