28 junho 2005

Doce Mistério da Vida


“Minha vida, que parece muito calma,
Tem segredos que eu não posso revelar.
Escondidos bem no fundo de minh’alma
Não transparecem nem sequer por um olhar...
... A ninguém revelarei o meu segredo
E nem direi que é o meu amor”.

Ah! Sweet Mistery of Life, de V. Herbert, lindamente vertidos para o vernáculo por Alberto Ribeiro, virou canção, foi gravada por Maria Bethânia e no ano de 1977 no auge da minha adolescência eu a gritava a plenos pulmões enquanto batia violentamente no violão. Coitado.
Lembrei-me desses versos para introduzir a crônica de hoje.

Há uns dez dias cheguei de Pernambuco, de uma cidade próxima a Recife, onde estive passando uma semana de férias. Fiquei hospedado em uma pousada, entregue ao dolce far niente das redes, boa comida e da brisa do mar nordestino. Sei que não mereço nada disso, mas fui assim mesmo. Fui levado de volta ao aeroporto de carro por um garoto, de uns 20 anos que trabalha na pousada onde fiquei e durante a viagem ele me perguntou se podia confiar em mim. Sem saber direito do que se tratava, eu disse que sim, porque digo sim sempre, e contou uma estória que dizia ser referente a um amigo seu. Eu pensei cá comigo: “fiquei uma semana entregue às baratas e logo no ultimo instante esta gracinha vem me dizer que está a fim de mim?”, formulei, já meio delirante. Eu, mesmo confuso, mas muito curioso, fiquei quieto e esperei que ele terminasse. Ele me disse que esse seu amigo havia se casado com uma moça, mas que na realidade era e sempre havia sido apaixonado pela irmã dela. A coisa evoluiu a um ponto em que ele mal consegue suportar as investidas da mulher, quando ela “o procura na cama”. Ele só consegue terminar quando pensa na irmã dela. Discretamente olhei de lado e vi seu rosto compungido, o segredo traído pelas lágrimas. Ao final ele me perguntou o que eu achava que ele deveria dizer a seu amigo, que conselho eu poderia dar para ele sair da enrascada em que havia se metido e pudesse voltar para os braços da irmã dela.

Por uns instantes fiquei pensando no que dizer. E um monte de perguntas passou pela minha cabeça. Uma delas: por que ele me contou isso? Nunca conversamos durante todo o tempo que passei na pousada. Por que ele confiou a mim um segredo desses? Eu conheci sua esposa e ela é linda e gentil. Como deve ser duro guardar um segredo desse no coração! Perguntei a ele por que seu amigo havia se casado com uma gostando da outra e nessa hora ele resolveu abrir o jogo e assumir que o tal amigo era ele próprio. Fiz cara de surpresa para não desapontá-lo e ele disse que só poderia me responder àquela pergunta contando uma pequena estória de sua vida. Eu estava mesmo confuso, a historia mudava de rumo a cada instante. Como era cedo ainda para o vôo, eu disse que podia, contando que não chegássemos atrasados. Ele riu e disse que desde muito cedo foi criado na casa de parentes, “sem amor de mãe”, viveu em diversas cidades, começou a trabalhar com oito anos de idade e sempre teve que lutar para sobreviver.

Sempre desejou a companhia de uma mulher-esposa que tomasse conta dele e da casa, mas quando quis casar com a garota por quem era apaixonado, ela contava apenas 14 anos e ele 17. Quando falou em casamento a família dela se opôs e ofereceu a irmã, que já estava com idade para assumir compromisso: 17 anos. E ele, na confusão, aceitou a oferta e se casaram, esperando que se acostumasse com ela. Fiquei com tanta pena dele, dela e da irmã dela, fiquei com uma tremenda pena de todos os envolvidos. Ninguém é culpado, todos são vítimas: da ignorância, da pobreza, da imaturidade, da pressa, da falta de informação, da falta de diálogo, da falta de franqueza, da falta de um monte de outras coisas e o garoto se meteu em um rolo que, infelizmente, na minha opinião não tem solução. Eu não disse nada, mas não hora me ocorreu que aos vinte anos essa talvez seja sua primeira desilusão no amor. Outras virão. Certamente.

