02 abril 2008

Roleta Russa

Ontem fui visitar um amigo doente com pneumonia. Ele saiu do hospital há poucos dias, onde passou uma semana internado em quarto compartilhado com mais quatro pacientes e completa em casa a recuperação de uma das formas mais banais – se é que há alguma coisa de banal em ficar doente – de uma infecção causada pela bactéria pneumocistis carinii. Digo banal, pois trata-se de uma infecção causada por uma cepa das menos letais, pode ser destruída por um sistema imunológico saudável sem que ao menos dela tomemos conhecimento e, depois de instalada no organismo, pode ser debelada de maneira relativamente fácil com antibióticos. E teria sido não fosse pelo fato de meu amigo ser portador do vírus HIV, causador da AIDS.

Ele tem agora 39 anos de uma vida coroada de vitórias, segundo suas próprias palavras. Isto porque, tendo descoberto ser portador do vírus mortal à tenra idade de 18 anos, jamais sonhou viver o suficiente para ver seus sonhos realizados, estudar trabalhar, enfim, viver independente. E tudo isso e muito mais ele conseguiu realizar. Diz que o vírus o ensinou a sentir e dar valor ao presente da vida em sua maior dimensão porque lhe deu a mortalidade. Diz perceber o passar do tempo e goza a vida de forma intensa. Seus sentidos se aguçaram, tornou-se mais sensível e menos arrogante. Mudou até o perfil dos livros que escolhe para ler. Recentemente mandou tatuar nas costas os dizeres “memento mori” em letras góticas garrafais: “lembra-te que morrerás”.
Segundo ele, a máxima serve mais que o manjado “carpe diem”, porque ao mesmo tempo em que conclama para a vida, alerta para a inexorabilidade da morte.

Hoje ele vive no lucro, está já saboreando a sobremesa da vida, como ele mesmo gosta de dizer, brincando. Durante dois anos moramos juntos, dividindo as despesas, ajudando e aprendendo muito um com o outro e nossa amizade cresceu a ponto de volta e meia ele ainda me ligar só para dizer “we’re family”. Gosto de acarinhar a idéia de que um dia, no futuro, voltaremos a morar juntos para fazermos companhia um ao outro. Minha família e alguns amigos sempre acharam que éramos amantes, e eu, só de farra, nunca desmenti. Ele faz piada com o fato de ser HIV-positivo, porque não poderia ser diferente, embora não ache nada engraçada a delicada situação em que se encontra sua saúde. No entanto, jamais se colocou na posição de vítima.

Conheço alguns homossexuais americanos que, na sua insana busca de um culpado pelo fato de terem se contaminado com o vírus da AIDS, preferem culpar ao ator-feito-presidente Ronald Reagan por omissão na divulgação de campanhas de prevenção, ao invés de se implicarem no lugar de sujeito com o fato de que ninguém os obrigou a fazer sexo sem proteção, anonimamente com tantos parceiros quantos puderam arrastar para cama. Muito antes do advento da AIDS já existia um sem número de doenças que são evitadas pelo uso de preservativo; isso sem falar na higiene. E métodos contraceptivos por barreira mecânica (e.g. camisinha de tripa de carneiro) existem desde a antiguidade. Ou seja, olhando por esse prisma, se não há algoz, também não pode haver vítimas. Além disso, meu amigo nunca tentou tirar dividendos do seu mórbido fado, como, sempre segundo ele, o fazem alguns missionários - eu ia dizer militantes - da causa da AIDS que se matam de viajar mundo afora participando de congressos, e levantando verbas para custear programas e campanhas de prevenção no (já) famoso, e pouco frutífero AIDS-tour.

Sua alegria de viver é mais contagiante que o próprio vírus, que, se dependesse dele, não perturbava a ninguém. Quando morávamos juntos, muitas vezes ele me acordava antes das sete horas da manhã, o que para mim ainda é meio da noite, ao som altíssimo de Liza Minelli cantando Pet Shop Boys (you got the looks / I got the brains / let’s make lots of money), dançando pela casa enrolado numa toalha, tendo já feito seu cooper no Aterro, a barba e o café. Eu queria matar. A essa hora da madrugada meu espírito ainda vaga no limbo, fazendo vôos rasteiros desce aos umbrais mais escuros do el más alla e inspeciona meu caldeirão, que a essa altura já se encontra borbulhando ao fogo baixo, à minha espera. Só bem mais tarde, ali pelas dez, lentamente a vida me invade, começo a entender o que está se passando e meu mau humor matinal dá lugar a um via de regra pouco convincente joie de vivre. Seu bom humor constante tornava-se ainda mais irritante devido à minha secreta – embora jamais desfeita - suspeita de que ele vive em surto psicótico. Ninguém pode ser assim tão feliz, vivendo com uma espada incessantemente apontada para a cabeça, aquele “memento mori” sufocando o dia a dia: lembra-te, lembra-te, lembra-te! E eu me lembrei agora do “compre batom, compre batom!”

