03 junho 2010

Tudo Passa

Muitos anos atrás, quando eu ainda vivia à procura de um grande amor, caí inadvertidamente de amores por um rapaz judeu de nome Bruno. Eu o conheci em uma das reuniões semanais do Grupo Arco Iris. Trabalhamos juntos em uma oficina sobre afetividade e após a essa primeira sessão eu estava irremediavelmente apaixonado por ele. Ele era lindo, inteligente, derramava charme e tinha 10 anos a menos que eu. Esse detalhe não me impedia, entretanto, que eu vislumbrasse um romance entre nós.

Nas semanas que se seguiram eu passei a convidá-lo para se sentar no meu grupo e me desdobrava em lhe dar toda atenção que eu julgava abririam as portas de seu coração. Depois das reuniões saíamos com um grupo de amigos e bebíamos um chopp a caminho do ponto de ônibus. Ele morava em Jacarepaguá e trabalhava em Botafogo. Para quem conhece o Rio, isso equivale a viagens diárias superiores a 40km dentro da cidade.
Na sexta feira ele freqüentava a ARI, uma sinagoga em Botafogo, para o serviço do shabbat, só depois disse ele se dirigia ao GAI. Como eu não sabia mais o que fazer para estar alguns momentos extra ao seu lado e chamar sua atenção, fiz com que ele me convidasse para ir até lá e passei a freqüentar com ele o templo, de quipar na cabeça e tudo. Quanta firula.

Em um desses cultos o rabino contava a história de um reino distante durante aquilo que percebi como a hora do sermão. Nesse reino distante o rei tinha uma filha em idade de casamento e prometia sua mão àquele homem, jovem ou velho, feio ou bonito, forte ou fraco, que lhe trouxesse o maior tesouro que encontrasse. Todos os candidatos do reino se reuniram à porta do palácio e se inscreveram. Eram centenas de homens que sonhavam com a mão da linda princesa. Explicadas as regras, partiram todos em direção aos quatro cantos do mundo em lombo de burro, cavalo, camelo, dromedário, elefante, à pé, sei lá, de navio e caravela.

Exato um ano após a partida, começavam a chegar os animais puxando carroças e seus donos carregados de caixotes e baús repletos de ouro, jóias, diamantes que eles depositavam em frente do trono real. O rei e seus assistentes, paciente e cuidadosamente, examinavam e mandavam pesar cada ítem e seus secretários iam anotando em um caderninho tudo que esse ou aquele cavalheiro trouxe de sua jornada pelos cinco continentes, gelados ou ensolarados. Era riqueza que não acabava mais e em pouco tempo o salão reluzia de tanto ouro e pedras preciosas. O rabino, contudo, não entrou em detalhes de como esses homens conseguiram amealhar tanta riqueza em tão pouco tempo.

Ao final da longa fila apareceu um sujeito franzino e amarrotado. Ele não trazia baús cheios de ouro. Aproximou-se do trono real e, sem dizer palavra, estendeu a mão. Nela havia apenas uma pequena caixa. Todos os circunstantes riram a debalde. Como alguém teria o despautério de se aproximar do rei com apenas uma caixinha na mão? O que haveria nela? A chave da Arca da Aliança, talvez? Mas o rei era sábio e não reagiu negativamente ao que os outros julgavam ser uma afronta. Ele se curvou e tomou na mão a pequena caixa. Dentro havia apenas um pequeno anel. Ele o retirou com cuidado e o examinou contra a luz. Para sua surpresa era um anel de lata, daqueles bem baratos, certamente teria sido adquirido num mercado das pulgas, pensou. Ao olhar com mais cuidado verificou que dentro dele havia gravada uma inscrição em hebraico “זה גם יעברו” (Isso também passará). Estávamos em uma sinagoga, a língua oficial, claro, é o hebraico.

A essa altura a balbúrdia já havia se instaurado no recinto. Todos falavam alto, reclamando da atenção que o rei dedicava àquele impostor. O rei exigiu silêncio e meditou longamente sobre o que acabara de ler. Para espanto geral, após alguns momentos, decidiu que sua filha se casaria com esse homem, o que trouxe o anel. Pelo menos para ele, tal ensinamento valia mais que qualquer quantidade de dinheiro e jóia. Também não foi informado se o rei devolveu os baús com as jóias aos que os trouxeram.

O rabino passou então a explicar o valor daquele aprendizado. Disse que em qualquer situação, na maior alegria assim como na maior tristeza que alguém possa experimentar, do nascimento de um filho desejado, do casamento da filha única a uma perda de ente querido, ao holocausto só o que se pode ter em mente é que isso também passará. É a única certeza que temos: tudo passa.

