29 dezembro 2010

O Poder do Mal

Um levantamento do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro apresentado no segundo semestre de 2010 aponta para uma diminuição no número de vítimas por balas perdidas em todo o Estado, com redução de 18,4%, mas o número de mortes aumentou 175%. De acordo com o estudo, 84 pessoas foram vítimas no período de janeiro a junho, sendo 11 fatais. Em relação ao mesmo período de 2009, houve uma redução de 19 vítimas. O relatório foi produzido baseado na definição popular de "bala perdida", termo que não constitui conceito jurídico ou sociológico. Assim, fica entendido como "vítima de bala perdida" a pessoa que não tinha nenhuma participação ou influência sobre a ocorrência no qual houve disparo de arma de fogo, sendo, no entanto, atingida. Os números de 2009 foram os seguintes: 103 pessoas vítimas de balas perdidas nos primeiros seis meses do ano, sendo quatro fatais e 99 não fatais.

Esses números são totalmente absurdos. Em que mundo vivemos? 175% de aumento! E as mortes causadas por mal uso de armas de fogo por militares? Foi notícia no Rio de Janeiro um policial que atirou contra um homem trabalhando dentro de casa porque confundiu com uma metralhadora a furadeira elétrica que o cidadão empunhava, enquanto esse estava a apenas 40 metros da vítima. Um policial abriu fogo contra um carro de passeio porque supunha que dentro dele havia bandidos. Dentro havia apenas uma dona de casa assustada e acuada como um bicho, com seus dois filhos pequenos. Uma das balas, descuidada, mas nem tão perdida assim, matou seu filho de dois anos, sentado na cadeirinha no banco de trás. Quem vai consolar essa mulher? Quanto dinheiro deveria o Estado pagar em indenização? Existe indenização possível que pague essa dor? É esse o preço que se tem que pagar para se viver em uma cidade grande? Quem será o próximo? Quando vai chegar a minha vez?

Mas será que essas balas seriam de fato “perdidas”? Qual seria a definição de “perdida”? Qual era o objetivo da bala quando foi produzida? Enferrujar na gaveta? Perdidas elas seriam se, uma vez disparadas, tivessem caído no mar ou na mata. Mas perfuram o corpo de alguém causando morte ou ferimento grave, cumprindo assim, a sua finalidade primeira. A quem creditar a culpa por essas mortes estúpidas? O franco atirador raramente é identificado e punido. A quem interpelar judicialmente por um filho abatido enquanto soltava pipas? Quem vai preso nesses casos? De onde partiu a bala? O absurdo da coisa é tal que serve apenas para acrescentar mais indignação às perguntas que surgem aos borbotões no bojo dessas tragédias. A coisa é tão séria, é tão sem propósito que se torna tarefa impossível falar do assunto sem usar superlativos e adjetivos óbvios. É inconcebível viver em uma sociedade em que o cidadão não tem a segurança de sair de casa com a certeza de voltar intacto. A bala que mata uma pessoa inocente não pode ser uma bala perdida, pois a natureza da bala é matar. Para ela não faz a menor diferença se a vítima é culpada ou inocente. Foi para isso que ela foi produzida e comercializada e colocada no tambor do revólver. A crônica policial das grandes cidades está repleta de tais casos e poder-se-ia fazer aqui uma lista interminável de nomes de vítimas fatais ou que sobreviveram seqüeladas, mas resolvi listar apenas os mais recentes.

Casos notórios de brasileiros que tiveram as suas vidas interrompidas por balas perdidas nos últimos anos:
• Édna Correa Lima, de 74 anos, e a neta dela, de 15, passavam pelo local quando houve um tiroteio entre policiais e bandidos.
Gabriela Prado Maia Ribeiro, 15 anos, baleada no peito, descendo as escadas do metrô.
• Vanessa Matos Ramos, de 29 anos, quando passava pela rua.
• Maria Isadora, de 2 anos, tiro no abdômen, no colo da mãe.
• Gustavo Vieira, de 11 meses, baleado na cabeça, no colo da mãe.
• Wellington Rodrigues, de 11 anos, alvejado durante troca de tiros entre policiais militares e traficantes.
• Gabriel Rocha, de 8 anos, brincava na rua quando, atingido no peito durante um tiroteio entre traficantes.
• Maria Eduarda, de 1 ano, dormia em seu quarto quando foi baleada.
• Ana Vitória Novaes dos Santos, de 6 anos, saía à rua com um urso de pelúcia nos braços, que ganhara no natal.
• Lázaro dos Santos, de 13 anos, levou um tiro no ouvido, enquanto jogava vídeo game.
• Esposa de William da Silva, 32, dentro de casa, o tiro bateu na parede e a atingiu na nuca.
• Deise Teixeira de Oliveira, 60, tiro na cabeça, dentro de um coletivo.
• Cauane Tomás de Almeida, de 11 anos, região do abdome.
• Otacílio Carvalho França, ficou paraplégico.

