28 junho 2005

A Nova Ordem Familiar

Acabo de reler, desta vez com lápis na mão, o importantíssimo livro da psicanalista e historiadora francesa Elizabeth Roudinesco, "A Família em Desordem" e me impressionaram a clareza e o estilo firme e direto de dizer o que pode parecer óbvio, mas não é. Utilizando-se de complicado jargão psicanalista, (sujeito trágico, desejo perverso, discurso normativo, lei do pai, nome do pai, logos separador, etc.), e citando uma dúzia de psicanalistas e filósofos de diversas nacionalidades ela disseca, no capitulo oito, os novos arranjos e possíveis composições da família moderna. Eu devo confessar minha quase absoluta ignorância também nessa frente, embora freqüente há muitos anos as reuniões semanais da Escola Brasileira de Psicanálise - Movimento Freudiano - RJ. A maioria dos conceitos freudianos e lacanianos são ainda pra mim um mistério a ser desvendado, mas mesmo assim leio o que me cai nas mãos.`As vezes o texto é bastante claro, outras nem tanto, mas vou tentar trocar em miúdos o que consegui entender.

Segundo a autora, Sigmund Freud jamais ignorou o papel desempenhado pela tradição judaico-cristã na longa história das perseguições físicas e morais infligidas durante séculos àqueles acusados de transgredir as leis da família. Muitas vezes enfatizou que os grandes criadores eram homossexuais, e sempre foi sensível à tolerância do mundo antigo com a pederastia, em clara referência ao amor grego. Em todo caso, não colocou a homossexualidade entre as "taras" ou as "anomalias". Nunca abandonou a idéia de uma predisposição natural ou biológica, mas também não classificava a homossexualidade enquanto tal na categoria das práticas sexuais perversas, e distinguia a perversão, estrutura psíquica comum aos dois sexos, dos atos sexuais perversos praticados, sobretudo, pelos homens e, às vezes, pelas mulheres, fossem ou não homossexuais.

Peço licença à autora para transcrever aqui um trecho sobre a opinião de Freud emitida em 1935 acerca da homossexualidade: "A homossexualidade não é evidentemente uma vantagem, mas nada nela existe de que se deva ter vergonha, não é um vício nem um aviltamento, e seríamos incapazes de qualificá-la como doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual provocada por uma interrupção no desenvolvimento sexual. Diversos indivíduos altamente respeitáveis dos tempos antigos e modernos foram homossexuais, dentre os quais encontramos alguns dos homens mais grandiosos (Platão, Michelangelo, Leonardo da Vinci etc.). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como um crime, e também uma crueldade. Devo acrescentar que é em vão toda tentativa de transformar um homossexual em heterossexual".

Felizmente, nos dias de hoje já há juízes da infância e juventude, muitos dos quais jamais leram Freud, que possuem uma leitura mais humanista do texto jurídico e garantem a homossexuais declarados a adoções de crianças, embora ainda não a casais homossexuais. A Constituição Federal de 1988 assegura o direito de adoção a adultos solteiros, maiores de vinte e um anos que sejam no mínimo dezesseis anos mais velhos que o adotado, desde que reúnam as qualidades que o Estado requer para que se tornem pais adotivos. Mas esta interpretação literal do texto é colocada em prática por meia dúzia de juízes, se tantos, pelo país afora.

Eu mesmo, chefe de uma família para lá de alternativa passei por um processo de adoção de sucesso em que o Dr. Siro Darlan, àquela época juiz da Primeira Vara da Infância e Juventude me concedeu a adoção de meu filho Pedro Paulo há quase quatorze anos, na cidade do Rio de Janeiro. Após um ano em minha convivência, fomos convocados para uma audiência e nova certidão de nascimento foi lavrada em que recebeu meu nome de família e é meu herdeiro natural. Não há nada de errado em tentar recriar um modelo de família seja monoparental, seja homoparental nos dias de hoje. Hoje em dia muitas vezes uma criança tem pai e mãe, mas que por motivos alheios, mora com os avós. Às vezes, tem só mãe, às vezes só pai. Às vezes, tem pai e mãe, mas outra pessoa da família é quem a cria; às vezes mora com eles, mas não foi adotada por eles, e vive em estado de orfandade dentro de casa. Paternidade e maternidade ficam, então, reduzidos a mais uma função social que desempenhamos. O ser humano tem poucas relações biológicas. Tem mais relações adotivas: a gente adota tudo: marido, mulher, amigos, cultura, linguagem, comportamento, profissão, etc. O mito de que o amor está baseado no sangue está caindo por terra. Nessa chave se incluem gays e lésbicas que desejam construir juntos suas famílias.