Aquelas palavras calaram fundo em mim e olhei de soslaio o objeto de meu desejo, de pé ali do lado, contrito, balançando levemente a cabeça como uma árvore ao vento, o olhar pregado no rabino. Pensei: o que é que estou fazendo aqui? Nem sou judeu! Sou até ateu! De que serve estar correndo atrás de um sujeito que já deixou claro não ter o menor interesse em mim? Desde que ouvi falar sobre o princípio que rege as vacinas aprendi que o que não me mata, me torna mais forte. Por mais que eu estivesse sofrendo de amor romântico por alguém que me queria apenas como amigo, não fazia sentido dedicar mais do meu tempo e investir mais libido nele.

Ao final do shabbat, saímos em silêncio, deixei o quipar na cesta que estava do lado de fora sinagoga, apertei-lhe a mão em despedida, entrei no meu fusca velho e fui para casa. Naquela rua escura de Botafogo, sentado dentro do carro, meditei por alguns instantes sobre o sentido das coisas, mentalmente arquivei o garoto na pasta dos amores impossíveis, enxuguei uma lágrima atrevida que insistia em molhar-me a face e liguei o motor. Foi assim como veio. Ninguém viu. Ninguém soube de nada.

Deixei de freqüentar o grupo temporariamente e quando voltei, ele havia ido embora. Não houve telefonemas. Nunca mais nos vimos.

Imagine

Imagine

Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too


Quando eu era adolescente e estudava inglês no IBEU um dia o professor nos trouxe a letra de uma canção de John Lennon para traduzirmos e cantarmos juntos. Era Imagine. Tudo bem, a canção era e ainda é linda, mas quando chegava a parte Imagine there is no religion eu fiquei em dúvida. É que naquela época eu ainda acreditava que existia apenas uma religião no mundo: a católica apostólica romana, praticada pela minha família e a idéia de que ela deixasse de existir em nome de um mundo melhor me confundiu. Só muitos anos mais tarde uma observação mais aguçada do mundo à minha volta me fez entender o que John Lennon queria dizer: as religiões constituem uma das principais causas das guerras e massacres que grassam pelo mundo.

Mesmo hoje, em pleno século XXI, muitas vezes é a fé que define aqueles a quem podemos matar. Terroristas do Jihad têm o dever quase sagrado de matar infiéis. Sunitas e xiitas se engalfinham diuturnamente numa guerra sem fim no Iraque, tudo em nome da verdadeira sucessão do Profeta; evangélicos fundamentalistas invadem terreiros de umbanda no Rio de Janeiro e destroem suas imagens e objetos utilizados em seus rituais. Enquanto isso, o ocidente se ocupa em incutir a democracia em estados tradicionalmente teocráticos, a saber, o mundo islâmico, e o fazemos pelo método convencional: atirando-lhes bombas sobre as cabeças. É claro que as religiões não detêm o monopólio de toda a violência que o mal-estar causa na cultura. Se não fosse pela fé, encontraríamos certamente outros meios para massacrar nossos semelhantes, como a cor da pele, a língua que falam, sua origem, etnia, ou, no limite, a maneira com que usam seus penteados. A raça humana já deu provas de sobra ser socialmente inviável, e só com muito esforço nos aturamos uns aos outros no dia a dia. Mesmo com toda a eficiência que conseguimos alcançar para superar esses obstáculos, é inegável que a religião serviu e serve como combustível para a barbárie.Operando totalmente no obscurantismo, afirmando dogmas improváveis, a religião tem como seu principal instrumento de opressão e coerção a culpa, que ela com maestria e insidiosamente incute na cabeça das pessoas para dominá-las, manter uma certa hierarquia de poder e, não raramente, auferir lucro.

É claro que não dá para provar que algo não existe, o que quer que seja, mas a idéia mesma de um Deus supremo faz tanto sentido quanto a de Papai Noel ou o coelhinho da páscoa. E alguém consegue provar que nalgum lugar perdido de uma floresta gelada no norte da Finlândia não mora o bom velhinho? Convenhamos, virgens não costumam sair por ai dando à luz, e isso levando-se em consideração que naquela época ainda não haviam sido desenvolvidas técnicas de inseminação artificial, nem se pode acreditar em ressurreição. Entre no INCA e verá quantos casos eles contam por ano. E quem ousar dizer que um judeu não transformou pão ázimo em carne e vinho em sangue há dois mil anos estará cometendo pecado mortal e poderá ser excomungado. Transubstanciação para setores religiosos não é apenas simbolismo: é a verdade. Aconteceu mesmo e ponto. Dogma não se discute.

