11 julho 2005

Caras & Coroas

Na Grécia antiga, o amor entre homens, ou mais precisamente, o amor entre homens mais velhos e rapazes mais jovens (erastes e ermonenos, amante e amado, respectivamente) foi aproveitado para o bem do Estado e do crescimento intelectual e social dos rapazes. Esses relacionamentos eram vistos como ritos de passagem para a vida adulta. Embora não se tratasse estritamente de amor gay como nós o conhecemos hoje em dia, este tipo de relacionamento estava fundamentado na paixão erótica entre dois homens.

O termo homossexualidade, como é hoje entendido não se aplica à antiguidade grega por três razões: primeiro, a maioria dos gregos era bissexual. Segundo, o termo homossexual foi cunhado no século XIX e os conceitos “sexualidade” e “gay”, enquanto identidades sexuais são desenvolvimentos recentes, que surgiram apenas no século XX. A idéia do que seria um comportamento gay e a existência mesma, isto é, visibilidade de homossexuais, bem como o surgimento de reivindicações de direitos de gays e lésbicas na paisagem cultural mundial foi amplamente influenciada pelo ativismo gay iniciado no final da década de 1960. E por fim, e não menos importante, a paixão e amor erótico entre homens adultos (modelo do que seriam os relacionamentos homossexuais dos dias de hoje) era considerado de forma geral incomum e motivo de ridículo. Quando se listam exemplos importantes de tais relacionamentos na Grécia antiga não se podem negligenciar aqueles de Alexandre o Grande e seu amigo de infância Hephaiston, o herói mítico da guerra de Tróia Aquiles e seu melhor amigo e amante Pátroclos, Platão e seus poemas a efebos belíssimos. Já foi dito que Hérakles (Hércules) conseguia realizar melhor seus trabalhos quando seu amado Iaolos o observava.

Acreditava-se que o jovem se enriquecia pela amizade de seu amante e que este se esforçara para alcançar as alturas da realização humana, no campo de batalha, esporte, cultura ou profissão, para ser digno de seu jovem amado. Mantinha-se que estas parcerias de amantes tornavam os homens invencíveis na batalha. Quando amadureciam, escolhiam uma moça da mesma classe social e com ela se casavam.
Tais relacionamentos não eram exclusividade dos gregos antigos. Há relatos bem semelhantes, embora por motivações distintas, também entre culturas na África subsaariana, árabes desde os mouros no sul da Andaluzia , norte da África até o oriente médio, na Itália renascentista, Rússia, Índia, China, Japão, Oceania e nativos da América do Norte.

Há alguns anos, quando ainda era membro atuante do Grupo Arco-Íris de Conscientização Homossexual resolvi participar de um dos inúmeros passeios em que se metiam os membros daquela instituição. Havia passeios que duravam um dia inteiro: pic-nics na Floreta da Tijuca, acampamento nos jardins do Museu de Arte Moderna, viagens a praias distantes, entre outros, que visavam principalmente a integração, desenvolvimento e troca de idéias e afetividade seja de cunho homo-afetivo, sexual ou não. Nessa época o nosso grupo andava muito próximo de um outro grupo de homossexuais que se reunia nos fins de semana em algum endereço furtivo do centro da cidade, chamado Caras & Coroas. Como próprio nome sugere, era um grupo bastante heterogêneo composto de pessoas que se encaixavam em duas faixas distintas de idade: uma de rapazes em torno de vinte e cinco anos e a outra, de senhores já beirando os sessenta. As reuniões desse grupo não possuíam o caráter acadêmico que permeava as nossas, oficinas de discussão de organização quase acadêmica, bem mais intelectualizadas; eles não discutiam temas importantes para a comunidade GLS e nem se empenhavam pela causa gay de forma geral. Como a Turma OK, o primeiro grupo de gays do Brasil, fundado em 1960, único compromisso daquela galera era o de se divertir. E muito.

