04 julho 2005

Souza & Lima

Ontem fui a um jantar na casa e um casal de amigos que se uniram recentemente e recebiam amigos para mostrar a casa nova. Lá conheci um casal de senhores que vivem em simplicidade doméstica, casados há mais de meio século. O que me chamou atenção neles a princípio foi sua discrição e o carinho com que conversavam um com o outro, de mãos dadas, quietos a um canto da sala. Não tardei em me apresentar a eles sem constrangimento. Depois de alguns minutos já conversávamos animadamente segurando as mãos, como velhos amigos, eu fazendo inúmeras perguntas, como é meu feitio, e ouvindo as explicações fartas de detalhes. A figura daqueles dois tanto me impressionou que resolvi escrever sobre eles, para não me esquecer deles.

Eles se conheceram em 1953 quando o mais velho, que chamarei Sr. Souza tinha 37 anos e o mais jovem, Sr. Lima contava apenas 17. Sr. Souza estará completando 88 anos em breve e seu companheiro, 68. Ainda lúcido – a despeito de ocasionais repetições - e altivo e de aparência saudável, o mais velho trajava um surrado terno escuro e seu companheiro usava roupa bem mais social. O encontro dos dois foi muito engraçado, e eles contam os dois juntos, às gargalhadas, falando ao mesmo tempo, um completando a frase inacabada do outro. “Quer saber como nos conhecemos?” perguntaram. Quem não gostaria?, pensei. Lima era aprendiz de desenhista e trabalhava em um escritório situado em um prédio ao lado do banco de que Souza era gerente, na esquina da Rua da Assembléia com Quitanda, centro do Rio de Janeiro. Um dia Souza precisou ir lá por algum motivo. Mal entrou e viu Lima abrindo uma porta com o cotovelo, pois nas mãos carregava uma bandeja cheia de lápis e materiais de desenho. De repente Lima se virou e deram os dois um encontrão daqueles e tudo voou pelos ares e caiu espalhado no chão. Sr. Souza prontamente se desculpou e se abaixou para ajudar a catar o material do outro. Só quando haviam terminado é que ele olhou para o rosto garoto e estremeceu, “era uma flor de formosura, uma candura no olhar, uma beleza casta de um anjo de Boticcelli que até então eu só julgava existir nas revistas de cinema. Os cachos de cabelos loiros lhe caiam sobre a fronte, lindamente adornada com aquele par de olhos azul da cor do mar”. Que engraçado alguém descrever o rosto de um rapaz com estas palavras, pensei. Hoje se alguém as usasse, eu jamais idealizaria um rosto atraente. Enfim... Foi amor à primeira vista.

A partir dali Sr. Souza se ocupou de escrever longas cartas apaixonadas e pedia ao ascensorista para entrega-las ao garoto. Perguntei se eles achavam que o funcionário do elevador sabia do que se tratava e eles disseram que decididamente não, nem lhe passava pela cabeça.
- Mas foram oito cartas, eu disse.
- Mesmo assim, Lima respondeu.
- Mas oito cartas em uma semana! insisti.
- Mesmo assim! repetiu ele, um semitom acima. Naquela época as coisas não eram como hoje, havia muito mais respeito e inocência, redargüiu o outro.
Pode ser, pensei, mas então foi preciso mesmo muita inocência. Lima, em sua enorme inocência, apavorado e sem saber direito o que estava acontecendo mostrou as cartas a sua avó, que o criou e a quem ele chamava de mãe. Ela, que embora nascida no século XIX vivia anos luz adiante do seu tempo, disse apenas: “Só sei que isso não são cartas de menino, são de homem vivido. Você faz o que quiser da sua vida”. Parece que o aceite houvera sido dado.

Souza pegava Lima na saída do expediente e iam passear de bonde, tomar um sorvete e caminhar pela Cinelândia no fim de tarde, início da noite. E viam filmes de Carmem Miranda, a quem Sr. Souza conheceu muito bem pois tinham amigos em comum. Disse que ela era sambista como o é hoje Beth Carvalho antes de se tornar rumbeira chica-chica-bum, o que me surpreendeu pois sempre achei que ela já nasceu com aquelas frutas na cabeça. Freqüentaram o Cassino da Urca e ele participou e ganhou concurso de sósia do Getúlio e deu autógrafos na rua. E assim se passaram os meses e só depois de um ano, deram o primeiro beijo. “Afinal, eu não podia me fazer de fácil, o que ele haveria de pensar de mim?” se desculpou Lima. “Não queria dar a impressão que eu estava apenas interessado em me aproveitar dele”, completou Sr. Souza. E eram presentes e cinema e jantares e “mimos” e a paixão dos dois crescia a cada dia até que, três anos mais tarde, decidiram irem morar juntos na Rua do Rezende no centro da cidade.