Por desconfiar desse absurdo em público o teólogo cristão Berengar de Tours (c.999-1088) foi preso pela igreja e torturado, provavelmente até jurar que estava ele mesmo presente na derradeira ceia e viu quando o corpo foi comido e o sangue foi bebido. Mas nem tanta sorte teve o clérigo John Frith, que foi queimado vivo em 1533 por recusar-se a acatar a literalidade de tal falácia. Galileu Galilei precisou abjurar do heliocentrismo a favor do geocentrismo perante um tribunal da Inquisição, já Giordano Bruno não teve o mesmo fado: foi queimado vivo em 1600 por defender que o universo é infinito e que a terra é apenas mais um planeta perdido num sistema solar qualquer. Morreu na fogueira com tábua e pregos na língua, para parar de "blasfemar". O problema é que a Verdade da religião só faz sentido dentro do escopo dela própria, pois trata-se de uma estrutura extremamente frágil, baseada na fé, que nao resiste a outro tipo de abordagem. Por ter o caroço duro, como aquele da Ciência, a religião se mostra refratária a todo e qualquer questionamento a cerca de seus alicerces.

Há outras sandices descritas nos Livros Cristãos que merecem, senão serem analisadas sob o escrutínio do rigor científico, pelo menos ser mencionadas, como a ascensão do Filho aos céus e mais tarde, da Mãe; a permissão para dominar nações inimigas para se fazer de seu povo escravos (Lev 25, 44)1; homossexualidade é uma abominação (Lev 18:22)2; a permissão da venda de uma filha como escrava para saldar uma dívida (Êxodo 21:7)3; a permissão para se apedrejar hereges e adúlteras em praça pública; a determinação de que comer frutos do mar é abominação (Lev 11, 12)4; a proibição de se plantar dois tipos diferentes de semente no mesmo campo e de se usar roupas feitas com dois tipos de material (Lev 19,19)5; a proibição do contato com uma mulher durante o seu período menstrual (Lev 18,19)6, a proibição de se aproximar do altar do Senhor se o sujeito tiver algum defeito físico (Lev 21,16-20)7. E por ai vai.

Se perguntadas sobre suas opiniões sobre a guerra as três grandes religiões irão sem dúvida alguma condená-la. Então eu me pergunto: para que serve a religião, afinal? O crente responderá sem muito ponderar: para que honremos a glória de Deus e pedir-lhe proteção. Não dá para negar o valor agregador da religião, pois ela reforça laços sociais importantes entre os membros de uma comunidade e geralmente condena atos de violência seja ela por que motivo for. Basta, entretanto, que se considere uma outra comunidade, com costumes religiosos diferentes para se instaurarem a suspeita e a má vontade. Há ainda aqueles que apostam que a predisposição que o homem tem pelo sobrenatural é resultado aleatório do módulo dos circuitos de nosso cérebro que nos torna crianças obedientes, acreditando, sem nenhum espírito crítico, nas histórias que nossos pais nos contam. Afirmam que a fé tem uma base neurológica, que ela faria parte de um cérebro espiritual, uma rede de ativações neuronais que é independente das conexões do cérebro racional. São os cientólatras impedernidos.

Não sou contra a religião, foi por ela que J.S.Bach compôs as peças musicais mais lindas e inspiradas com que o gênero humano pôde sonhar, belíssimos quadros foram pintados e esculturas fenomenais foram esculpidas, catedrais milenares, verdadeiros gozos da arquitetura, foram erigidas em nome da fé. Mas ao mesmo tempo, a religião é um fenômeno interessantíssimo. Somente essa matriz de pensamento faz com que pessoas inteligentes e de maneira geral racionais se comportem como crianças à espera do bom velhinho.

Para Sigmund Freud, pai da psicanálise o homem inventou Deus numa tentativa de suportar as intempéries, um meio de dar estrutura a grupos sociais lassos livrando-se assim do desamparo infantil inerente ao ser humano. Todas as culturas por ele investigadas possuíam algum tipo de contato com a dimensão divina. Para ele a idéia mesma de um Deus é “tão patentemente infantil, tão alheia à realidade que a qualquer pessoa que abrigue algum sentimento de benevolência para com a humanidade chega a ser doloroso pensar que a grande maioria dos mortais jamais será capaz de ascender para acima desse nível de visão de mundo”8. Ainda segundo ele a religião prejudica a capacidade de escolher e de se adaptar do indivíduo por que impõe a todos igualmente, e do mesmo modo, o caminho certo para se obter a felicidade e para se proteger dos sofrimentos da vida. A técnica empregada para isso seria desfigurar a imagem do mundo real de modo delirante, o que tem como pressuposto a intimidação da própria inteligência. Por isso mesmo ela é bem sucedida em poupar muitos seres humanos da neurose individual a favor da coletiva.

