15 setembro 2010

Santa Lola

Toda cidade em cada região do interior brasileiro tem seus santos. Na minha terra não foi diferente. Ali perto de Rio Pomba, no interior de Minas Gerais tinha uma santa de inquestionável eficiência e a quem todos reverenciavam. Ela se chamava Santa Lola.

É difícil escrever sobre um personagem que tangencia a divisa entre as esferas do imaginário e do real e o que eu sei sobre ela são apenas fragmentos de narrativas contadas esporadicamente por minha mãe e minha avó. Há muitos anos nunca mais ouvi ninguém falar dela. Perguntei às minhas irmãs o que elas poderiam dizer sobre a santa, mas parecem saber ainda menos do que eu. Pesquisei no Google e não há uma só linha sobre Santa Lola. Tem uma homônima, com dois eles, mas é marca de roupa. Até onde eu sei, sem relação com a santa em questão. Sei que não inventei por que lá em casa todo mundo já ouviu falar. Sei que ela existiu porque confio nas palavras de minha mãe minha avó. Elas jamais mentiriam a respeito de algo tão sério. Minha avó a viu pessoalmente nos anos cinqüenta e minha mãe tentou visitá-la nos anos sessenta, mas a essa época, a balbúrdia na sua porta já era grande e ela já não mais recebia devotos.

Contava-se que ela era uma menina muito religiosa, mas também peralta e brincalhona que gostava de subir em árvores com a molecada. Um dia, quando tinha treze anos, ela caiu de uma árvore e teve o estômago atravessado por um galho seco de grosso calibre. Estamos falando do interior de Minas Gerais, no inicio de século XX, quando mesmo na cidade mal havia hospitais, que dirá na roça. Ela morava numa casinha muito pobre e nada fazia crer que se tornaria tão famosa um dia. Pois bem, foi levada de carro de boi para o hospital mais próximo, que ficava em Ubá e lá ficou entre a vida e morte por muito tempo. Sua mãe era uma devota católica praticante e pediu de joelhos que a vida de sua filha fosse poupada. No hospital, a menina recebeu a extrema-unção do padre local, confessou seus pecados e recebeu a hóstia sagrada.

Só que ela não morreu. As semanas se passaram e ela continuava viva. Um dia seus pais pediram para levá-la para casa no estado em que estava para que lá pudessem cuidar melhor dela, já que não tinham condições de se hospedar naquela cidade. Não sei como isso seria resolvido hoje em dia, com a ética medica tão rígida. Mas naquele tempo os médicos se reuniram e acharam que não havia mal algum em deixá-la ir morrer em casa. Semanas viraram meses e a rotina de cuidar dela parecia ter-se integrado no dia-a-dia da casa. Recebia diariamente a hóstia sagrada, era limpa e virada na cama, mas não consumia alimento, pois estava traqueostomizada. No início recebia líquidos via traquéia para se manter viva. Depois não sei direito o que se passou, se os pais resolveram parar de dar, ou se ela pediu para não receber mais, só sei que pararam de dar a ela o alimento diário. Também não sei se recebia água. Hoje em dia isso seria ou eutanásia ou ortotanásia, ambas eticamente discutíveis. Mas a menina não morreu. As semanas viraram meses e os meses viraram anos até que sua fama se espalhou pela região. Em poucos anos todos sabiam que uma menina estava viva pela Graça de Deus.

Não tardou os romeiros começaram a chegar e pedir a ela intercessão junto às esferas superiores da dimensão divina em casos de doença grave, ou questões menos urgentes como a compra de uma fazenda ou só para pedir graça e proteção. Dizem que os pedidos costumavam ser atendidos. Foi nessa época que minha avó foi visitá-la e viajou durante um dia inteiro para cobrir pouco mais de cinqüenta quilômetros de Guidoval a Rio Pomba. Não sei mais quando e por que essa viagem se deu, pois eu ainda não era nascido e mineiro não gosta de dar detalhes de nada. Eu perguntava isso e muitas outras coisas, mas a tendência era sempre desconversar.Tudo na moita. Muitos anos depois minha mãe foi visitar a santa, mas nessa época ela já não recebia mais romeiros em casa. Minha mãe teve que pernoitar acampada na porta da casa dela e aquela turma de viajantes passou a noite em vigília rezando e pedindo. Não sei se a essa época eles pediam graças para a enferma ou se somente para si, por intermédio da santa. Nada disso posso contar com muita certeza, pois lá se vão quarenta e cinco anos.

Pouco tempo antes de falecer, minha mãe esteve aqui em casa e eu a perguntei se era verdade que Santa Lola de fato existiu. Ela silenciosamente abriu sua bolsa de mão e tirou de dentro um santinho todo amarfanhado, aquelas impressões que trazem a efígie de algum morto com uma oração no verso. Era a foto de Santa Lola, bem velhinha, deitada no seu leito, ainda lá na casinha da roça. Mamãe se emocionou ao falar dela como se emociona ao falar de um ente querido. Ela nunca a viu, mas jamais duvidou de sua existência ou de seus milagres.

Não tenho explicações cabíveis para a sobrevivência por mais de cinqüenta anos de alguém deitado em uma cama dura recebendo apenas uma porção de alguns gramas de farinha de trigo por dia. Sabe-se que a hóstia era a única ingestão diária dela. Mas sei também que nem tudo se explica à luz da ciência. Quem confia demais na ciência pode ter duras decepções. Há características idiossincráticas do sujeito que são responsáveis, por exemplo, pela resposta de um organismo a um tipo de medicamento. Pode-se especular sobre a redução ao mínimo das atividades vitais dela até um estado basal de sobrevivência de alguém que pesava pouco mais de trinta quilos. Pode-se pensar em uma conversão histérica elaborada que fez com que seu corpo emaciado pela dor passasse a queimar lentamente os carboidratos armazenados nos músculos e ossos e se acostumasse a consumir o mínimo apenas para que ela respirasse. Que tipo de gozo havia se instalado naquele aparelho psíquico incipiente de modo que o ajudar ao próximo serviria também como sustentáculo e fonte alternativa de vida para ela?
Entretanto, não sou dono da Verdade - nem sempre respondo de maneira eficiente pela minha própria. Chego a desconfiar que é uma certa arrogância achar que tudo se explica. Quem nos garante que uma força superior realmente não agiu ali fazendo com ela vivesse para ajudar as pessoas? Será que era esse o seu sintoma? Quem nos garante que seu corpo não foi usado com um propósito maior que nos escapa o entendimento?

Minha avó e minha mãe não tiveram dúvida alguma com relação a sua existência nem quanto à natureza de sua sobrevivência. Estavam convencidas de que era milagre, intercessão direta do Altíssimo. Talvez elas tivessem razão. Talvez a resposta seja tão simples assim. De qualquer maneira estou certo que nunca se preocuparam em saber os verdadeiros motivos do tal milagre.

Já me digladiei entre essas várias possibilidades, já inventei tantas outras, a maioria totalmente incabíveis, e às vezes sinto que já queimei neurônios demais tentando achar uma explicação para a mera existência de Santa Lola. Há coisas que não têm mesmo explicação. Mistérios existem. E temos que nos haver com este fato.