Mas a família do Sr Souza era da alta sociedade, seja lá o que isso signifique, era o mais jovem de seis irmãos que, acreditava ele, de nada sabiam e nem desconfiavam. Assim, optou por uma solução simples mas engenhosa: resolveu adotar Lima como seu legítimo filho. Naquela época uma diferença de vinte anos era enorme e o suficiente para justificar uma adoção. Hoje, esses vinte anos já se diluíram e eles não apresentam traços que os difeririam de outros tantos pensionistas da terceira idade. A família do mais velho achou que Lima era produto de um romance fugaz com uma dançarina qualquer, uma coquete do dancing e se contentaram em aceitar sua decisão sem mais perguntas. Todas ficaram felizes e orgulhosas com a nobreza do gesto do irmão, só que nunca foram visitá-los em sua nova casa.

Anos depois, em 1960, ano em que eu nasci, mudaram-se para Nova York, onde trabalharam para companhias brasileiras, cujas aposentadorias são o que os sustenta ainda hoje. Conheceram muitas pessoas interessantes, ganharam bastante dinheiro, fizeram diversos cursos, foram assistir a todos os musicais da Broadway e lá viveram felizes por quinze anos.

Quando perguntei se seus diversos sobrinhos e sobrinhos-netos alguma vez perguntaram sobre o que os unia Sr. Souza sentiu-se quase aviltado com a indiscrição da pergunta e foi veemente, com dedo em riste: “Nunca ousaram perguntar nada sobre minha vida particular, nunca dei entrada para tanto. O que faço da minha vida nunca foi da conta de ninguém”. Eu achei uma pena que eles tivessem que viver suas vidas em segredo de suas famílias, colegas de trabalho, ficando essa interessante história de amor restrita a um grupo reduzidos de amigos, depositários de sua confiança e confidências, talvez cúmplices ou parceiros do mesmo tipo de amor que hoje em dia, felizmente, já ousa dizer seu nome. Esta foi a impressão que ficou. Não posso deixar de pensar sem uma ponta de pesar nos milhares de gays jovens cujas vidas poderiam ter sido tocadas de maneira bastante positiva tivessem eles ouvido falar desses dois e talvez descobrissem que dois homens podem, sim, viver juntos vidas de pessoas comuns, a salvo da busca incessante por amor e da promiscuidade que grassam nesse meio. Mas eles optaram por viver na mais completa obscuridade.

Hoje em dia já acho que um bom exemplo pode muito mais que a incansável militância das ruas. Sei que os tempos eram outros, e os riscos seriam grandes demais, mas tenho admiração por aqueles que não têm medo, pelos que metem a cara, pelos que se ferram em nome de um ideal, pelos bois de piranha, pelos faróis que mostram o caminho, gosto daqueles que se mostram, se expõem, se arriscam, se comprometem. Desprezo os pelegos, os medrosos, os fura-greve, os que comem pelas beiradas, os que se escondem nos armários e embaixo da cama, os que molham só os dedos. Creio que viemos ao mundo para transformá-lo de alguma maneira, para deixar nossa marca, para fazer diferença. Se não fosse por uma contribuição mesmo ínfima, um grão de areia na vida de alguém mesmo desconhecido, penso que minha vida não valeria a pena. Como Platão, também acho que vida que não se consagre ao incessante procurar, não vale a pena ser vivida. Infelizmente, meu leitor não saberá ao certo o que realmente sinto por essas curiosas personagens que conheci, pois nem eu sei. É que meus sentimentos são duais, iguais, mas opostos.

E qual o segredo desse amor que já atravessa meio século? Pensaram longamente, olho no olho. Amor, respeito e acima de tudo muita sorte. “Ah! Quem me dera viver cinqüenta anos ao lado de alguém!”, suspirei. “Bom, faça as contas você mesmo, você tem quarenta e três anos, e se ainda não tem namorado é melhor se adiantar. A casa está cheia de gente jovem e bonita e acho bom você arranjar um companheiro ainda hoje. Alguém há de lhe servir”, foi o conselho.

De nada adiantou. Vim para casa sozinho. Mas feliz por ter conhecido dois sujeitos tão especiais.

2 Comments:

Blogger Homem, Homossexual e Pai said...

Angelo, parabéns pelonovo BLOG, realmente ficou mais fácil de ler!
Sabe que eu acho que eu conheço o Souza e o Lima? Cruzei com eles na "Raposa da Montanha" em Campos de Jordão,mas não sabia que a estoria deles era tão linda! Fiquei com uma saudável inveja de tanto amor!

3:39 PM  
Anonymous Anônimo said...

Angelo, muito bacana seu blog, sua forma de tratar as palavras, sua memória e a substância que as histórias têm. Ainda não as li todas, mas li a "Alma Aprisionada" e esta aqui que, decididamente, me fez viajar pelas vezes em que pude sentir a possibilidade de viver algo assim. Muita lindeza no que veio a ser, considerando os outros tantos possíveis na história deles. Talvez a gente esteja se perdendo dessa busca do "grande amor", dessa busca de quem também está buscando a gente. Pra terminar, sinceramente, achei terna e luminosa a descrição que o Silva fez do Lima... mas, que bom que cada um sente de um jeito, não é? Tudo de bom pra vc. Vou continuar lendo e recomendarei aos amigos.

9:58 PM  

Postar um comentário

<< Home