03 setembro 2010

A moça do vestido de bolinha

Moro em uma casa centenária no bairro de Santa Tereza, Rio de janeiro. Eu estava procurando imóvel para comprar, pois o apartamento em que eu morava no bairro do Flamengo havia se tornado pequeno demais para minha família depois da adoção de Pedro Paulo. Um dia vi um anúncio de uma casa no jornal e vim ver, assim por esporte.

Assim que entrei na casa pela primeira vez senti que ela seria minha, de um jeito ou de outro. Trata-se de uma construção em estilo neocolonial do final do século XIX. Minha casa fica ao nível da rua, entretanto há dois outros andares sob ela, pois este bairro é situado sobre terreno bastante íngreme. O andar imediatamente inferior tem entrada também pela frente, mas o segundo andar no subsolo possui entrada por uma escadaria lateral, cuja servidão leva ao Bairro de Fátima, próximo ao centro da cidade.

A casa estava em péssimo estado de conservação, no osso mesmo, já que se encontrava fechada há muitos anos, mas senti que ela tinha potencial. Os antigos donos decidiram ir morar em um sítio no interior de Minas Gerais e para lá partiram, vindo raramente ao Rio. As paredes têm pé direito muito alto, 4,00m, o que permite que a brisa da noite possa correr e os cômodos fiquem arejados, mesmo na canícula deste trópico. O forro do teto havia despencado em alguns pontos deixando entrever as telhas de barro, não tinha luz nem água, pois os encanamentos e a fiação já haviam deteriorado dentro das paredes. As doze portas e as nove janelas de madeira não tinham trinco, algumas estavam soltas e carcomidas de cupim, outras faltavam vidro, enfim a casa precisava de uma reforma geral até que estivesse em condições de ser habitada.

Foi preciso muita coragem e determinação para tomar a decisão de comprá-la. Meus amigos, como sempre, diziam que eu estava louco e quando minha mãe e minhas irmãs vieram vê-la rezaram pedindo a Deus que não me deixasse fazer tamanha loucura. Mas aparentemente Ele deixou, pois acabei comprando-a. Um belíssimo assoalho original de pinho de Riga forra todos os cômodos. Ela tem personalidade, as paredes estão impregnadas de história, um corredor externo circunda toda a ala oeste da casa. Para esse lado abrem-se todas as portas e janelas e é também dali que se vê o centro da cidade, inundado de luz solar matutina. A vista é deslumbrante. Ao longe se vêem o prédio da Petrobrás e a Catedral Metropolitana na Avenida Chile, um pouco mais para a esquerda se avistam o RB1, o relógio da Central do Brasil, o Palácio Duque de Caxias e vários outros prédios históricos no cenário da cidade cujos nomes eu nunca soube.

Vim aqui diversas vezes antes de fechar o negócio, sempre acompanhado do corretor de imóveis. Numa dessas ocasiões eu estava acompanhado de meu amigo Ézio e queria ouvir sua opinião. Havia trazido também meu filho, à época com cinco anos. Enquanto nos sentávamos no terraço conversando sobre a compra da casa o menino corria solto, explorando cada quarto, na maior alegria.

Entretido na conversa, mal pude notar quando alguém bateu no portão. Era a vizinha de baixo, dona Galy Karaburdji Nóbrega reclamando do barulho de criança correndo dentro de casa. Abri o portão e ela então me contou que a casa não tem laje entre os andares. Existem duas paredes laterais espessas sobre as quais se estendem trilhos de trem. Tanto o assoalho do andar superior quanto o forro do andar inferior são instalados diretamente sobre eles, o que, segundo ela, transforma o assoalho num tambor de ressonância.
- Você deixa cair um alfinete no chão e lá embaixo é um trovão, disse ela.

Como eu fui rude com ela! E como me arrependo disso! Embora a essa época ela já fosse uma senhora de oitenta e seis anos de idade pedi a ela gentilmente que esperasse até que eu comprasse a casa para só então começar com as reclamações. Sabiamente, ela apenas sorriu e foi-se embora. Meu amigo me repreendeu, e de repente caiu a ficha que eu tinha sido grosseiro. Mas ela já havia descido. Como já caía a noite, fechamos a casa e fomos embora. Pretendo falar desse importante personagem na minha vida em outro momento.