Desta feita o grupo Caras & Coroas organizou um evento e nós fomos convidados a participar. Tratava-se de um passeio de escuna pela enseada de Itacuruçá, situada no litoral sul do Estado do Rio de Janeiro. A saída estava marcada para as nove horas da manhã e chegada, às seis da tarde; ou seja, um dia inteiro de farra nos aguardava. Paguei uma pequena quantia que cobria despesas de transporte por ônibus fretado até o ancoradouro e um bufê de frutas tropicais a bordo da embarcação. Eram dois ônibus de 45 lugares cada e estavam ambos lotados, com todos os assentos vendidos. A viagem não duraria mais que sessenta minutos até lá. Mal havíamos deixado a rodoviária no Rio e eu já me sentia adernando em águas clandestinas. Sabe aquela história de “entrei de gaiato no navio”? Pois é. É assim que me senti. Devido a minha idade, e o grupo era composto essencialmente por faixa etária, eu já estava deslocado: não era nem tão novo para ser considerado cara e nem tão senhoril para ser tido como coroa. De repente tive um pressentimento: vou sobrar.

Dentro do ônibus a algazarra era geral. Já de manhã cedo havia latas de cerveja rodando, brincadeiras, jogos, concurso de calouro, azaração, beijo na boca, gargalhadas em todos os decibéis, enfim, percebi: ou eu entro nessa ou estou frito. Como sempre, optei pela alegria. A chegada a Itacuruçá não foi menos barulhenta e alvoroçada. Graças ao bom Deus o ônibus parou já em frente da escuna e entramos todos sorridentes, querendo curtir ao máximo aquela manhã de sol e um céu azul que mata de inveja qualquer outro resort do mundo. Mesmo assim, tivemos que passar no meio de uma pequena multidão de pescadores que se aglomerava nas tábuas do píer, entrei de cabeça baixa tentando me proteger o mico que já se ensaiava antes mesmo de começar o passeio. Aquela hora de homens rudes nos recebeu com um coió de proporções épicas.

O dia foi maravilhoso, e o clima a bordo era de festa. A mesa de frutas tropicais estava linda, e eram todas quase tão frescas, limpas, fartas, cheirosas disponíveis e por que não desfrutáveis, quanto qualquer outra a bordo. Num certo momento a embarcação parou para nadarmos, pulávamos na água sempre aos berros e alguém imitou Esther Williams. Depois fomos para uma ilha e houve desfile de moda na areia da praia. O vestuário foi criativamente arranjado e produzido com folhas de bananeira, toalhas, toucas, bóias e diversos apetrechos encontrados na ilha ou a bordo. O dia transcorreu assim: num estado de felicidade infantil que há muito eu nem me lembrava que existia.

Pouco tempo depois de zarparmos, percebi que vários casais de idades díspares haviam-se formado. Pessoas que se sentavam em poltronas separadas do ônibus agora já se sentiam à vontade para demonstrar publicamente o afeto repentino surgido assim, assim um pelo outro. Alguns desses caras eram tão bonitos, jovens e fisicamente bem dotados que gastei muitos minutos observando de soslaio, tentado secretamente entender por que buscavam os carinhos que homens que poderiam ser seus pais com larga margem de segurança quando poderiam simplesmente estalar os dedos em qualquer boate ou praia da moda e teriam quantos homens quisessem a seus pés. Mas não importa, nada de tentar entender o que não tem explicação; teria talvez que me debruçar sobre as páginas escritas por aquele que tudo explica, Herr Freud, o pai da psicanálise. Mas não: o melhor era desviar a atenção e tentar curtir o passeio.

Na viagem de volta à terra, já de tarde, deram início a uma brincadeira que parecia ter o objetivo de arranjar os últimos casais que porventura ainda tivessem alguma chance de se formar: o correio sentimental. Distribuíram umas placas pequenas de papelão cada qual com um número, que deveriam ser usadas presas ao calção de banho durante tempo suficiente para que todos fossem vistos e identificados. O meu número era setenta e um, que em numerologia dava oito, que reduzido ao seu formador, ou seja, dividido por dois, dá quatro. Pensei: “quatro só pode ser número bom, por que é redondo e é par. É isso, eu quero um par. Acho que minha sorte vai mudar. Tem muita gente bonita aqui dentro e ainda disponível”.

