29 dezembro 2010

O Poder do Mal

Um levantamento do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro apresentado no segundo semestre de 2010 aponta para uma diminuição no número de vítimas por balas perdidas em todo o Estado, com redução de 18,4%, mas o número de mortes aumentou 175%. De acordo com o estudo, 84 pessoas foram vítimas no período de janeiro a junho, sendo 11 fatais. Em relação ao mesmo período de 2009, houve uma redução de 19 vítimas. O relatório foi produzido baseado na definição popular de "bala perdida", termo que não constitui conceito jurídico ou sociológico. Assim, fica entendido como "vítima de bala perdida" a pessoa que não tinha nenhuma participação ou influência sobre a ocorrência no qual houve disparo de arma de fogo, sendo, no entanto, atingida. Os números de 2009 foram os seguintes: 103 pessoas vítimas de balas perdidas nos primeiros seis meses do ano, sendo quatro fatais e 99 não fatais.

Esses números são totalmente absurdos. Em que mundo vivemos? 175% de aumento! E as mortes causadas por mal uso de armas de fogo por militares? Foi notícia no Rio de Janeiro um policial que atirou contra um homem trabalhando dentro de casa porque confundiu com uma metralhadora a furadeira elétrica que o cidadão empunhava, enquanto esse estava a apenas 40 metros da vítima. Um policial abriu fogo contra um carro de passeio porque supunha que dentro dele havia bandidos. Dentro havia apenas uma dona de casa assustada e acuada como um bicho, com seus dois filhos pequenos. Uma das balas, descuidada, mas nem tão perdida assim, matou seu filho de dois anos, sentado na cadeirinha no banco de trás. Quem vai consolar essa mulher? Quanto dinheiro deveria o Estado pagar em indenização? Existe indenização possível que pague essa dor? É esse o preço que se tem que pagar para se viver em uma cidade grande? Quem será o próximo? Quando vai chegar a minha vez?

Mas será que essas balas seriam de fato “perdidas”? Qual seria a definição de “perdida”? Qual era o objetivo da bala quando foi produzida? Enferrujar na gaveta? Perdidas elas seriam se, uma vez disparadas, tivessem caído no mar ou na mata. Mas perfuram o corpo de alguém causando morte ou ferimento grave, cumprindo assim, a sua finalidade primeira. A quem creditar a culpa por essas mortes estúpidas? O franco atirador raramente é identificado e punido. A quem interpelar judicialmente por um filho abatido enquanto soltava pipas? Quem vai preso nesses casos? De onde partiu a bala? O absurdo da coisa é tal que serve apenas para acrescentar mais indignação às perguntas que surgem aos borbotões no bojo dessas tragédias. A coisa é tão séria, é tão sem propósito que se torna tarefa impossível falar do assunto sem usar superlativos e adjetivos óbvios. É inconcebível viver em uma sociedade em que o cidadão não tem a segurança de sair de casa com a certeza de voltar intacto. A bala que mata uma pessoa inocente não pode ser uma bala perdida, pois a natureza da bala é matar. Para ela não faz a menor diferença se a vítima é culpada ou inocente. Foi para isso que ela foi produzida e comercializada e colocada no tambor do revólver. A crônica policial das grandes cidades está repleta de tais casos e poder-se-ia fazer aqui uma lista interminável de nomes de vítimas fatais ou que sobreviveram seqüeladas, mas resolvi listar apenas os mais recentes.

Casos notórios de brasileiros que tiveram as suas vidas interrompidas por balas perdidas nos últimos anos:
• Édna Correa Lima, de 74 anos, e a neta dela, de 15, passavam pelo local quando houve um tiroteio entre policiais e bandidos.
Gabriela Prado Maia Ribeiro, 15 anos, baleada no peito, descendo as escadas do metrô.
• Vanessa Matos Ramos, de 29 anos, quando passava pela rua.
• Maria Isadora, de 2 anos, tiro no abdômen, no colo da mãe.
• Gustavo Vieira, de 11 meses, baleado na cabeça, no colo da mãe.
• Wellington Rodrigues, de 11 anos, alvejado durante troca de tiros entre policiais militares e traficantes.
• Gabriel Rocha, de 8 anos, brincava na rua quando, atingido no peito durante um tiroteio entre traficantes.
• Maria Eduarda, de 1 ano, dormia em seu quarto quando foi baleada.
• Ana Vitória Novaes dos Santos, de 6 anos, saía à rua com um urso de pelúcia nos braços, que ganhara no natal.
• Lázaro dos Santos, de 13 anos, levou um tiro no ouvido, enquanto jogava vídeo game.
• Esposa de William da Silva, 32, dentro de casa, o tiro bateu na parede e a atingiu na nuca.
• Deise Teixeira de Oliveira, 60, tiro na cabeça, dentro de um coletivo.
• Cauane Tomás de Almeida, de 11 anos, região do abdome.
• Otacílio Carvalho França, ficou paraplégico.