No dia seguinte fechamos o negócio. Após a assinatura dos papéis, a antiga proprietária me convidou para me trazer até a casa e mostrar os segredos dela, onde ficavam o relógio de luz, o hidrômetro, o medidor de gás, os registros, interruptores e mais um monte de segredinhos que toda casa possui. Quando terminou de explicar os detalhes técnicos, me puxou de lado e confidenciou:

- Não sei qual a sua religião, nem sei se acredita em espíritos, mas devo te dizer que dentro desta casa “mora” um espírito. Não tenha medo, pelo que me contaram trata-se de uma moça jovem, mas nunca fez mal a ninguém. Então, se eu fosse você, eu faria uma prece no momento de se mudar para cá. Peça a ela permissão para entrar e morar em sua casa, diga que pretende morar aqui em perfeita paz, respeito e harmonia com seu espírito de luz.

Como meu pai, eu também gosto de chocar as pessoas revelando que sou ateu. Também como ele, eu só acredito no que vejo e mesmo assim olhe lá. Tem coisas que mesmo eu vendo, não dá para acreditar. Mesmo na época em que eu, contrito, ainda insistia em rezar com joelhos no chão, a dimensão divina sempre me escapou. Não conseguia me livrar da estranha impressão de estar falando ao telefone sem interlocutor do lado de lá da linha. As energias sutis invisíveis e imensuráveis tão propaladas, defendidas e apontadas pelos crédulos como prova cabal da existência de um mundo intangível, para mim não passam de manifestações psiquiátricas. Devido a reações histéricas que desde muito cedo eu percebi nas pessoas quando falo desse assunto, eu resolvi só falar desta minha dobra se isso me for perguntado. Olhei fixamente para a mulher e disse:
- Dona Fulana, acabo de lhe fazer um cheque vultoso quitando à vista o valor que senhora pediu pelo imóvel. Me desculpe a franqueza, mas se alguém precisa de permissão para continuar morando aqui, é ela que deve pedir a mim.
Ela fez o sinal da cruz e olhou para mim com um olhar que eu interpretei como sendo um misto de compaixão e desprezo. Mesmo assim pedi a ela que me revelasse mais detalhes sobre a tal moradora da agora minha casa.

Refeito o susto, ela se sentou e me disse que alguns amigos de seus filhos, em momentos diferentes, avistaram o vulto de uma moça jovem, pálida, beirando os vinte anos de idade, cabelo preto amarrado em coque atrás da cabeça, trajando um vestido marrom escuro com mangas curtas e bufantes, com umas bolinhas amarelas, de acordo com alguns, ou umas florezinhas amarelas, de acordo com outros. Essa moça caminha lentamente no corredor interno da casa, sempre na direção da sala para a cozinha, a passos lentos, sapato baixo, sem fazer qualquer ruído e sua visão é tão real e insuspeita que algumas das pessoas que a avistaram chegaram a se dirigir a ela. Mas ela nunca respondeu.

Nisso eu me lembrei de um fato ocorrido numa dessas visitas que fiz à casa antes de concretizar sua compra, quando eu estava acompanhado de meu namorado. Já era fim de tarde e tínhamos que nos apressar para ver o imóvel, pois como estava fechado há muito tempo, a luz havia sido cortada. O corretor abriu toda a casa e nos pusemos e percorrer seus cômodos rapidamente fazendo planos para depois da mudança. Quando ficou escuro, fechamos todas as portas e janelas e saímos. Quando chegamos do lado de fora Marcelo fez questão que esperássemos a moça sair para podermos ir embora.
- Que moça? perguntou o corretor.
- A moça que vi lá dentro, vendo a casa conosco. Não está mostrando o imóvel para outra pessoa também?
- Não. Só vocês.
Marcelo estava tão convencido de que alguém estava sendo trancado na casa que tivemos que voltar e percorrer todos os cômodos com fósforo na mão, procurando por ela. Muito contrariado ele por fim aceitou entrar no carro para irmos embora.
Ao ouvir a descrição da antiga proprietária, olhei para Marcelo e ele estava pálido, com os olhos arregalados. Ele me puxou para o canto e sussurrou:
- Você vem morar aqui sozinho. Eu é que não venho. É exatamente a moça que eu vi na casa. Lembra-se? Tenho certeza!
Só depois de muito explicar, insistir e assegurar, ele finalmente concordou em se mudar para cá quando a reforma terminou.

