11 julho 2005

taradoporpés30

Os tipos humanos que se encontram na internet são, para mim, o principal motivo por que passo tanto tempo conectado nas salas de bate-papo. Recentemente um sujeito que se fazia chamar por taradoporpés30 mandou para mim uma mensagem convidando para conversar. Curioso, quis saber o porquê de tal nick e ele me disse que gostava de pés. Com um pouco mais de conversa ele disse que é louco, alucinado por pés. Isso aguçou minha curiosidade, pois percebi se tratar de um caso típico de perversão sexual. Como ainda não havia conhecido nenhum perverso verdadeiro resolvi esticar o papo. Depois de pouco mais de meia hora ele pediu meu número de telefone, no que prontamente atendi. Ligou em seguida um rapaz de voz mansa, bastante educado, português correto de quem passou anos na escola e me convidou para ir ao seu apartamento.

Eu não tenho nenhum fetiche, e os pés, para mim, servem apenas a seu propósito mais elementar, mesmo assim concordei com sua proposta, em troca de uma entrevista. Ele perguntou se eu tinha calça preta social, sapato preto engraxado e limpo, e meias de seda transparente. Como não tinha certeza desse último ítem, pedi desculpas e fui dar uma olhada nas gavetas do guarda roupa. Para minha total surpresa encontrei um par que não via desde o tempo em que eu ainda usava terno para trabalhar. Munido do equipamento que meu interlocutor requeria, marcamos um encontro na esquina aqui de casa, às 11:30 da noite. Em poucos minutos apareceu um carro que julgo ter custado uns R$60.000,00. Sem mais delongas entrei, bati a porta e lá fui eu matar minha mórbida curiosidade, que também passa muito perto da perversão.

O rapaz dizia – e parecia - ter trinta anos, era branco, corpo ligeiramente acima do peso, compleição clara, rosto barbeado e cabelos pretos cortados curtos. Dizia ser formado em administração de empresas com mestrado na FGV e trabalhar para um jornal de grande circulação no Estado do Rio. Era visivelmente educado, calmo e aparentemente de boa índole. A viagem até o prédio onde reside não demorou mais que quinze minutos, durante o trajeto conversávamos de maneira descontraída e ele falava que era difícil encontrar pessoas dispostas a brincar com ele. Não duvidei.

Antes de tomarmos o elevador fiz questão de cumprimentar o porteiro e perguntar o seu nome. Nunca vi medida de segurança mais inepta, mas na hora não me ocorreu solução mais criativa: eu já estava praticamente dentro da toca do leão. Assim que chegamos ao seu apartamento na Praia do Botafogo reparei como estava bem decorado, limpo, perfumado, e cada coisa no seu devido lugar. A vista é realmente de tirar o fôlego e ficamos conversando alguns minutos antes de irmos para o quarto. Meu amigo estava visivelmente impaciente enquanto me explicava o que estava pretendendo fazer comigo lá dentro:
- Vou te amarrar à minha cama e fazer cócegas no seu pé.
- O que mais?
- Mais nada
- Vai me bater?
- Não
- Vai me machucar?
- Não
-Pretende me matar e esquartejar?
- Claro que não. Sou tarado, mas não sou criminoso.
- Promete?
- Prometo.
- Então vamos lá.

Antes de irmos para o quarto ele resolveu tomar um banho e eu resolvi ir até a cozinha para roubar um copo d’água e abrir o freezer. Quem sabe ali dentro não haveria uns corpos congelados? Não tinha nada. Tudo normal. Não era ali que ele os colocava. Depois, ele saiu sorridente e me conduziu ao quarto. Como não sinto tanto cócegas, calculei o nível de desconforto e lá fomos nós. O quarto também estava muito bem decorado e como nada ali me fazia supor que ele matava seus parceiros, deitei-me sobre seus lençóis de linho e me entreguei em holocausto. Por precaução resolvi fazer exatamente o que ele mandava, afinal perverso é perverso, por definição. Educadamente ele pediu que eu abrisse braços e pernas e os amarrou, cada qual a uma extremidade da cama com uma fita de velcro, preta como a calça, meias e sapatos que eu estava usando.

