31 março 2011

Irmã Imaculada

Há uns oito anos fui convidado pelo sogro de uma aluna particular para dar aulas a alguém a quem ele se referia como sua “mentora espiritual”. Ele era um homem religioso e sério e, cautelosamente, explicou que sua mentora era uma freira que vivia enclausurada em um convento e perguntou se eu me oporia a ir lá uma vez por semana para dar aulas de alemão. Ele pagaria pelas aulas. Não me opus.


Como tratava-se de aulas de conversação, eu sabia que ouviria estórias interessantes contadas por alguém que vive apartada da cultura, por sua própria escolha. Só esse detalhe já teria garantida minha aquiescência. No dia combinado estava eu lá, às oito de uma manhã de sol recalcitrante. A essa hora do dia um calor senegalês pintava com tintas fortes a paisagem estonteante que se vê do adro com chão de pedra, debruçado sobre o centro do Rio de Janeiro. Parei perplexo diante da imponente fachada do prédio, contemplei a beleza de sua arquitetura barroca, e inventei por longos minutos um pouco de sua história. Que tipo de gente pode escolher se isolar do mundo, imaginei?



Fui fazer minha pesquisa e descobri que o Convento de Santa Teresa é produto da dedicação de Jacinta Rodrigues Aires e sua irmã, Francisca, que conseguiram autorização do Governador Gomes Freire de Andrade, Conde de Bobadela, para a construção de um convento de Carmelitas Descalças dedicado a Santa Teresa de Ávila. O Governador deu-lhes um grande terreno e a antiga capela construída em 1620 no Morro do Desterro (mais tarde chamado Morro de Santa Teresa). Tal convento seria o primeiro convento feminino da cidade do Rio de Janeiro. Em 1751 as irmãs e outras religiosas se transferiram para o Convento. Ali, as religiosas vivem isoladas do mundo exterior, ou seja, enclausuradas. Assistem às missas,diariamente, atrás de grades. Segundo irmã Imaculada os jardins do pátio onde estão a Igreja e o Convento possuem muitas roseiras, o que a faz se lembrar de passagens bíblicas.

As obras começaram em 1750, no lugar da capelinha, e em 1757 as primeiras freiras já o habitavam, ainda que as obras prosseguiram por muito tempo. A fachada possui uma torre sineira entre a igreja e as habitações conventuais. O sóbrio projeto da igreja e convento deveu-se ao engenheiro-militar José Fernandes Pinto Alpoim, que antes havia construído ali perto o Aqueduto da Carioca(também conhecido como Arcos da Lapa). A proximidade com o Aqueduto permitiu um suprimento regular de água fresca ao Convento. Em finais do século XVIII se colocaram na portaria do Convento uma série de belos azulejos brancos-azuis provenientes de Portugal, de autor desconhecido, além de três bons altares de talha em estilo rococó, também de autoria ignorada. No convento há um retrato da fundadora, Madre Jacinta, datado de c.1769 de autoria do pintor colonial carioca José de Oliveira Rosa. No século XX houve algumas obras que removeram certos elementos do interior mas não chegaram a descaracterizá-lo.

No meu valente fusquinha 72 embiquei na estreita alameda de pedras, engatei uma segunda e subi uma rampa íngreme até o adro do convento. Deixei o carro do lado de fora, entrei na saleta com piso de enormes táboas de madeira, toquei a sineta e esperei ser atendido. Aguardei longos minutos e toquei novamente. De repente ouvi um barulho e alguém disse sim por detrás de uma pequena janela de madeira verticalmente presa ao meio, de modo que quem estivesse de fora não veria quem estivesse de dentro e vice-versa. Apresentei-me à voz, expliquei a que se devia a visita e ela pediu que eu esperasse. Depois a voz voltou e, educadamente, pediu que eu subisse as escadas laterais e esperasse no parlatório, três andares acima. Olhei para a direita e vi as escadas, de pé ali há duzentos e cinquenta anos.