Num determinado momento, apareceu um mestre de cerimônias que distribuiu cartões em branco e lápis para todos mandarem suas mensagens de amor aos seus eleitos. Passei a mão no que recebi e escrevi três cartões, três torpedos, o golpe de misericórdia derradeiro, a última bala da agulha. A viagem estava chegando ao final. Eu já não tinha muito tempo.Os cartões foram devolvidos e ele então passou a ler em voz alta o conteúdo das missivas para seus respectivos destinatários, interpretando a seu modo cada frase. Tudo muito engraçado, enquanto seguia lendo, olhos curiosos vasculhavam em volta escrutinando rostos e sungas, tentando identificar o número para qual ele lia e também o autor do bilhete anônimo. Tinha torcida, quem será!, quem será! Quando os casais e formavam havia torcida, palmas e mais risadas. Se o eleito aceitasse a cantada, os dois iam para o cento e se beijavam sob protestos e mais palmas. Ao final quase todos dos noventa participantes do passeio estavam devidamente casados.

Quando o mestre de cerimônias abriu o único bilhete destinado ao numero setenta e um, fiz cara de tímido, virei os olhos, pus a mão no rosto, olhei em volta, subi na mesa em que estava o mestre, perguntei quem será! quem será! e cantei whatever will be, will be. A nota dizia: “ao gato de sunga azul, numero setenta e um, sua beleza e sensualidade irradiam por toda a embarcação, quisera eu ser seu eleito. Decifra-me ou te devoro”. “Que se apresente então o meu príncipe. Tô no maior miserê!”, declarei. Todos riram muito da minha graça, mas o meu pretendente nunca apareceu. Acostumado ao fado que chamo de azar intrínseco de um sujeito cagado de urubu, resolvi evitar o constrangimento de ter sido o único a não receber um bilhete sequer e, astutamente, escrevera eu próprio aquele bilhete endereçado a mim. Ninguém jamais soube de mais esse golpe baixíssimo meu.

Na viagem de volta ao Rio, a disposição dos passageiros em suas poltronas havia se alterado completamente. Apenas uma meia dúzia de gatos pingados continuava tão só quanto quando havia embarcado de gaiato naquele navio: os muito feios, os muito velhos e os muito azarados. Que aconteceu com aquelas duas beldades que receberam meus torpedos, perguntar-me-ás? Na viagem de volta, sentavam-se juntos às poltronas 23 e 24, respectivamente.

4 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Valeu mano, gostei muito do seu artigo. É bom saber que algumas pessas são atuantes e participam de uma luta pelas minorias, ainda mais quando a luta é por mais liberdade de expressão e atuação na sociedade. Valeu! Continue assim! Parabéns!

Messias (PretinhoBasico)

11:28 PM  
Anonymous Anônimo said...

Bom, esplendido meu caro amigo...!, ante tudo me apressentar, Trasgu de Piratininga, espanhol com mais de dez anos no Brasil.
Belo fidalgo ! Se não tivesse entrado no teu site no ano Santo de 2005, diría que as palavras tão bem agraciadas na sua composição do seu texto seriam tão certas que do próprio Don Gustavo Adolfo Becquer se trata-se, meu poeta preferido ( digasse de passagem ).Não sempre esse DOM da escrita possue beleza e sentimento, posso lhe declarar que me senti conmovido, pois devo tratar, sem duvida alguma, de um bom poeta com sua Alma aberta.....Gostaria conheçer vc pois e deficil encontrar nos anos que se passam, tão pouca atenção para o mais simples e ao mesmo tempo o mais grandioso do ser , sua sensivilidade em expressar seus sentimentos....Muito bom amigo, gostei de teu texto !. Se quiser entrar em contato conmigo , me escriva no mail: maximiliano_g@uol.com.br, será um prazer dialogar contigo, abrazos Trasgu de Piratininga.

11:58 PM  
Blogger Homem, Homossexual e Pai said...

Fala Angelo !
Seu Blog está precisando de novas estórias! Você deve ter muita coisa legal para contar! Não esqueça de atualizar de vez em quando!
Abs para vc e pedrão!

10:02 AM  
Anonymous Anônimo said...

Angelo, que surpresa teu Blog!!! não conhecia!!! adorei essa lembrança de bons tempos!!!! Dei boas risadas e adorei a composição do texto!
Um beijão,
Anderson*.
*Comissário? não.
*espanhol? não.
Eu mesmo... professor!

9:23 PM  

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