04 julho 2005

Alma Aprisionada

A sexualidade humana sempre foi terreno arenoso, fluídico, sem contornos definidos e talvez por isso desperte o interesse de estudiosos há séculos. Muitas teorias têm sido propostas para explicar a orientação sexual de adultos. Nenhuma, contudo logra explicá-la em sua inteireza. Algumas possuem abordagens ontológicas bastante críveis, como aquela proposta por Sigmund Freud e seu famoso Complexo de Édipo. Formulada há um século, já foi alvo de todo tipo de crítica, mas ainda não foi desbancada. Outras teorias falam de um alelo no gene da sexualidade (sic) que deu errado, e há ainda aquelas abordagens de cunho religioso segundo as quais a reencarnação serve para expiar erros cometidos ou recompensar benfeitorias em outras vidas. As teorias são tantas quantas são as sexualidades. Particularmente, eu acho que cada um tem a sua sexualidade, então, classificações perdem todo o sentido.
Mas orientação sexual sozinha não abarca a complexidade de todas as nuances do sujeito do desejo. Outros conceitos como identidade de gênero conseguem esclarecer e complicar ao mesmo tempo duas das principais características do ser humano, qual seja a sua inserção na cultura e sua sexualidade.
Acostumadas a estereótipos heteronormativos comuns como o do homem que gosta de mulher e da mulher que gosta de homem, muitas pessoas não se apercebem da existência de outras variações ainda menos comuns que gays e lésbicas, como os transexuais homossexuais. Existem homens que gostam de mulher, mas que se sentem mulheres, então eles transformam seu corpo físico através de cirurgia radical para parecer mulher (emasculação, ablação de pênis, construção de neovagina, implantes de prótese de silicone nos seis, entre outros), é a chamada mulher transexual e continua gostando de mulher. Outra variação, menos comum é o contrário disso: mulheres que transformam seu corpo para parecerem homens, (com cirurgia para remoção dos seios e tratamento com injeções de testosterona), e continuam se sentindo atraídas por homens, são os homens transexuais.
A medicina, sempre ávida em categorizar, patologizar e curar o bicho humano não tardou a dar nome, definir e classificar a transexualidade. Com nomes pomposos essas publicações fazem o deleite da classe médica. Os livros e artigos de medicina ainda empregam o termo transexualismo.
O termo “transexualismo” aparece nos dois principais manuais de diagnóstico utilizado profissionais de saúde mental, da Associação Psiquiátrica Americana: Manual Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, atualmente em sua quarta edição) e n Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID, atualmente em sua décima edição). A CID-10 inclui o transexualismo, o travestismo bivalente e transtorno de identidade do gênero de infância em sua categoria distúrbio de identidade de gênero, e define o transexualismo como" desejo de viver e ser aceito como membro do sexo oposto, geralmente acompanhado por um sentimento de desconforto, ou inadequação ao seu sexo anatômico e um desejo de se submeter a cirurgia e tratamento hormonal para tornar o corpo tão congruente quanto possível, com um do sexo preferido.
O diagnóstico do DSM requer quatro componentes:
1 - Um desejo ou a insistência de que se é do sexo oposto biológico.
2 - Evidências de um desconforto persistente e sensação de inadequação ao sexo biológico do indivíduo
3 - O indivíduo não pode ser intersex (apresentando traços sexuais externos comuns aos dois sexos).
4 - Evidências de sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no trabalho ou na vida social.

Para mim, entretanto, essas classificações médicas são todas ineptas pois não conseguem ao menos arranhar a superfície de assunto tão delicado. Por isso, o importante é respeitar esse sujeito, independentemente de seu invólucro, aquele com o qual ele/ela se insere no mundo. Se tiver dúvida, se não souber qual pronome usar ao se referir a ele/ela, então pergunte. A pergunta, embora possa parecer tola procede, pois por incrível que pareça existem aquel@s que sentem que as terminologias masculino/feminino não abarcam a complexidade que el@s atribuem a seus seres e preferem ser chamados ao mesmo tempo de homem/mulher, ou nenhum dos dois. Por isso, não precisa entender, pois o tema é mesmo complexo e poucos especialistas sabem realmente com o que estão lidando. Apenas respeito para com essas pessoas já seria um bom começo.
Uso esta breve introdução para apresentar um fato que me ocorreu há alguns anos.

A reunião do Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual estava marcada para começar às 20h30min naquela sexta feira fria de junho, mas cheguei por volta das 20h00min porque precisava preparar umas coisas antes de começar a oficina. Naquela época eu estava responsável pelo café e os biscoitos e tinha que ligar a cafeterira botar a mesa, e organizar os detalhes que faziam nosso encontro semanal mais saboroso.