Para minha total surpresa, dois dias depois de haver chegado ao Rio meu telefone tocou e era o garoto pedindo que eu telefonasse para a cunhada, identificando-me como um psicólogo que se hospedara na pousada, e dissesse para ela que ele ainda gostava dela, pedia que ela o recebesse para uma conversa e queria saber se ele tinha qualquer chance com ela, caso viesse a se separar de sua irmã. Fiquei numa situação delicada, mas resolvi aceitar atender a seu pedido, porque, como já disse, eu sempre digo sim. A moça mora em uma cidade distante uns 180 quilômetros de onde eles moram e por isso eles mal se vêem. Depois de passada a surpresa de estar sendo chamada do Rio de Janeiro, por alguém que ela não sabe quem é, me pediu para dizer a ele que a esqueça, pois é isso que ela vem tentando fazer há três anos. “E se ele quer me ver feliz, então que faça a minha irmã feliz. E diga a ele, que se quiser, ele pode até se separar da minha irmã, mas vai ter que procurar outra pessoa, pois a vez dele já passou”. Fiquei comovido e surpreso com tanta maturidade, tanta dignidade e fibra demonstradas por uma garota que tem hoje meros 17 anos. A família deles de nada sabe, nem a esposa imagina que o coração do seu jovem esposo abriga tamanho mistério. A parte onde eu disse ser psicólogo foi a que mais gostei.

E o que isso tem a ver conosco, homossexuais? Quase nada, exceto o fato de muitos de nós vivermos lamentando por termos de conviver com o segredo de nossa orientação sexual, como se fôssemos as pessoas mais infelizes do mundo só porque não podemos sair por ai trombeteando aos quatro ventos o nome de nosso amor. Principalmente nas cidades do interior ainda é muito comum os gays mais jovens sofrerem horrores por terem que ocultar da família e dos amigos seu prosaico segredo, como se isso os fosse atirar para sempre no fogo da danação. É claro que em certos casos o fogo da danação seria até preferível; a estupidez e crueldade humanas não têm limite. Acho até que nesse caso específico seria bem menos grave que revelar a orientação sexual.
Antes de nos lamentarmos por ter que viver camuflados, talvez fosse mais sábio lembrarmos que não estamos sós e que ter que guardar segredo não é prerrogativa de homossexuais, apenas. Vide o drama do rapaz da posada. E posar de vítima não condiz com a postura do homossexual do século XXI, filhos da geração pós Stone Wall, curtidos por anos de luta por emancipação e conscientização. Então analise os riscos e abra o verbo. Se, contudo, achar que ainda não é hora ou não quiser pagar o preço, recolha-se à segurança de seu armário, mas sem drama.

E por falar em Stone Wall, não custa lembrar aos que ainda não sabem do que se tratou esse importante acontecimento. Em 28 de Junho de 1969, cansados de serem escorraçados, agredidos e presos pela polícia de Nova York, os homossexuais que freqüentavam um bar com esse nome em Greenwich Village, conhecido reduto gay daquela cidade, resolveu reagir e se recusaram a entrar no camburão. A violência se espalhou por outros bares e boates daquela rua e outras tantas da redondeza quando os gays e lésbicas contra-atacaram atirando contra a polícia coquetéis molotov, paus e pedras, protegendo-se por detrás de barricadas feitas com mesas e cadeiras dos estabelecimentos. Esse levante durou três dias e três noites mas aquilo não adiantou muito pois a truculenta polícia de Nova York sendo bem mais forte que um punhado de gays e lésbicas enfurecidos acabou por prende-los a todos. Mas a mais importante conseqüência desse fato é que esse “ato de rebeldia” marca o início do movimento de conscientização homossexual de nossos dias. Começou-se nesse dia a se questionar a até então contumaz brutalidade policial contra gays e lésbicas. A noção de emancipação, igualdade de direitos, indo no seu bojo incluídos outros que só bem mais tarde vieram a se fortalecer nos meios onde se discutem cidadania como direito à sucessão, parceria civil registrada, direito à declaração conjunta de imposto de renda, descontos, filiação, obtenção de empréstimos bancários de longo prazo para compra de imóvel, dependência em clubes e planos de saúde, herança, renda familiar conjunta para se obter empréstimos, e vários outros que agora não me ocorrem. Nada do que se faz hoje na luta pela igualdade de direitos seria possível sem a coragem desses gays e lésbicas anônimos que souberam subir nas tamancas quando foi preciso. A eles, meus agradecimentos.