Não posso falar da natureza da bala de revólver sem me lembrar de uma fábula em que um escorpião pede a um sapo que o carregue nas costas para atravessar um pequeno riacho. O sapo se desculpou e disse que não poderia, o risco seria grande demais. O escorpião retrucou e o convenceu de que matá-lo seria tolice, pois os dois morreriam afogados. Convencido da lógica proposta pelo escorpião o sapo, inseguro, mas cheio de boa vontade, o deixou subir. Entretanto, quando estavam no meio da travessia o sapo sentiu uma picada mortal em sua nuca. Virou-se estupefato e o escorpião, constrangido, se desculpou dizendo: Não pude evitar. Esta é a minha natureza. Os dois morreram.

Amizades de anos e anos terminam em um segundo se um deles tiver a má sorte de dizer ou fazer algo que desagrade o outro. Uma inconfidência deixada escapar por descuido pode comprometer relacionamentos antigos. Já vi amizades de décadas ruírem por bobagem, suspeitas infundadas, senões. Casamentos felicíssimos deixam de existir num passe de mágica, se de repente uma dúvida se interpuser entre eles. Tudo de bom que existiu, a lembrança de toda a alegria, solidariedade e os bons momentos partilhados nada podem quando o Mal mostra suas garras. E não raramente saem da relação dizendo que não deu certo. Como não deu? Oito anos felizes não deram certo?

Quem se interessa em lutar pela paz, em contribuir para um mundo melhor ao invés de destruir vidas, me parece que terá trabalho em dobro, pois o Mal é mais potente que o Bem. É muito mais fácil e barato prejudicar do que fazer o bem. Alguém vai à macumba para fazer o bem a alguém? Tente afetar a vida de 300.000 pessoas com um só gesto. Você terá que lançar uma bomba nuclear sobre uma cidade para afetá-las todas imediatamente e de maneira indubitavelmente irreversível e eficiente. Tente tirar 300.000 pessoas da miséria absoluta e verá que uma vida inteira de dedicação e trabalho árduo não bastará. Deverá se tornar uma Madre Teresa de Calcutá e ainda assim, como ela, se curvar humildemente ante a sensação de fracasso. Quantas delas vivem e morrem em total anonimato todos os anos sem jamais serem agraciadas com prêmios Nobel?

A história é prodiga em exemplos tanto de uns quanto de outros. Herr Hitler conseguiu, com algum esforço e ajuda de dedicados aliados exterminar 6.000.000 de judeus, ciganos, homossexuais e dissidentes políticos em seus campos da morte. Mas creio que se ele os quisesse ajudar, transformar suas vidas para melhor, entrando assim para a história por uma outra porta, teria que estar vivo até hoje para executar sua obra.

Em uma linda colcha de tricot só se nota aquele ponto perdido, aquela laçada mal dada que se julgava disfarçada bem ali no cantinho. Você supôs que ninguém notaria? Enganou-se. Meses de trabalho duro diário recebem senão um comentário maldoso: Está maravilhosa, mas aquele pontinho ali é que estragou tudo. Numa ópera de quatro horas de boa música, a magnífica performance dos cantores e músicos vai para as cucuias por causa daquele dó de peito desafinado do pobre tenor. No dia seguinte, só aquela falha merece destaque nas críticas dos jornais. Luciano Pavarotti já em final de carreira foi vaiado em cena aberta no Teatro La Scala de Milão, o maior templo da música erudita mundial por causa de um resfriado. Sua trajetória artística impecável não bastou para que lhe poupassem do vexame. É parte do instinto básico do ser humano se comprazer com a desgraça alheia. Um acidente na beira da estrada, mesmo que não esteja obstruindo a pista pode causar um engarrafamento monstro por causa da curiosidade mórbida dos motoristas que diminuem a marcha e insistem em esticar o olho. Só notícia ruim vende jornal.

