28 junho 2005

A visita da jovem senhora

Há algumas semanas recebi uns amigos para jantar em minha casa. Este é um dos meus passatempos favoritos: gosto de ir para a cozinha e preparar eu mesmo a refeição. É mais agradável, mais tranqüilo e muito mais barato que restaurantes. Nessa noite cozinhei um jantar bem mineiro com direito a tutu de feijão, lingüiça frita, arroz com brocoli, couve picada, jiló refogado na manteiga e tomate, galinha refogada com quiabo, torresminho frito bem sequinho, e sei lá mais o que.

Nessa noite um amigo me telefonou pouco antes de sair de casa para perguntar se poderia trazer uma amiga, eu disse que sim, não tinha problema.
Assim que eles chegaram me dei conta de que se tratava de um travesti, que até alguns meses ainda atendia pelo nome de João Carlos. Eu já o conhecia de há muito tempo, das reuniões de sexta feira do Grupo Arco Iris de Conscientização Homossexual. João Carlos era um negro de feições femininas, sorriso franco, inteligente, sempre pronto a ajudar no que quer que fosse e muitíssimo bem humorado. Mas o que mais chamava atenção em seu rosto é um par de olhos verdes pelos quais algumas mulheres matariam. Nosso amigo fala um inglês perfeito com sotaque de Nova York e recentemente foi contratado pela UFRJ como interprete de libra nos congressos, a língua de sinais dos surdos. A presença de travestis não me incomoda nem intimida, mas não pude esconder minha surpresa ao ver aquela figura, em versão melhorada de um rapaz que, em si, nunca achei atraente. Em minha casa já recebi travestis em outras ocasiões e são tratados com a mesma naturalidade e cordialidade dispensadas a convidados de outros sexos, alguns até bem ilustres cidadãos.

Certa vez, durante um carnaval, fui à praia de Ipanema com meu filho Pedro Paulo, então ainda pequeno, e João Carlos tomou conta dele por longas horas na beira da água, fizeram castelinhos na areia, enfeitados com conchas do mar, carregaram o baldinho de água centenas de vezes para cá e para lá, jogaram bola e areia em todo mundo, comprou picolé e o garoto adorou aquilo tudo. Ele sempre teve boa vontade com o menino, e nesse dia eu fiquei especialmente grato, pois estava querendo curtir a praia e não estava com a menor disposição para passar a tarde na beira da água. Realmente foi uma ajuda muito bem vinda. Quem gosta de praia não deve jamais levar criança, a menos que esteja disposto a só tomar conta e ficar dentro da água o tempo todo.

Mas quem apareceu para o jantar foi uma negra de 1,80m, beirando os 23 anos, instalada em um par de calças jeans dentro do qual ela parecia ter sido soprada, blusa de seda branca com babados na gola e trajava uma jaqueta de couro que, paradoxalmente, a tornava ainda mais feminina. A maquiagem esfumada discreta valorizava o contorno dos olhos e atenuava a angulação do queixo. Os saltos da sandália não tinham menos que doze centímetros, o que tornava suas pernas infinitamente longas e roliças. Seus dentes são perfeitos e formam um colar de pérolas brancas que ela adora exibir até o último molar. Os cabelos negros e encaracolados, implantados aos montinhos, desciam pelas costas e chegavam até a linha da bunda, generosamente esculpida com silicone. Um colírio para os olhos. Se eu sentisse atração por travestis ou transexuais diria que ela é uma mulata escultural, de tirar o fôlego. Não precisou muito até que Pedro Paulo se encantasse com essa figura sorridente e sedutora. Todos concordaram que ela já deveria ter feito a transformação há mais tempo. Foi um upgrade considerável: de um gay negro de beleza comum, a uma mulher exuberante.

Num determinado momento aqui em casa, já devidamente alojado no colo da agora Adriana, o menino me perguntou se ele já a conhecia.
É ai que o verdadeiro motivo dessa narrativa tem início.
Respondi com a maior naturalidade que ele a conhecia sim, era o João Carlos, que já tinha brincado com ele algumas vezes. “Mas por que ele está assim?”, quis saber. Respondi que ele não gostava mais de ser homem e decidiu virar mulher. O garoto pareceu não dar a menor importância a esse detalhe, e continuou onde estava brincando com os cabelos dela. O que mais me surpreendeu, no entanto, foi a reação de um dos convidados, que me repreendeu ferozmente. Eu não teria o direito de expor meu filho pequeno a esse tipo de controvérsia, "são questões para adulto e não para criança", “por que não escondeu dele?”, "você não tem pena dele?" , "como você acha que vai ficar a cabecinha dele?" , "Você acha que está na hora de ele lidar com essa delicada questão de gênero?". Foram estas algumas das questões que ele levantou. “Não sei”. Essa foi minha resposta para cada uma de suas perguntas.

Eu mesmo tenho mais perguntas que respostas, possuo tão pouco a oferecer a meu filho, mas aqui em casa sempre primamos pela franqueza. Ele fez uma pergunta direta e eu respondi de maneira direta, sem mentir. Pedro não demonstrou o menor constrangimento ou embaraço com o fato de estar no colo de uma moça que já foi um rapaz, nem creio que tal revelação possa comprometer sua orientação sexual. Por isso fico achando que essa foi uma demonstração de preconceito, ou ignorância, de um dos meus convidados. Se meu filho demonstrar dificuldade em lidar com essa questão, talvez eu peça uma sessão extra a sua psicanalista para que juntos tentemos achar uma solução para o problema, mas no momento só me ocorre é que quem precisa de ajuda é esse rapaz adulto, homossexual aparentemente assumido e desencanado, que me repreendeu por ter dito nada mais que a verdade.