Não posso falar da natureza da bala de revólver sem me lembrar de uma fábula em que um escorpião pede a um sapo que o carregue nas costas para atravessar um pequeno riacho. O sapo se desculpou e disse que não poderia, o risco seria grande demais. O escorpião retrucou e o convenceu de que matá-lo seria tolice, pois os dois morreriam afogados. Convencido da lógica proposta pelo escorpião o sapo, inseguro, mas cheio de boa vontade, o deixou subir. Entretanto, quando estavam no meio da travessia o sapo sentiu uma picada mortal em sua nuca. Virou-se estupefato e o escorpião, constrangido, se desculpou dizendo: Não pude evitar. Esta é a minha natureza. Os dois morreram.

Amizades de anos e anos terminam em um segundo se um deles tiver a má sorte de dizer ou fazer algo que desagrade o outro. Uma inconfidência deixada escapar por descuido pode comprometer relacionamentos antigos. Já vi amizades de décadas ruírem por bobagem, suspeitas infundadas, senões. Casamentos felicíssimos deixam de existir num passe de mágica, se de repente uma dúvida se interpuser entre eles. Tudo de bom que existiu, a lembrança de toda a alegria, solidariedade e os bons momentos partilhados nada podem quando o Mal mostra suas garras. E não raramente saem da relação dizendo que não deu certo. Como não deu? Oito anos felizes não deram certo?

Quem se interessa em lutar pela paz, em contribuir para um mundo melhor ao invés de destruir vidas, me parece que terá trabalho em dobro, pois o Mal é mais potente que o Bem. É muito mais fácil e barato prejudicar do que fazer o bem. Alguém vai à macumba para fazer o bem a alguém? Tente afetar a vida de 300.000 pessoas com um só gesto. Você terá que lançar uma bomba nuclear sobre uma cidade para afetá-las todas imediatamente e de maneira indubitavelmente irreversível e eficiente. Tente tirar 300.000 pessoas da miséria absoluta e verá que uma vida inteira de dedicação e trabalho árduo não bastará. Deverá se tornar uma Madre Teresa de Calcutá e ainda assim, como ela, se curvar humildemente ante a sensação de fracasso. Quantas delas vivem e morrem em total anonimato todos os anos sem jamais serem agraciadas com prêmios Nobel?

A história é prodiga em exemplos tanto de uns quanto de outros. Herr Hitler conseguiu, com algum esforço e ajuda de dedicados aliados exterminar 6.000.000 de judeus, ciganos, homossexuais e dissidentes políticos em seus campos da morte. Mas creio que se ele os quisesse ajudar, transformar suas vidas para melhor, entrando assim para a história por uma outra porta, teria que estar vivo até hoje para executar sua obra.

Em uma linda colcha de tricot só se nota aquele ponto perdido, aquela laçada mal dada que se julgava disfarçada bem ali no cantinho. Você supôs que ninguém notaria? Enganou-se. Meses de trabalho duro diário recebem senão um comentário maldoso: Está maravilhosa, mas aquele pontinho ali é que estragou tudo. Numa ópera de quatro horas de boa música, a magnífica performance dos cantores e músicos vai para as cucuias por causa daquele dó de peito desafinado do pobre tenor. No dia seguinte, só aquela falha merece destaque nas críticas dos jornais. Luciano Pavarotti já em final de carreira foi vaiado em cena aberta no Teatro La Scala de Milão, o maior templo da música erudita mundial por causa de um resfriado. Sua trajetória artística impecável não bastou para que lhe poupassem do vexame. É parte do instinto básico do ser humano se comprazer com a desgraça alheia. Um acidente na beira da estrada, mesmo que não esteja obstruindo a pista pode causar um engarrafamento monstro por causa da curiosidade mórbida dos motoristas que diminuem a marcha e insistem em esticar o olho. Só notícia ruim vende jornal.

Essas coisas não são desconhecidas de ninguém, mas a maioria das pessoas prefere ignorá-las, como parte de um acordo tácito de felicidade tipo Poliana Moça. Três dias depois do enterro, ninguém mais se lembra da menina que morreu baleada dentro da escola. Frases de efeito, verdades tolas e truísmo pueril merecem lugar de destaque nas conversas cotidianas, pois assim a gente justifica o injustificável, explica o inexplicável e se engana dizendo que Deus sabe o que faz.

4 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Esse é o meu garoto.
Achei belíssimo,mesmo não sendo um exímio crítico.

4:02 PM  
Anonymous Anônimo said...

Parabéns Angelo.

A situação é muito crítica, mas é sempre possível ficar pior.

Apesar da violência assustadora, todos continuamos morando nas grandes cidades, acreditando que nelas a vida é melhor e mais fácil.

O negócio é cada um tentar fazer a sua parte, trilhando o caminho do bem, para quando a hora chegar, aceitar com coragem e dignidade, com a paz do dever cumprido.

Mais cedo ou mais tarde, todos vamos passar por isso. O tema é bom para refletirmos sobre os verdadeiros valores na vida.

Sempre seu admirador,

Antonio Eugenio Magarinos Torres

9:11 PM  
Anonymous Anônimo said...

Oi ângelo,
me parece um texto jornalístico com conteúdo crítico e de meditação sobre um tema.
É um aporte de peso para nossos julgamentos.
Abç
Isidoro

6:07 PM  
Blogger Evandro Oliveira said...

Estou sentindo falta de novas postagens!

Beijos no coração...

Te espero no sabor.

4:22 PM  

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