Essas coisas não são desconhecidas de ninguém, mas a maioria das pessoas prefere ignorá-las, como parte de um acordo tácito de felicidade tipo Poliana Moça. Três dias depois do enterro, ninguém mais se lembra da menina que morreu baleada dentro da escola. Frases de efeito, verdades tolas e truísmo pueril merecem lugar de destaque nas conversas cotidianas, pois assim a gente justifica o injustificável, explica o inexplicável e se engana dizendo que Deus sabe o que faz.

18 dezembro 2010

Os gays e suas mães

O homem é dono do que cala e escravo do que fala.
(S.Freud)

Quando perdi minha mãe, resolvi escrever para meus amigos e contar da minha perda. Fiz uma carta padrão e enviei para minha lista de amigos por email. Está transcrita abaixo.

Ola,
Minha mãe faleceu em Juiz de Fora ontem. Achei que devia lhe comunicar e escrever algumas linhas sobre quem era dona Carolina. Não fosse somente a admiração que tinha por ela como pessoa, guerreira, otimista delirante, o talento para dar o passo maior que a perna sempre sem pensar se vai dar errado lá na frente, sem dizer mas dando a entender que o maior fracasso do mundo valeu a pena tentar; mais que isso eu tinha uma aproximação especial com ela desde criança.

Herdei da minha mãe o talento de fazer virar o jogo, de não aceitar a adversidade de braços cruzados, humildade sim, mas aceitar humilhação, jamais! Analfabeta até a vida adulta dizia aos sete filhos que não temos talento para roubar, portanto, pra deixar de ser pobre lascado, o melhor é estudar. E ela conseguiu, todos nos formamos em alguma coisa. É dela o mérito que tenhamos quando adultos uma vida melhor do que a que experimentamos quando crianças, no interior de Minas.

Mamãe era servente escolar e ganhava salário mínimo.
Em dezembro de 1968, grávida de seis meses, saiu a transferência dela de Guidoval para Juiz de Fora. Contratou um caminhão e colocou em cima dele nossos parcos cacarecos e lá fomos todos juntos sem saber ao certo pra onde. Tinha uma panela de feijão cozido e ela comprou pães para comermos na viagem. Ela só havia estado em Juiz de Fora uma vez na vida. Papai não subiu no caminhão. Inseguro, ficou morando com a mãe dele até nos instalarmos na nova cidade. Só então ele chegou.

Por muitos anos vivi colado com ela, e agora vou ter que, como as lagartixas, me ver regenerando a minha metade que morreu com ela ontem.

No sábado à noite, quando ela já estava nos seus estertores, deu-se a festa de formatura de meu sobrinho, que a mamãe adorava. Desolada, sem animo para ir ao baile e dançar a valsa com o filho, minha irmã disse que não iria, não tinha condições. Mas uma outra irmã, mais velha, se lembrou da mamãe: "Rose, no dia do seu casamento há trinta anos morreu o irmão da mamãe, e ela foi assim mesmo à cerimônia. Quando voltou para casa, mudou de roupa e foi enterrar o irmão. Se ela estivesse aqui agora, te obrigaria ir ao baile do seu filho. Portanto, pare de chilique e vá se aprontar. E bem bonita!" E assim quase todos foram ao baile - e dançaram muito.
Na manhã seguinte, às seis horas, tocou o telefone.

O que fica dela é o achar que vai dar certo.
Não acredito em vida após a vida, em reencontro, em au-delà, mas ela estará agora e para sempre viva no meu coração e na minha memória.


Mãe e mulher não são a mesma coisa, são funções estanques com contornos bem definidos. Prova disso é que a visão de um seio de mãe amamentando um bebê é considerada anti-erótica, dificilmente excitaria alguém e funciona de maneira oposta à visão de um seio desnudo de mulher. Aquelas mulheres que não conseguiram ascender ao lugar de mãe, as que não souberam fazer a diferença desses papéis gostariam que seu filho fosse gay. Não há maneira mais eficiente de mantê-lo solteiro, longe de uma rival e, portanto, livre só para ela. E se o pai – ou qualquer outra pessoa que preencha este lugar – não fizer um corte, se não der um basta quando ela se excede nos cuidados e mimos, ela vai continuar tentando a vida toda. Só que o esforço da mãe, sozinho, não basta: é preciso que o filho também esteja disposto a participar da brincadeira. São precisos dois para se dançar um tango.