O parlatório é uma saleta de uns seis metros quadrados mobiliado com apenas uma pequena cadeira de madeira. Não possui janelas externas, mas em uma de suas paredes há uma gigantesca abertura que presumo ter um metro de largura por uns dois metros e meio de altura conectando essa à sala contígua. A parede que separava as duas salas tem no mínimo cinquenta centímetros de espessura, de modo que nem se eu quisesse, poderia ter contato físico com que estivesse lá dentro. Essa abertura possui grades de ferro de ambos os lados e em cada interseção dos pesados ferros de que é feita, há fincos também de ferro com pontas afiadas, apontando para ambos os lados, tanto para dentro, quanto para fora. Colocar os braços para dentro significaria furar o peito nas pontas afiadas dos fincos da grade. Achei o espaço extremamente opressivo e o mal-estar me fez molhar de suor a camisa de antes mesmo que ela ocupasse a cadeira que ficava do lado de dentro e quase inaudivelmente me dissesse bom dia. A despeito do sol rachando lá fora, eu me encontrava agora na mais aterradora penumbra do claustro.



Não sei era o nervosismo, ou o calor ou o mal-estar de ter cinquentas facas apontadas diretamente no meu rosto, mas a verdade é que eu mal pude me dar conta que ela dissera bom dia uma segunda vez. Desde muito pequeno me lembro de me sentir mal se tem algum objeto contundente apontadao na minha direção. Com tão pouca luz, sem poder ver direito seu rosto, oprimido pelo espaço exíguo e sucumbido à claustrofobia balbuciei Guten Tag com a boca trêmula. Não havia banheiro, nem acesso a água, então tive que me resignar e lutar com todas as minhas forças contra o enjôo que me assolava. Ela percebeu e disse, <em>“vou abrir a janela de dentro para ventilar, mas não pode ser por muito tempo, a madre superiora não gosta”. "Então estou frito mesmo. Seja o que Deus quiser, pensei". Um fio de suor frio me escorria pelo rosto, mas eu sou cascudo e fiquei firme. E começei a conversar com ela.



Perguntei seu nome e ela me disse um nome que não é Imaculada, mas aqui devo chamá-la assim. Eu sou deste jeito, se conto o milagre não conto o santo, e vice-versa. Perguntei se esse era seu nome de batismo e ela disse que não, mas que aquele era um nome que já tinha ficado para trás quando abraçou a vida monástica. Nunca mais o havia pronunciado. Na primeira aula falamos basicamente da história do convento, sua fundação, seus benfeitores, eu perguntando avidamente e ela respondendo com alegria. Ela parecia saber tudo a seu respeito, nomes e datas. Seu alemão estava em bom estado, errava na declinação, um acusativo aqui um dativo ali, mas de forma geral conseguia se comunicar sem grandes complicações. Havia aprendido esta e outras cinco línguas dentro do convento, com outras freiras, estudando geralmente sozinha, mas contando com ajuda de uma ou outra sempre que precisava. Como em alemão vale o que está escrito, minha aluna não tinha muitos problemas de pronúncia. Vencido o pânico, a aula passou rápidamente.



Nos encontros seguintes falamos de religiosidade, literatura, seus autores clássicos preferidos e outras amenidades. Sempre tive a impressão que ela queria, mais que praticar a língua, era ter contato com o mundo externo. Ela sabia muito pouco do que se passava do lado de fora, mas não era impedida de sair. Não era uma presidiária nos termos que se conhece. Poderia sair a qualquer momento. Só não poderia voltar. Perguntei a ela como iam ao médico ou dentista. Ela disse que tinha que pedir permissão oficial à madre superiora e nunca podiam sair sozinhas. Sempre acompanhadas de uma ou duas irmãs. A advertência era apenas que não conversassem muito com pessoas que vivam aqui fora. Mas como tinha “bons dentes”, não tinha saido de lá por mais de doze anos. As aulas eram encaradas como uma transgressão, pelas quais ela tinha que brigar virtualmente com sua superiora imediata. Eu escutava aquelas coisas completamente pasmo. Pasmo e encantado pois eu me perguntava como alguém pode em sã consciência abdicar da vida assim. Perguntei se jamais iam ao ginecologista e ela disse que não. Isso já seria querer demais.