É claro que ele não toma para si a pecha de vítima, nem é o vírus parte integrante de sua personalidade e faz questão guardar segredo sobre sua condição no seu ambiente de trabalho. Parece ter descoberto, embora eu não tenha a menor idéia de como, que um vírus não é parte integrante do sujeito, não é da ordem do ser. Há 12 anos trabalha na mesma firma e ninguém sabe do seu prosaico segredo. Nem sua família. Não que ele se envergonhe de carregar o tal vírus, ou que não confie nas pessoas, ou que tema ser despedido, mas não quer ser tido como vítima, não deseja ser objeto de comiseração de seus pais, patrões ou funcionários. Movido por saudável orgulho, quer manter uma relação profissional a salvo da pieguice. Mostra suas qualidades na sua postura, exige respeito pelo que produz e considera o resto supérfluo.

Durante a visita de ontem falamos sobre essa prática hedionda e infelizmente cada vez mais popular que assola o meio homossexual nas grandes capitais do mundo: o barebacking. Trata-se de uma palavra é inglesa em que bare significa desnudo, desprotegido, e back significa traseiro, retaguarda; daí é fácil concluir a sutileza do vocábulo. Outra possível formação desta palavra pode estar relacionada com a cavalariça, pois barebacking também se refere à montaria sem sela, o que nos remete a uma pretensa sensação de liberdade: cavalo, cavaleiro, sol no rosto, cabelos ao vento e a natureza reinando ali na região de contato. Deve ser ótimo. Desconfio, no entanto, que a assadura daí resultante não deve valer a pena. Enfim, há gosto para tudo. Há certas dobras da alma humana de que eu preferiria não ter notícia, mas desta vez não pude evitar ficar sabendo: homossexuais estão fazendo sexo sem camisinha deliberadamente com a intenção de se deixarem contaminar com o vírus da AIDS. Há aqueles que chegam ao requinte da perversidade ao colocarem anúncios em jornais e revistas especializadas procurando alguém que seja HIV+ para fazer sexo passivo sem preservativo. Onde será que está a graça ficar doente anos a fio, tomar remédio com hora marcada e ver suas forças se esvaírem lentamente? Um vôo para a morte por uma janela descuidada não seria talvez mais rápido e eficaz? Por que o prazer do sofrimento deve preceder o grand finale?

Desde o complicadíssimo “Para Além do Princípio do Prazer” de Sigmund Freud (1920) temos notícia de que as pulsões de vida e morte se digladiam, se enfrentam, se equilibram e se anulam o tempo todo, temperando a nossa existência. O sujeito que fuma, assim como o diabético que adora doce lá no fundo sabe bem – e talvez até deseje – o que acontece com quem subestima prognósticos. Por isso as campanhas anti-tabagismo são risíveis pois, além de ineptas e caras, vão contra o desejo do sujeito. Há coisas que são declaradamente formações da pulsão de morte, mas o barebacking me parece um passo à frente, me parece mais uma escolha consciente do suicídio. Aqueles que se contaminaram acidentalmente durante ato sexual, ou partilhando agulhas para consumo de entorpecentes são tão responsáveis por sua saúde (ou doença) quanto os barebackers; estão todos diretamente implicados no ato, pois este resulta de sua livre escolha, com a diferença de que esse último sabia em qual buraco do tambor a bala estava e mesmo assim puxou o gatilho.

Não posso dizer que sinto piedade por essas pessoas pelo sofrimento que buscam ou por sua inglória escolha (nem dos fumantes, nem dos diabéticos que comem doce, nem dos que se enchem de cachaça e dirigem, e por ai vai), mas ainda me incomoda constatar que as perversidades e o mal estar, esse que é de todos, permeiam todas as relações humanas, e parecem realmente não ter fim. Assim, podemos afirmar com certa margem de segurança que viver, vivemos do e pelo outro, mas morrer, cada um morre de si.