Ninguém pode desconhecer a preferência velada que as mães sentem por seus filhos homens e o relacionamento espinhoso que mantêm com suas filhas. O difícil de explicar, entender e aceitar são os motivos pelos quais elas agem assim. A teoria psicanalítica preconiza que ali pelos três anos de idade, quando a menina se dá conta de que os meninos possuem um pênis e ela não, ela sente um grande pavor, intui que deve ter feito algo terrível, de que ela não se lembra, para que este lhe tenha sido cortado.

A grosso modo, por isso ela passaria o resto da vida devendo um falo ao mundo, e para compensar sua falta, coloca um milhão de outras coisas em seu lugar. Afinal, se dois ou três pares de sapato bastam para manter seus pés protegidos, por que desejar duzentos? Quando finalmente, já adulta, ela dá à luz um menino, é como se tivesse quitado sua dívida com o mundo, está dela remida e vai fazer o que for possível para ficar próxima dele o máximo de tempo possível. A rixa que as sogras têm com suas noras advém daí: é que estas são as suas sucessoras e, via de regra, suas rivais. Nenhuma moça é boa o suficiente para tomar conta do falo que essa mulher engendrou dentro de si, botou para fora e carregou em segurança até ali.

Os gays são os filhos ideais para qualquer mãe, são eles que não as abandonam, que as fazem companhia, que as fazem rir, que cuidam delas quando ficam velhas e doentes, pois jamais colocaram outra mulher em seu lugar. Um homem gay adulto, mesmo casado com outro homem continua sendo considerado solteiro por ela e por sua família, portanto, disponível para cuidar da mãe sempre que necessário. O lugar de destaque dessa mulher estará para sempre preservado no imaginário de amor perfeito desse homem. O amor deles é reservado para sempre para essa mulher ideal que eles conheceram quando ainda eram bebês.

Ao contrário do que muitos acham, ninguém nasce gay, ou lésbica. A sexualidade, entre outras características, vai sendo formada aos poucos, através de identificações por que a criança passa na primeira infância. O que de fato nascem são bebês que só chegaram a nascer por serem o resultado do desejo de alguém. Se serão reconhecidos como filhos por quem os pariu, isso já é outra questão. O bebê, ao nascer poderá ou não ser adotado como filho pelos seus pais. O fato é que mesmo antes de nascerem já não pertencem a essa mulher, pois já estão inscritos simbolicamente na cultura na qual ela vive. Já se sabe de sua existência, já se fala deles, já se refere a eles no masculino ou feminino, já detêm direitos por lei. Prova disso é que mesmo estando dentro do corpo dessa mulher, ela não tem, por lei, direito de dispor dessa criança a seu bel prazer. Mesmo nascendo feito um cd virgem, são portadores de um imenso potencial de virem a ser o que quiserem na vida.

Sem o desejo de alguém, a cria humana morre minutos após nascer. A nossa espécie não é como outras do reino animal. Requeremos cuidados intensos durante pelo menos os primeiros cinco ou seis anos de vida. Daí para frente a criança meio que sobrevive sozinha. Para comprovar minha teoria há as crianças que vivem em situação de rua, vendendo doces em sinais de trânsito. Mal aprendem a falar e já sabem esticar o bracinho e pedir dinheiro em troca de sua mercadoria.

Quando o bebê nasce, ele tem muito poucos desejos, são apenas as necessidades básicas para se manter vivo: alimento e fralda limpa. Está ali presente também uma demanda de amor que, ao ser ou não atendida, pode determinar a saúde desse bebê. Não é desconhecido de enfermeiras da pediatria o fato de bebês filhos de parturientes deprimidas, e, portanto, incapazes de demonstrar afeto, recusarem o alimento nos primeiros meses de vida. Alguns morrem de anorexia. Nesses primeiros meses de vida a mãe – ou a tomadora de conta, que seja – tem como suprir cem por cento de suas necessidades. Ao se desenvolver para se tornar adulto, entretanto, o sujeito vê esses desejos se multiplicarem até se tornarem incontáveis, todos eles sempre prometendo – mas nunca de fato entregando – a verdadeira e duradoura felicidade. Tão logo se satisfaz um desejo, necessidade ou capricho, outro igual ou mais premente já se configura no horizonte. E assim passamos a vida toda correndo, perseguindo a tal felicidade. As coisas capazes de tamponar esse buraco, é melhor se afastar delas. Qualquer tipo de fanatismo, o religioso mais comumente, perversão sexual e drogas pesadas cumprem muito bem esse papel.