Ao final de todos os encontros ela oferecia uma bênção, que eu aceitava de bom grado. Nesse momento, ela punha-se de pé, dava um passo para trás, estendia a mão direita em minha direção e dizia uns versos. De brincadeira, porque freira também brinca, ela perguntava: em que língua você vai querer ser abençoado hoje? E assim era em francês, inglês, latim, grego, italiano, português e alemão. Cada dia era uma oração diferente em uma língua diferente. Eu baixava a cabeça em sinal de respeito, mãos espalmadas sobre os joelhos e ouvia atentamente suas palavras antes de me levantar, agradecer e sair. Nunca confessei para ela que sou ateu, não queria estragar o único presente que ela poderia me dar. Embora eu não tenha motivos para acreditar na dimensão divina, sabia que naquelas bênçãos havia um bem-querer, um bem-dizer dos quais eu não queria prescindir. Ela gostava de mim e estava dizendo com aquelas palavras que me desejava o bem. E eu agradecia de todo coração. Quem não gosta disso?



Um dia perguntei a ela o que lhe havia levado a uma vida comtemplativa, apartada do mundo. Ela disse que sofreu uma grande perda quando tinha dezoito anos. Seu pai, a quem ela amava de paixão faleceu repentinamente em seus braços, vítima de enfarto agudo do miocárdio. Aquela perda parece ter sido forte demais para ela, ficou apaixonada, como ela mesma disse e resolveu se fortalecer na religião. Enquanto me contava isso seus olhos se encheram de lágrimas e eu percebi que aquela mulher tão bonita ainda em seus cinquenta e poucos anos carregava ainda uma ferida aberta no peito que nem o tempo e nem a religião puderam fechar. Depois de trinta e cinco anos de reclusão estava ainda tudo aberto, tudo sangrando.



Ela vestia hábito preto fechado e tinha uma faixa branca cobrindo testa e têmporas, nem um fio de cabelo à mostra. Seu rosto quase não vi, mas percebi na penumbra que era uma mulher bonita. As freiras viviam ali uma vida de pobreza franciscana, cuidando de horta, acordando às quatro da manhã para as primeiras orações – ela me dizia o nome de todas essas horas - e dedicando muito tempo ao estudo. Possuia apenas dois trajes pretos, dois de cor bege, para o trabalho diário e duas camisolas.



Quando eu achava que já nos conhecíamos e que ela confiava em mim o suficiente pedi a ela que me descrevesse seu cabelo e, se possível, que mo mostrasse. Ela, a princípio demonstrou grande embaraço ante o pedido esdrúxulo. Ficamos em silêncio por longos momentos e, quando eu já julgava que ela me pediria para ir embora, ficou de pé, trancou a pesada porta atrás de si, abriu uma pequena entrada de ar de seu cômodo e tirou devagar o pano preto que cobria sua cabeça. Um facho de luz inundara seu cubículo e vi seu rosto pela primeira vez. Enquanto ela desapertava os panos que a aprendiam, me disse sussurrando seu nome de batismo. Como um triunfo, uma redenção, ela, sorrindo, disse e repetiu seu nome. Depois de seis meses conversando com um espectro, eu pude finalmente saber seu nome e gozar com a exuberância de seu rosto e seus belos cabelos louros, mal cortados à altura dos ombros. Meu coração disparou no peito, lamentei tê-la pedido isso e desejei que ela parasse. A cena não durou mais que alguns instantes, mas foi o suficiente para despertar uma outra curiosidade: até que ponto ela iria?



E ela não foi muito mais longe que isso. Uma semana após a fantástica exibição, ela cancelou para sempre as aulas alegando pressão política interna e um atrito entre si e as outras freiras, que reclamavam de suas regalias. Mas escondido bem no fundo da minha coração dorme ainda a suspeita de que ela havia ultrapassado seus limites e eu havia sido, senão o culpado, pelo menos o responsável. Tenho tido que conviver com essa sensação desde então. Lamento ter perdido a chance de aprender com ela a ver o mundo a partir de uma outra perspectiva. Lamento ter perdido a chance de aprender a abdicar, a praticar o desapego, a dar valor a pequenas coisas, à humildade, ao esforço, à dedicação, e ao empenho que ela coloca em tudo que faz. Esse breve encontro com uma freira enclausurada me expôs à minha própria cegueira, me ensinou a ter mais cautela com as palavras e respeitar mais os limites de cada um.