Será preciso admitir um dia que os filhos de pais homossexuais carregam, como outros, mas muito mais que os outros, o traço singular (ein einziger Zug) de um destino difícil. E será preciso admitir também que os pais homossexuais são diferentes dos outros pais. Eis porque nossa sociedade deve aceitar que sejamos tais como somos. Ela deve nos conceder os mesmos direitos. E não é obrigando-nos a sermos "normais" que os homossexuais conseguiremos provar nossa aptidão a criar nossos filhos. Pois, ao buscarmos convencer aqueles que nos cercam de que nossos filhos nunca se tornarão homossexuais, nos arriscamos lhes dar uma desastrosa imagem de nós próprios. Que problema há em ser homossexual?

Um longo e tortuoso caminho teve de ser trilhado, todavia, desde a descriminalização da homossexualidade, passando pela sua retirada da lista de doenças psíquicas na maioria dos países industrializados no início dos anos 1970 até aqui. Muito se lutou para que os homossexuais fossem considerados pessoas comuns, cheias de qualidades e defeitos como qualquer outro cidadão, mas se você pensa que essa luta já chegou ao fim, pense melhor. Ainda há muito que fazer pelas gerações que virão. Ainda há muito que se escrever, ler, publicar, filmar, falar, expor, educar.
E essa é uma guerra de todos aqueles envolvidos na emancipação social e jurídica dos homossexuais, independentemente de sua orientação sexual. No mundo inteiro, legiões de pessoas lutam pela igualdade de direitos. Quando os casais homossexuais franceses obtiveram em 1999, sob sarcasmos e injúrias da direita parlamentar, um primeiro reconhecimento legal da sua vida comum, certos psicanalistas lacanianos adotaram uma posição de especialistas. Sem nada conhecerem das experiências americanas, lançaram-se em uma tortuosa cruzada contra a "dessimbolização" da ordem social, ou ainda os responsáveis por uma nova tentativa de supressão da diferença sexual.

Finalmente, creio que por mais alterações por que a estrutura familiar tenha passado nas últimas décadas, é improvável que ela vá se dissolver no futuro. Vistas as profundas modificações estruturais por que a família passou nas últimas décadas, é até possível que novos arranjos sejam inventados no futuro. Isso porque esse modelo de associação entre as pessoas sempre foi encontrado, mesmo nas comunidades mais remotas do planeta, e em todas as épocas da história como sendo a que mais conforto e segurança propicia a nós, seres humanos falantes e cientes da morte. Para sobreviver, a família do futuro certamente aprenderá se reinventar a cada dia.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

TE ACHO UMA PESSOA BRILHANTE . E JURO GOSTARIA MUITO DE CONHECELO!, mas nao faltara oportunidade. beijaooooooo

3:20 PM  
Anonymous Anônimo said...

Por duas vezes, pude vê-lo no programa da Silvia Poppovic... Não só a beleza, mas outras duas coisas me chamaram atenção em você: a postura corajosa de homossexual assumido e a adoção (não menos corajosa) do garoto negro...Que menino de sorte este Pedro Paulo! Fiquei encantada! Você irradia a tranqüilidade, a calma e a paz que, creio, só os sábios possuem... Anotei seu nome e prometi a mim mesma que o rastrearia na Internet... E foi uma enorme alegria poder ler seus textos. Adorei o seu estilo. Agora pretendo rastrear seu livro (ou livros?)...(rs) É de pessoas assim que o mundo precisa! Ficaria muito feliz em poder vê-lo e ouvi-lo novamente, porém não moro no Rio(onde seria mais fácil descobrir suas palestras, etc) e, assim, terei que me contentar em entrar com freqüência aqui ou aguardar que alguma emissora inteligente o entreviste de novo.

11:17 AM  

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