Mal o bebê abre a boca e chora avisando que lhe falta algo, de lá vem ela correndo, descobre o que ele deseja e lhe supre imediatamente. Mais ou menos aos oito meses de idade, segundo alguns autores, uma paixão que busca recompensa erótica se forma no bebê tendo a mãe como objeto de prazer. Não importa se é menino ou menina, ambos se apaixonam perdidamente pela mãe e não querem mais se desgrudar dela, o pai passa a ser um empecilho entre os dois. O que cada um vai fazer com essa paixão desmedida – e não correspondida – é que vai determinar a direção que a sexualidade dessa pessoa vai tomar mais tarde.

O menino de três anos, que mais tarde se tornará homossexual, ao perceber que essa mulher fálica por quem ele está apaixonado e de quem ele espera a tal recompensa erótica jamais será dele, que ela não poderá lhe dar o que ele dela espera e que ela já pertence a outra pessoa (ao pai, a outra mulher e mais uma lista de impedimentos) ele toma o seu lugar, transforma-se nela e passa a desejar o pênis do pai. Se o inimigo é mais forte do que eu, uno-me a ele. Nunca é demais lembrar que toda essa operação é inconsciente e ninguém seria estúpido o suficiente para afirmar que crianças desejam fazer sexo com seus pais.

O prazer erótico dos bebês ainda não está localizado em seus genitais, seu corpo é uma zona erógena por inteiro, por isso diz-se que sua sexualidade é polimorfa perversa. Todos já viram um bebê ter uma ereção durante o banho e urinar um jato comprido no rosto da mãe. Ela ri como deve rir e jamais imagina o que aquilo significa para ele. E o pai ou mãe que ousar realizar aquilo que filho/filha inconscientemente fantasia, estará destruindo de maneira irreversível seu aparelho psíquico. A “saúde mental” de pessoas consideradas psíquica e emocionalmente estáveis é calcada em cima da falta, do “eu não tenho”, “eu gostaria, mas não posso...”, “ah, se eu pudesse...”. Esse é o primeiro não com que havemos de aprender a lidar. Se o corpo receber aquilo com o que fantasia, a mente da criança pequena se decompõe, vira cocô. Ela não tem como se colocar frente a uma equação tipo xis sobre zero.

A partir dessa identificação simbólica com a mãe, alcançada através da união ao objeto de seu desejo, o menino passa a ser um apêndice de seu corpo físico imaginário. Não é raro ver gays falarem de suas mães como extensões de seus corpos físicos: mamãe e eu somos uma só pessoa, ela fala e eu assino embaixo e quando ela fica doente eu sofro tanto quanto ela e vice-versa. Mamãe é uma bailarina maravilhosa. Sou uma cópia mal feita dela. Ou será que ela é que é cópia minha? Quem nunca ouviu um gay falar assim de sua mãe? E essa aproximação não esmaece com os anos, gays idosos relatam jamais ter amado outra mulher na vida, as conversas giram invariavelmente em torno dessa mulher fantástica. Também não é rara a semelhança física entre eles, com trejeitos, andar e risada idênticos um ao outro, do que eles têm grande orgulho, pois seu reconhecimento parece coroar o esforço de ter conseguido ser parte do corpo dela. Infelizmente, o que muitas mães não sabem é que a sexualidade de seus filhos encaminhou-se nessa direção por causa um amor desmedido que não pôde acontecer.

Quando o coroado estilista inglês Alexander McQueen perdeu a mãe em fevereiro de 2010, o golpe parece ter sido demais para ele: dez dias depois de sua morte e véspera do enterro dela, ele se enforcou com seu cinto marrom favorito em seu guarda-roupas, sozinho em seu luxuoso apartamento de Londres. Dias antes ele havia dito na imprensa que metade dele havia morrido com ela. Esses dados podem ser facilmente averiguados na internet.

Porque vivemos em um caldo cultural heteronormativo, em que o macho adulto branco está sempre no comando e as mulheres aceitam caladas receber em média setenta por cento do salário dos homens para executar igual tarefa, poucas mães têm a clareza de espírito para poder aceitar e amar seus filhos homossexuais do jeito que eles são. Obnubiladas por séculos sob o jugo dominador dos homens, elas próprias, e sem se dar conta, são as que educam seus filhos para serem machões porque foi dessa forma que nasceram e foram criadas. Elas próprias, paradoxalmente, não raramente expulsam de casa seus filhos adolescentes quando descobrem sua homossexualidade.

