04 julho 2005

Racismo x homofobia

Quando eu era adolescente e vivia atormentado por problemas que creditava a minha orientação homossexual, jamais me preocupei em entender como outras formas de preconceito mostram suas garras afiadas em nossa sociedade. De tão efeminado, vivia me escondendo de todos que pudessem me atacar. Mas eles sempre me achavam. As humilhações em casa e na escola eram diárias e algumas vezes maquinei soluções macabras para abreviar tamanho sofrimento.

Quando vi os Dzi Croquettes na televisão, cobri o rosto horrorizado. “O que é isso meu Deus? Não quero nunca ser com eles”, implorava. Eu tinha horror aos gays assumidos, mas hoje imagino que minha rejeição a esses estereótipos tenha sido mais por não conseguir entender como eles suportavam as torturas psicológicas, morais e mesmo físicas que nossa sociedade caprichosamente lhes dispensa do que por conta de algum ranço moralista que eu silenciosamente carregava. Havia os negros, os judeus, o gordinho da escola, a menina estrábica, o menino efeminado, os cabeludos com "tendência" a hippie, e tudo o que diferia do resto, daquilo que era considerado normal. As crianças e os adolescentes, reconhecidamente cruéis, nunca perdoaram nada que escapasse à sua compreensão de normalidade.

Muitos anos depois tornei-me pai adotivo de um menino negro e comecei a me dar conta da existência de um outro tipo de preconceito que até então não conhecia. Houve ocasiões em que meu filho foi tirado do banheiro de um restaurante onde jantávamos simplesmente porque ele lá entrou para lavar as mãos; já lhe foi negado um refrigerante no balcão de um bar roscófi por medo de que ele não tivesse dinheiro; já vi o baleiro mandá-lo me agradecer pelas guloseimas que eu havia lhe comprado; já o vi levar sabão no supermercado porque deixou cair uns sacos de biscoito mal empilhados; já o vi levar uma descompostura numa loja de departamento porque deixou cair um copo comum de cozinha da prateleira, e vai por ai. No início eu ficava assustado com tamanha violência e tentava defendê-lo com educação contra seus algozes. Na sua infinita inocência muitas vezes ele mal entendia o que estava acontecendo e ficava olhando espantado as cenas de preconceito explícito. Já cheguei o dedo no nariz de completos estranhos umas três vezes, juntou gente, um barraco. Hoje em dia ando bem mais agressivo e se meu filho tornar a ser humilhado na minha presença, acho que vou rolar no chão com alguém.

Conversando com alguns amigos negros eles me disseram algo que parece óbvio, mas em que eu ainda não tinha pensado: nas famílias de negros conscientes de sua raça, desde cedo as crianças são levadas a aprender a se defenderem dos ataques racistas. Se algo acontece na escola, na rua, ou no mercado, a criança chega em casa e a primeira coisa que faz é contar a seus pais, para que esses tomem as devidas providências. Elas aprendem a respeitar o próximo, mas ainda mais a si mesmos. Parece certo e muito justo.

O psicanalista Jurandir Freire Costa, em seu ensaio “Da cor do corpo à violência do Racismo” relê Marilena Chauí e afirma que: “ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa nem repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os Ideais de Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro. (...) A violência racista do branco é exercida, antes de mais nada, pela impiedosa tendência a destruir a identidade do sujeito negro. Este, através da internalização compulsória e brutal de um Ideal de Ego branco, é obrigado a formular para si um projeto identificatório incompatível com as propriedades biológicas do seu corpo. (Costa, 1979,p.104).

Mas eu mesmo, embora concorde com a parte em que o renomado psicanalista denuncia a violência e insultos que os negros sofrem diuturnamente, leio suas palavras não sem uma ponta de desconfiança pois creio que ser negro, branco, amarelo ou marrom, não faz parte da constituição psíquica do sujeito. Aliás esse assunto de raça sempre foi prato cheio para o desenvolvimento de outro tema correlato: a eugenia, ao que todos sabemos onde leva. No inconsciente, que para mim é Deus, não percebo os tais Ideais de Ego, assim mesmo, com maiúscula, pois no inconsciente não há inscrição de raça. Lá não há negros assim como não há brancos, gordos, gays, judeus, deficientes físicos e visuais ou o que quer que seja.

