04 julho 2005

Pai adotivo e gay

Amanhã, quinta-feira (17/01/02), o canal de tv GNT vai apresentar uma reportagem sobre formas alternativas de família, para a qual dei uma entrevista. Devo dizer que não é fácil falar de minha vida particular na media, mas por um posicionamento até certo ponto político, eu me cobro uma participação neste movimento. Durante cinco anos participei ativamente das reuniões do Grupo Arco-íris de Conscientização Homossexual. Alguma coisa ficou daquelas reuniões.
Tenho 41 anos, sou homossexual assumido, tenho um companheiro que mora comigo há dois anos e desde 1997 sou pai adotivo solteiro. A adoção de meu filho foi concedida pelo polêmico juiz Siro Darlan, àquela época juiz da Primeira Vara da Infância e Juventude, cuja abertura de pensamento surpreende não apenas a sua classe, mas a todos. Além disso, meu filho é negro, o que apresenta algum adicional nas contas do preconceito que enfrentamos no dia a dia. Esta reportagem vem no bojo ainda da morte desafortunada e prematura de Cássia Eller, com o desdobrar da guarda e custódia de seu filho Chicão.
Quiseram saber minha opinião sobre o estado de coisas no que se refere à posição dos homossexuais e cidadania no Brasil. Disse que não tenho como falar sobre os gays em geral, mas que pessoalmente nunca tinha sofrido hostilidade pelo fato de ser gay e ter adotado uma criança. Preconceito bem maior enfrentam os negros numa sociedade racista hipócrita como a nossa. Quando perguntados, ninguém admite ter preconceito contra coisa nenhuma, mas na prática a realidade é bem outra. E disso eu só me dei conta após me tornar pai de um menino negro.
Meu filho, agora com seis anos, freqüenta uma escola extremamente vanguardista - a mesma escola onde estuda o Chicão - Centro Educacional Anísio Teixeira. Lá encontrei professoras investidas na educação das crianças, interessadas em lidar com as idiossincrasias de cada uma delas, sem passar aquele rolo compressor da adequação social tão comum em outras instituições.

Surpresa maior eu tive no final do ano quando, numa reunião de pais, eu comentei com a orientadora que eu tinha um companheiro e ela me recomendou a convidá-lo para participar da próxima reunião, já que ele mora conosco e participa na educação do menino. Isso é sinal dos tempos, nem tudo está perdido. Não conheço outra escola tão aberta às diferenças como o CEAT. Eles tratam essas diferenças com o mesmo espanto de tratariam alguém que usa boné. Por isso não me causou surpresa ao ler num jornal que a escola emitiu um documento assinado por todas as professoras que haviam trabalhado com o Chicão, e muitos pais de alunos que a conheciam, ao todo trezentas assinaturas, em que afirmavam ser a companheira de Cássia a pessoa mais apropriada para ficar com sua guarda. Ela sempre participou de todas as reuniões e demonstrou grande interesse pelo bem estar do menino. Recentemente, numa festa de Bumba meu Boi, as crianças cantavam no pátio debaixo de um sol incandescente que só o Rio conhece. De repente avistei Cássia Eller com uma câmera na mão, filmando cada passo do filho, que tocava tambor atrás do boi. Me deu aquele frio na barriga.
Quando ela parou num canto para tomar uma água, com a maior cara de pau me aproximei dela e disse que sentia muito, mas que nem ali ela estava a salvo da horda de fãs que a perseguiam por toda parte e pedi para tirar uma foto com ela. Ela riu com a boca aberta e disse que eu era mesmo cara de pau mas que parecia ser gente boa. Mas com grande boa vontade se encostou à parede ao lado do bar e meu companheiro bateu uma foto. Depois perguntou se eu era tio ou pai de alguém ali e eu disse que era pai. Não conversamos, em segundos ela se foi. Noutras ocasiões vi Maria Eugênia, mas nunca falei com ela. Este breve encontro com meu maior ídolo vivo se deu meras três semanas antes de sua morte. Sua imagem e seu cheiro ainda hoje estão bem vivos na minha lembrança.

Acho que a luta para a garantia de direitos iguais para casais homossexuais será árdua e longa, pois toda vez que a deputada federal Marta Suplicy saca da bolsa seu projeto de lei que assegura a união civil, a bancada evangélica do Congresso contra-ataca com Bíblia na mão, cânticos, hinos, piadinhas e chacotas. Mas com chacota e piadinhas sopradas pela frente e pelas costas todos nós já estamos acostumados.
Não creio que este será o maior impedimento ao seu projeto. Acho que eles irão precisar de um pouco mais que orações para nos vencer. Não podem impedir a roda da história de girar para frente. Não imagino viver para ver os homossexuais serem aceitos, entendidos ou admirados pela sociedade, mas espero que minha pequena contribuição seja como mais um grão de areia calçando esse terreno movediço das injustiças da exclusão social e do preconceito contra os homossexuais.
Se conseguirmos ter nossos direitos respeitados, já teremos conquistado muitíssimo. Podem até não gostar de nós, mas terão que aprender a nos engolir. Sou um sujeito de hábitos simples, trabalho o dia todo como professor e tradutor de inglês e alemão, pago minhas contas, às vezes deixo de pagar alguma por falta de grana, como tanta gente. Por isso, quase não entendi o ar de espanto da entrevistadora quando eu narrava o nosso dia a dia de uma casa com criança. Pedro Paulo tem reações normais de uma criança com pai que tem um relacionamento. Não é exclusividade de pai ou mãe homossexual, pergunte a qualquer pessoa que tem um filho e inicia um relacionamento.
Tem chilique todo dia. Criança de seis anos tem ciúmes e é possessiva. Por ciúmes, ele quer se sentar ao meu lado à mesa, não gosta de se sentar no banco de trás do carro, e por ai vai. Recentemente escrevi um livro contando a minha experiência de pai adotivo solteiro homossexual. Ele será brevemente publicado pela Edições GLS, de São Paulo. Nunca me interessou a notoriedade fácil, mas passageira que esta adoção pode conferir. Se hoje divido a minha experiência nos meios de comunicação de massa, é para que mais pessoas em situação semelhante busquem seu desejo de se tornarem pais/mães e dêem o passo rumo à adoção. Se isso lhes trará a tão perseguida felicidade, não posso garantir. Não creio que os gays e lésbicas sejam melhores pais/mães que quaisquer outras pessoas. Só acho que se os deveres são iguais, iguais também devem ser nossas prerrogativas e direitos.