Desde a semana anterior sabíamos que iríamos conhecer e entrevistar um homem transexual. Mesmo sem saber exatamente o que isso queria dizer, cheguei cheio de expectativa, sabendo que ia conhecer algo inusitado. Eu tinha visto esse senhor lá desde que entrei, mas como na nossa sede sempre havia pessoas estranhas – nas várias acepções da palavra – não dei importância. Quando a roda se fez e ele se sentou no centro percebi que era ele o nosso convidado da noite. Nada naquela pessoa poderia trair um passado feminino, se é que houve: tratava-se se um homem de aproximadamente 52 anos, ligeiramente calvo, barbeado, mas não era imberbe, trajava calça masculina escura de um tecido que parecia brim, com bolso-faca e uma camisa de flanela xadrez com as mangas arregaçadas até os cotovelos, sapatos pretos de amarrar, relógio grande de desenho masculino e mais nada. Sentou-se com as pernas cruzadas, o tornozelo direito apoiado sobre o joelho esquerdo e recostou-se na cadeira, a camisa ligeiramente entreaberta, exibia peito musculoso e peludo, abdômen sem barriga, os braços ligeiramente jogados para trás na cadeira. Apresentou-se como Antonio e começou a falar quase sem mexer a cabeça, com a voz pausada, de inflexão reta, sem demonstrar emoção sobre sua historia pessoal. O combinado seria que, ao final, se alguém desejasse, poderia fazer perguntas visando informação sobre tipos humanos que envolvem orientação homossexual.

Ele é carioca, nascido e criado no bairro de São Cristóvão. Freqüentou a escola até o segundo grau e desde criança sempre se percebeu como menino. Só gostava das brincadeiras dos meninos e achava as meninas muito bobas. Quando ainda vivia como menina, era um capetinha desordeiro e gostava de ser tratada como menino. Subia em árvore, brigava, atirava com sua espingarda de brinquedo e, nas festas, vestia-se de pirata, com tapa-olho e bigode desenhado com cortiça queimada. Era craque no futebol, mas também gostava de jogos de contato físico, como as lutas e pega-pega. Sua avó, preocupada com sua aparência viril vivia lhe dando vestidos de presente, para seu total desânimo. Quando saiam juntas, ela sempre parava em frente às vitrines das lojas e lhe mostrava brinquedos, roupas de menina e repetia “Vai ficar lindo em você!”. Nesses momentos, ela queria matar a velha.

Durante toda a entrevista Antonio não revelou seu nome de mulher, e por sorte, ninguém perguntou. Ele disse que essa era uma marca de seu passado que gostaria de deixar enterrado. Com certo orgulho, ele afirma que nunca namorou rapazes, nunca fez sexo com homens. A única vez que um amigo tentou lhe abraçar numa festa, meio bêbado, já tentando lhe dar um beijo, ele reagiu da maneira que qualquer homem reagiria à investida de outro: com violência, deu-lhe um tapão na orelha que o atirou ao chão. Afinal, ele se sentia um homem heterossexual. Não precisou explicar mais nada, cada um ali parecia ter entendido o despropósito dos avanços românticos de alguém por quem não se sente minimamente atraído.

As primeiras diferenças que percebeu como conseqüência de suas disforia de gênero era o fato de seus amigos de infância, todos meninos, urinarem de pé e ele não. Ficava frustrado por que não conseguia. Mas tentou muito. Teve uma infância relativamente feliz até se ver preso na armadilha que a natureza lhe preparara na adolescência: o crescimento dos seios e a menstruação, entre outros horrores que se faziam notar em seu corpo, acarretados pela explosão dos hormônios. Quando começou a menstruar ele foi tomado de um horror que viria a persistir até a cirurgia de remoção dos ovários e útero, vinte e cinco anos mais tarde. Aquilo era a prova de que havia algo de muito errado no seu corpo, algo que estava além do seu entendimento e certamente sem chance de aceitação. A confusão e a raiva que balizavam sua estrutura psíquica o levaram pelo caminho das drogas e do álcool contando até uma tentativa de suicídio. Saiu cedo de casa por não conseguir fazer sua família entender que ele era um homem nascido dentro do corpo de uma mulher, uma alma aprisionada, em suas próprias palavras. As brigas com os pais eram constantes e não houve para ele alternativa senão interromper os estudos e começar a gerir seu próprio sustento a pouca idade de dezoito anos.