Quando leio sobre os cataclismos que volta e meia assolam nosso planeta causando milhares de vítimas todos os anos não posso deixar de me lembrar do dilema de Epicuro proposto ainda na Antiguidade: Se Deus é bom e onipresente, não poderia haver mal sobre a terra; havendo, ou Deus não quer acabar com o mal – e não é benevolente, ou não pode fazê-lo– e não é onipotente. O que será que um possível Deus quererá nos ensinar com um avassalador tsunami na Ásia, com um resultado de 153.000 vidas ceifadas, ou de um terremoto no Haiti, matando milhares de miseráveis? Qual seria o propósito dessas catástrofes, senão o de nos ensinar alguma coisa? Mas a mente de Deus é inescrutável, portanto, só se podem fazer conjecturas a respeito de Seus desígnios. Se há uma idéia que se nos afigura insuportável é a de que tanta destruição possa ser somente fruto de um movimento aleatório e imprevisível de placas tectônicas. E me parece que é justamente para combater a idéia de que o acaso é que está no comando que criamos a idéia de Deus.

Se há um Deus de bondade, melhor fora se houvesse logo dois: um da ovelha, um do lobo; um do assassino, um de sua vítima; um do enforcado, um de seu carrasco. E, não menos importante, um para cada goleiro na final do campeonato. Pois, além de colocá-Lo na difícil situação de ter que escolher entre dois filhos, rezarem ambos para o mesmo Deus, pedindo exatamente a mesma coisa, não faz o menor sentido. Um dos dois teria que se resignar ante a decisão do altíssimo. Afinal um pai que, podendo, nada faz e assiste impávido seu filho próprio e único filho perecer crucificado não merece meu respeito. Já nos seus estertores, o Cordeiro de Deus ergue os olhos para os céus e clama: Pai, por que me abandonaste? Dizer o que desse pai?

Ao mesmo tempo em que, em plena epidemia da AIDS a igreja católica é contra o uso da camisinha e tolera o ato sexual apenas quando este se destina à procriação, os judeus fazem alegremente aliança com Adonai ofertando a ele o prepúcio de seus filhos recém-nascidos, talvez na esperança de que Ele o use no dedo. Já os muçulmanos, depois de passarem por toda sorte de privações na terra, quando morrem almejam ir para o paraíso para finalmente desfrutar do vinho proibido na terra (Suras 83:25 e 47:15)9, fartar-se de carne de porco (52:22)10 e deliciar-se com virgens (44:54 e 55:70)11 e “mancebos eternamente jovens” (56:17)12. Se estas coisas todas já existem na terra, ai inclusive as saunas gays pipocando por todo lado, por que esperar tanto?

Quanto a mim, ateu contumaz, conto-me entre o magro 1% da população13 que dispensa a hipótese divina e celebro secretamente a religiosidade do povo brasileiro. Pois devido à nossa relativa tolerância à diversidade religiosa, há aqui menos espaço que em muitos países ditos civilizados para se cometerem crimes em nome de um Deus monoteísta.

O filósofo tedesco Martin Heidegger postulou a Geworfenheit14, teoria de acordo com a qual fomos atirados aleatoriamente e estamos todos abandonados à própria sorte num mundo sem propósito, que já existia e que vai continuar existindo depois que partirmos, sem que dele tenhamos conhecimento prévio ou a opção individual de escolha15. Estamos todos condenados à vida (Dasein)16 até que dela sejamos escusados. Já na esfera do simbólico, ou bem há um Deus atuante e com um propósito, ou bem somos o produto da inopinada mistura de uma molécula de carbono agarrada a mais dois ou três elementos químicos baratos (N,H,O,P,S). É nessa segunda hipótese que me fio.

• 1, 2,3,4,5,6,7- dados levantados na internet
• 8 - FREUD, Sigmund – O Mal-estar na Cultura
• 9,10,11,12 – SCHWARTSMAN, Helio– Deus e o Jardim das Delícias - Pensata online – Folha de São Paulo ;
• 13 - Pesquisa Veja- Vox Populi – 99% dos brasileiros acreditam em Deus; 83% acreditam na vida eterna no paraíso; 69%crêem em punição e recompensa após a morte; 55% julgam haver inferno ou punição eterna; 51% acreditam na existência do Diabo
• 14 - A tradução ao pé da letra seria facticidade, mas podemos pensar também que essa palavra se origina do verbo alemão werfen, que significa atirar, lançar, jogar. Geworfen seria o particípio passado dele: atirado, jogado, lançado. O sufixo heit faz substantivos femininos. Daí penso na condição ou estado de ter sido lançado.
• 15– Heidegger, M. 1962 Being and Time, Harper & Row, New York
• 16 – ao pé da letra: estar lá, em que lá é o mundo.