Além disso, nunca soube de nenhum menino efeminado escorraçado na escola que tenha chegado em casa contando aos pais sobre seu suplício diário. E se for visto sendo humilhado e seu segredo descoberto, será novamente punido em casa. Conheci dezenas de rapazes pra lá de alegres (alegres por que, bolas?), a quem não consegui impedir que me contassem as histórias escabrosas de suas vidas, que narram fatos bizarros envolvendo tortura física e psicológica por parte da família, grupo religioso, colegas de escola e de trabalho, e outros.

Por cinco anos participei assiduamente das oficinas de sexta-feira do Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual no Rio de Janeiro onde se trabalham temas que vão da auto-estima e saúde a experiências traumáticas, de relações familiares à emancipação dos homossexuais, amor, desejo, culpa, etc., temas corriqueiros que qualquer pessoa bem poderia estar discutindo numa sexta-feira à noite, se não tivesse nada melhor para fazer. Era um compromisso semanal quase religioso e, não obstante as divergências, eu não poderia negar que minha auto-estima aprendeu a respirar alma nova depois que se falou sobre esse tema. Lá ouvi depoimentos que fariam corar Jean Genet e matariam de inveja E.A.Poe. Muitas vezes questionei a validade do movimento, criticando as passeatas dizendo que as revoluções devem ser promovidas numa esfera particular: cada um fazendo a sua, em casa, no trabalho, no grupo social, respeitando-se e fazendo-se respeitar enquanto profissionais e por suas qualidades de caráter, argumentei que ninguém nunca viu passeata de gordos em cadeira de rodas exigindo respeito e visibilidade e ouvi diversas repostas, umas mais ou menos convincentes que outras; entre elas:

“Por que gays e lésbicas são discriminados em casa e no trabalho e por que nossos gestos são mais importantes do que quem somos, e se somos humilhados e assediados, isso é problemas nosso e se somos atacados, fomos nós que provocamos e se levantamos a voz, estamos querendo aparecer, se curtimos o prazer do sexo somos uns pervertidos, se temos AIDS nós merecemos, se marchamos com orgulho nas passeatas estamos é querendo recrutar crianças e desarticular a família brasileira, a igreja e o Estado e se queremos ter filhos somos considerados pais inadequados e se nos levantamos por nossos direitos estamos extrapolando nossos limites e por que somos forçados a constantemente nos questionar a nós próprios enquanto pessoas humanas, e se nunca tivemos relacionamentos com pessoas de sexo oposto é porque nunca tentamos e se temos um relacionamento com uma pessoa do mesmo sexo ele não é reconhecido ou validado e ouvimos sempre dizer que nosso amor não é “real” e se nos declaramos homossexuais estamos simplesmente passando por uma fase e por que história gay e lésbica é virtualmente inexistente na literatura e por que a homofobia é sancionada pela corte suprema dos tribunais e... e tantos e tantos motivos é que faço parte do movimento para diretos civis de gays e lésbicas”.

Ninguém pode negar que há preconceito racial no Brasil, o qual deve ser combatido com toda força por todos os cidadãos amparados pelo braço da lei, mas também não se pode negar que o preconceito sofrido pelos homossexuais também é perverso, pois começa dentro de casa, em tenra idade, da qual não se pode fugir. Não há abrigo senão na mentira e na arte da dissimulação, na qual, para sobreviver, muitos gays se tornam experts. A homossexualidade tem a vantagem de poder ser escondida, acobertada por um bom disfarce como um casamento, ou atitudes mais viris, por exemplo. Já a negritude vem estampada na pele e não há o que se fazer para acobertá-la, mesmo se esse for o interesse do cidadão.

O que sugiro é que as minorias se agrupem para discutir os temas específicos que mais lhes afligem sempre visando o desenvolvimento e melhoria da auto-estima, pois só ela é capaz de nos fortalecer, e assim, tornarmos mais forte para nos protegermos do nosso algoz-de-cada-dia.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

OI Angelo, boa noite! Parabéns pelas suas palavras e pela reflexão. Espero que possamos nos ver tão logo eu decida ir ao RJ. Abraços de Brasília!

12:47 AM  
Anonymous Anônimo said...

Sou negro, classe média alta e sei como é o preconceito. Perante aà sociedade todos me tratam normal, até poque curto discrição. Óbvio que sacam que tenho tendências, mas nunca falam nada. E quando eu saio do meu mundo hétero...e vou para o homossexual eu simplemente me sinto mal. Como se fosse uma peça deslocada daquele mundo. Afinal os gays naum olham para os negros. Isso é uma verdade.
O racismo com os negros gays são enormes.
Abraços.
João Pessoa-PB

10:39 PM  

Postar um comentário

<< Home