Aprendeu o ofício de mecânico numa oficina situada à Rua Bela, e como tinha queda para o negócio, em pouco tempo montava e desmontava motores de fusca, e isso ele relata sem conseguir esconder uma ponta de orgulho. Em poucos meses era considerado um dos melhores mecânicos da oficina. Era aceito por seus colegas e amigos, todos sabiam que se tratava de uma mulher, mas conseguiu impor respeito simplesmente com uma atitude viril e o estabelecimento de limites claros. Os anos se passaram e Antonio continuou trabalhando nessa oficina. Os funcionários eram todos muito amigos, jogavam futebol no sábado à tarde. Com eles vinham suas esposas, namoradas e filhos, pois sempre tinha um churrasco e cerveja para acompanhar a farra. Ressentia o fato de não poder tomar banho com os amigos depois do jogo, pois o chuveiro era coletivo e em sua opinião seria um despropósito tirar a roupa e expor aquilo que ele considerava uma anomalia: um corpo perfeitamente saudável de mulher, esculpido ao longo de anos de exercícios físicos pesados que a profissão exigia.

Aos vinte e dois anos conheceu uma mulher, se apaixonaram e foram morar juntos. Dez anos depois arranjaram um esquema com um amigo homossexual para ela engravidar, um favor especial: ele se masturbaria, ejacularia dentro de uma seringa sem agulha e Antonio injetaria o esperma no colo do útero de sua esposa, a qual já aguardava deitada na cama do casal no quarto contíguo, devidamente preparada e no seu dia mais fértil. Tudo isso porque os três concordavam que uma relação sexual entre os dois estava fora de cogitação e seria de péssimo alvitre. Não deu outra, ela engravidou na primeira tentativa. O menino nasceu de parto normal nove meses depois e viveram felizes por mais doze anos.

Trabalhou mais do que o habitual, durante anos juntou todo o dinheiro de que precisava e conseguiu fazer a tão sonhada cirurgia. Primeiro os seios foram extirpados por um cirurgião plástico, e seis meses mais tarde este conseguiu lhe fazer um arremedo de pênis utilizando retalhos de tecido do próprio abdômen e a introdução de uma prótese de silicone: o que ele chamou de rolinho primavera. É claro que ele não nos mostrou seu genital, mas explicou que está sempre em estado de prontidão, intumescido, o que às vezes pode causar certo embaraço quando veste calção de banho para ir à praia. Por isso, costuma usar o neopênis virado para baixo, dentro da sunga. Disse que não sente prazer sexual no seu órgão por assim dizer, mas seu clitóris está preservado, embora não o estimule manualmente e se compraz em penetrar e ver o deleite refletido nos olhos de sua esposa. Seus caracteres secundários foram conseguidos com injeções de testosterona, uma injeção semanal, em casa, na barriga com agulha hipodérmica. Com os anos, sua voz adquiriu um timbre mais grave de barítono, os pelos corporais ficaram mais espessos e cresceu uma barba cerrada da qual exibe também certo orgulho, embora, ainda segundo ele, esteja sempre barbeado. Devido à sua já meia-idade possui uma ligeira calvície que não lhe desagrada completamente, pois a toma como acidente de percurso. “Careca faz parte”, arremata ele, dando risadas.

Como foi o caso, a vida deu suas reviravoltas. Quando seu filho contava doze anos, e ele quarenta e dois anos, Antônio se apaixonou por um homem. É isso mesmo, senhores: nosso amigo, depois de ter vencido o Cérbero guardião dos portões do inferno para virar homem resolveu se apaixonar por outro homem e deixou lar, emprego, esposa e filho em São Cristóvão e foi viver com o novo namorado. Alguns meses depois de rompido o relacionamento de vinte anos, ele se mudou para Bangu, para viver um amor homossexual, e não me perguntem qual dos dois fazia papel ativo na relação. Ou mesmo se havia relação sexual.

Ao final da entrevista não resisti à tentação e perguntei se ele algum dia se arrependeu de ter se transformado em homem, ao que respondeu que não, o que suscitou uma cascata de perguntas na minha mente. Mas preferi não soltá-las: para que você se transformou em um homem se era para se apaixonar por outro homem? Se era para se apaixonar por um homem, por que não continuou sendo mulher? Será que seu desejo era o de viver sempre na contra mão da sexualidade? Será que sempre quis ser gauche na vida? Por eu não conseguimos controlar nossos desejos? Por que razão e emoção na andam juntos?
Depois que ele se foi, fiquei com a sensação de que tinha muito mais perguntas do que respostas, e me consola apenas o fato de saber que aquelas, muito mais do que estas, é que são as verdadeiras molas do mundo.

1 Comments:

Blogger Homem, Homossexual e Pai said...

Angelo, que historia de vida hein? Fico imaginando o conflito que ele vivenciou, primeiro sendo um homem heterossexual aprisionado num corpo de mulher, depois um homem homossexual aprisionado num casamento heterossexual...o coração dele deviam fazer rodamoinhos....que coisa!
Deve ter sido uma experiencia e tanto assistir este depoimento!
abs

3:46 PM  

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