Quando ele baixou a iluminação do quarto senti sua respiração ofegante ficar mais e mais pesada. Ele colocou uma luminária pequena no chão e um banquinho em frente aos pés da cama, sentou-se totalmente vestido, tirou meus sapatos com cuidados e ficou apreciando meus pés calçados apenas com as meias de seda. Sua excitação entrou visivelmente em um crescendo até ele quase não mais resistir. De repente passou a fazer cócegas na sola dos meus pés, mas não como um adulto faria nos pés de outro adulto. A brincadeira que se seguiu mais parecia a de uma criança fazendo traquinagem pois enquanto fazia movimentos rápidos com os dedos de ambas as mãos ele os percorria ao longo da sola de meus pés e dava risinhos e produzia sons onomatopéicos com a boca que tentavam reproduzir tais movimentos. Levantei o rosto ansioso para ver melhor o que estava acontecendo lá embaixo, no que ele me repreendeu:
- isso aqui não é pra você ver. Você tem os pés mais lindos que eu já vi.
Obedeci calado e em seguida veio novo comando:
- agora finja que você está querendo se soltar das amarras, lute um pouco com as cordas. Geme!
“Que cordas? Este lacinho de velcro fajuto eu arrebento num puxão” Pensei. Novamente obedeci, mas dessa vez lutando para não rir e estragar de vez seu número. Naquela posição desvantajosa o que eu menos queria era desagradá-lo. Em menos de 10 minutos o jogo estava terminado. Ele se levantou, acendeu a luz de cima, deu um sorriso e disse:
- Pronto, terminamos.
Eu, que já estava me animando com a brincadeira, disse:
- Espera um pouco, não vai tirar as calças?
- Nada de tirar calças, já disse que terminei.
- E você gozou?
- Claro que gozei, estou todo melado aqui.
- Bom, então vá se limpar e vamos passar para a segunda parte: a entrevista.
Ele me desamarrou, me ofereceu água, eu aceitei e fui para a sala esperar que ele saísse do banheiro.

A teoria freudiana para as perversões preconiza que essas têm sua origem num período anterior à dissolução do Complexo de Édipo, o que deve acontecer por volta dos cinco de idade, segundo alguns autores. Ao constatar que a mãe não tem pênis (castração), o menino não consegue elaborar mentalmente essa falta e substitui o órgão faltoso por elementos que estejam dentro do escopo de seu universo visual: geralmente toma por objeto de seu desejo elementos e acessórios que se encontram abaixo da cintura dos adultos como meias, cintos, sapatos, mais comumente, mas também não raramente objetos de pelúcia, veludo, que tentariam imitar os pelos pubianos da mãe, ou tesouras. Essa última, escolhida mais pela sua utilidade e pelo movimento que pode significar o corte do pênis materno do que para cortar mechas de cabelo de suas eleitas. Quando o perverso o faz, está apenas dando a ela a sua finalidade: afinal para que serve uma tesoura? Além disso, contrariamente aos traços de perversão e fetichismo, em que o sujeito elege peças de vestuário como adereços ou mesmo utilitários nos jogos eróticos pré-coitais e que podem comparecer em outras estruturas psíquicas, o perverso estrutural substitui o sexo genital pelo gozo resultante de sua brincadeira, manipulação ou simples contato visual com o objeto eleito. De qualquer forma, ao atingir o orgasmo sem tocar o pênis, o perverso parece estar gozando como gozam as mulheres: sem pênis, mas no lugar anatômico do pênis.

Por ter passado também pela castração, uma menina raramente desenvolve a perversão estrutural na fase adulta. Dificilmente se verão mulheres perversas, e ainda menos fetichistas, assassinas em série e outras. Lacan contesta a afirmativa de Freud de que não existe perversão feminina argumentando que o fetichismo feminino é o próprio corpo, pois a mulher é seu próprio falo. O que o perverso faz é tentar destruir a prova da castração para fugir à angústia da falta do pênis na mãe.

Na sala, nosso amigo me relata que é filho único, teve infância feliz no bairro da Gávea, freqüentou bons colégios, sua mãe é professora. Porém, quando fala de seu pai é que as peças começam a se encaixar perfeitamente no quebra cabeça da origem das perversões. Seu pai é um próspero advogado que usa terno preto para trabalhar e que gosta de meia de seda preta. Me deu esse e outros detalhes sem se dar conta de que revelava de onde tudo saiu. Não precisava ter sido mais explícito. A brincadeira das cócegas me parece ser remanescente do período em que o rapaz se deu conta da “imperfeição” da mãe.

Em tom de brincadeira ele me relata que sua tara por meias pretas é tamanha que chega a colocar em risco o seu trabalho.
- E você, do que gosta? perguntou repentinamente.
- Homem, sexo trivial básico sem bizarrice, respondi sem pensar.
- Então imagina você chegar para trabalhar e ver cinco homens nus ao redor de uma mesa de reunião. É assim que me sinto quando tem reunião de diretoria. O tampo da mesa é de vidro e preciso me concentrar para não olhar para seus pés, pois se a calça lhes sobe um pouco nas canelas e mostra a meia preta eu fico tão excitado que me desconcentro e quase ponho tudo a perder. Um dia eles vão acabar desconfiando.

“Eles já devem saber, seu bobo. Alguém consegue esconder uma ereção?”, pensei.
O que a psicanálise conseguiu ao longo dos anos é tratar a perversão não como um desvio da norma, mas como mais uma alternativa para o sujeito vivenciar sua sexualidade e tem lutado para que esta não mais seja vista como uma aberração e tratada de maneira pejorativa. Afinal, a sexualidade não pode mais ser vista e classificada de maneira ortopédica e normativa simplesmente por que ela, assim como outros traços que definem o individuo, é única e só quem dá conta dela é o próprio sujeito.