Os meses se passaram e não se teve notícia da tal moça até que uma noite dei uma festa, com recital de piano, canto e declamação de poesia. A casa estava lotada de amigos e amigas que jantaram e curtiram junto o evento. Acabou ficando tarde e um convidado resolveu ficar e dormir aqui. Como não temos quarto de hóspedes, ele se aninhou no sofá da sala depois que todos foram embora e fomos dormir. Na manhã seguinte, conversávamos animadamente à mesa do café da manhã sobre o jantar e o sarau quando ele perguntou:
- Quem mais dormiu aqui?
- Ninguém, por quê?
- Por nada. Quando eu estava quase dormindo, já com a luz apagada passou uma moça no corredor e eu a cumprimentei, mas ela só me olhou friamente e não respondeu. Metida! Quem era?
- Ninguém. Só um fantasma.
Eu tive então que contar a ele a história, mas ele infelizmente não achou graça nenhuma e jurou nunca mais vir dormir aqui.

De certa forma me sinto enciumado das pessoas que tiveram esse contato imediato de segundo grau com a tal aparição. Ora, mesmo sendo eu o dono da casa onde ela circula nas horas escuras da madrugada, ela nunca deu o ar de sua graça para mim. Quando vou ao banheiro de madrugada não acendo as luzes para não acordar totalmente e atravesso o salão de jantar com os olhos bem abertos, tentado vislumbrar sua efígie no lusco-fusco da noite. Nunca dei a sorte. E se um dia a vir, humildemente pedirei apenas uma entrevista em troca da permissão para sua permanência aqui, e mais nada.

Muitos meses depois do sarau eu estava dentro do carro esperando para dar uma aula na casa de um aluno. Eu havia chegado cedo demais e não queria tocar a campainha antes da hora combinada. Estava ouvindo rádio e observando o movimento dos moradores naquela ruela escura do bairro do Estácio, quando reparei que algumas pessoas entravam em um portão entreaberto de uma casa bem em frente ao endereço a que eu me destinava. Curioso como eu só, fui até lá e perguntei a uma das pessoas que entravam do que se tratava.
- O que é isso aqui? Perguntei.
- É um centro espírita kardecista, a senhora respondeu gentilmente.
- Será que a gente pode entrar para dar uma olhadinha?
- Claro, seja bem vindo.
Por pura diversão, em poucos minutos lá estava eu, sentado numa roda de pessoas de boa aparência e cheias de boas intenções e se não fosse pela seriedade com que discutiam o imaginário, sempre respaldadas por uma fé científica, ninguém diria que eram delirantes.

Quando fui instado a me apresentar e a dizer o motivo de minha visita, acabei perguntando o que poderiam me contar sobre a tal moça de vestido de bolinha. Depois que dei todos os detalhes de que me lembrava, o homem que comandava a reunião, fechando os olhos como que recebendo um fax do além, me disse que se tratava de uma moça que havia vivido na minha casa há muitos anos e que morreu aqui dentro. Ela teria muito amor por este lugar e que estaria tendo dificuldade em seguir seu caminho para o além. Não sei se foram exatamente estas as suas palavras, mas tantos anos depois é assim que me lembro. E foi mais além, arriscou seu nome: Hilda, e causa mortis: pneumonia. Ouvi aquelas informações como quem assiste a filme de ficção. Com interesse e distanciamento.

Poucos dias depois, desci para tomar um cafezinho com a Dona Galy, que a essa altura já havia se tornado minha amiga de infância e perguntei se ela conheceu a tal moça, já que morava aqui embaixo, na mesma residência há 85 anos. Sem fazer esforço algum, lúcida que era aos 88 anos, ela recontou de uma jovem que era sua amiga de juventude que realmente morou aqui e morreu mocinha, fraca dos pulmões em 1938. Ora, fraca dos pulmões me soava como um pleonasmo para pneumonia ou tuberculose, concluí meio sem graça.
- Ela morreu na minha casa?
- Não. Morreu no Quarto Centenário.
Ufa! Respirei aliviado, como se isso fizesse alguma diferença. Afinal, a morte é apenas a diferença entre estar e não estar mais, segundo José Saramago.
- Por acaso, essa sua amiga de juventude se chamava Hilda? Insisti.
- Não. Era Gilda. Por quê?
- Por nada, menti. Um frio percorreu minha espinha.
Terminei o café e subi para ligar para minha analista.

3 Comments:

Blogger Luciana Azevedo said...

A história é de arrepiar!

3:23 AM  
Blogger Vânia Pôrto said...

Angelo,

Adorei o relato!
Gosto muito de Santa Tereza. Ainda tenho um tio que mora aí (Largo dos Guimarães).
Não posso "me dizer" espírita, mas confesso que curto o assunto... rsrs

Beijo!
Vânia

12:19 AM  
Blogger zapfig said...

Agora tenho vontade de visitar voce la em casa.

12:35 AM  

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