Tudo na cultura judaico-cristã ocidental é feito pelo e para os heterossexuais, filmes, novelas, televisão, restaurantes, lojas, etc. O certo é saber que o certo é o certo. E ai de quem sair um milímetro da risca de giz. Em pleno século XXI, o rapaz que se atrever a demonstrar sua afetividade pelo namorado em público poderá ser assassinado. O simples caminhar pelas ruas em grandes cidades brasileiras pode ser arriscado. Sempre se matou muitos gays no Brasil, muito mais que no país dos aiatolás. Se nos causa revolta ver fotos de jovens de vinte anos enforcados em praça pública no Irã por sua orientação sexual, saibam que em nosso país a cada três dias um homossexual é assassinado pelo mesmo motivo – e ninguém vai preso (dados levantados pelo Grupo Gay da Bahia). Entretanto, só depois do advento das câmeras de segurança e da militância incansável de grupos que lutam pela igualdade de direitos, o assunto passou a ser mais abertamente discutido nos meios de comunicação e os criminosos processados.

O traço cultural do machismo vem sendo passado de geração em geração desde muitos séculos. As meninas devem ser sempre boas, obedientes e castas, os meninos podem tudo, principalmente no que se refere a sexo heterossexual. As meninas são vigiadas o tempo todo e sua virgindade deve ser protegida a qualquer custo como se disso dependesse sua honra. O filho, mesmo traindo a namorada, conta com total apoio e discrição parental. Em Minas Gerais os pais dizem toma conta de sua cabrita porque meu bode está solto. Isso quer dizer, meu filho pode comer sua filha quando ele quiser, tome conta dela se não quiser vê-la desvalorizada. Vivendo nesse meio, não é difícil imaginar que uma mãe não conseguiria aceitar facilmente seu filho homossexual. A situação mais comum que se vê desenvolver entre mãe e filho gay é aquela adotada pela política de inclusão de gays nas forças armadas americanas: você não me conta e eu não lhe pergunto, e assim a gente vai fingindo que se engana e se aturando e se amando mutuamente.

O Grupo Arco Iris de Cidadania LGBT do Rio de Janeiro desenvolve um importante projeto social chamado Entre Garotos, que acolhe rapazes de quinze a vinte anos de idade em situação de vulnerabilidade. Em três anos já atendeu a mais de cento e cinqüenta garotos que relatam histórias escabrosas de abuso físico e psicológico sofrido dentro de casa, escola e grupo religioso. Muitos deles são expulsos de casa pelos pais e não têm a quem recorrer, pois a família muitas vezes lhes fecha as portas. A situação de humilhação associada à baixa auto-estima acaba por lhes confundir a visão e eles se tornam promíscuos, abandonam os estudos, abusam de álcool, passam usar drogas e, no limite, se infectam com o vírus da AIDS.

Quanto à D. Carolina, por mais que eu tentasse, ela preferiu evitar uma conversa franca a vida inteira. Nunca me perguntou nada acerca de minha sexualidade e saía sempre pela tangente quando eu tentava conversar com ela a respeito. Com medo de ofendê-la com indiscrições, eu aceitei jogar seu jogo. Ninguém pergunta nada que já não saiba a resposta, ou que não tenha condições de ouvir. Cada um conhece seus limites. Por comodidade ou receio, nunca saberemos, ela fez com que a franqueza não fosse a tônica de nossas conversas. Pouco antes de falecer ela esteve em minha casa para uma rápida visita, num momento de rara audácia em revelações. Raramente esteve aqui, mas quando vinha sempre ficava pouco e sempre com a bolsa no colo em posição de desconforto ou pressa. Disse que minha casa era bonita, que tinha orgulho das coisas que conquistei na vida e mencionou a trajetória de nossa família, mas que não podia aceitar o meu “estilo de vida”. Não explicou exatamente o que queria dizer com aquilo, mas interpretei como uma referência velada ao fato de ser eu casado com um homem e ter adotado um menino, ao invés de ter feito um. Lamento que não tenhamos ultrapassado esse limiar. Desperdiçamos tanto tempo com abobrinhas quando poderíamos ter conversado sobre o que realmente interessa. Mas fomos o que pudemos ser um para o outro.

Uma vez li numa lápide: As lágrimas mais amargas derramadas sobre túmulos são aquelas por palavras deixadas por dizer, por coisas deixadas por fazer. Quanto a isso estou tranqüilo, pois eu disse tudo o que pude dizer, respeitando os seus limites.
Minha admiração por ela vai estar sempre acima disso, que hoje, em perspectiva, vejo como apenas um detalhe.