15 setembro 2010

A vingança da pequena órfã

Desde que eu era muito pequeno, em meados dos anos 1960, na minha pequenina Guidoval, zona da Mata mineira, me lembro da existência dessa menina. Ela se chamava Carminha e era filha adotiva da minha tia, que era irmã do meu pai.

Ninguém da minha família sabe até hoje com ela chegou até a casa de minha tia, mas era fala comum que ela era “boazinha” e ajudava minha tia com as tarefas domésticas. Bonita, nunca foi: tinha a pele parda, ruça, com textura de papel celofane, era bem magrinha, dentuça, pálida, descabelada, e, para completar, era fanha e tinha lábio leporino. Mas minha tia a tomou como filha adotiva. Ou, pelo menos, era assim que a sociedade Guidovalense via a situação da garota. Minha tia tinha pretensões à sociedade local. Seu marido era dono da única padaria na cidade e era dono também de um cassino clandestino onde, dizem, fazendas trocaram de mãos. Não eram ricos, mas gostavam de se passar por.

Quando éramos pequenos, éramos proibidos pela nossa mãe de ir visitar aquela casa, pois nossa família era pobre e mamãe temia que eles nos dissessem isso. Meus cinco primos andavam bem vestidos, com roupas de marinheiro azul marinho com listras brancas e aquele paninho caído nas costas. Eu achava aquilo o máximo. Minhas duas primas andavam de vestidos de organdi branco com várias saias até os joelhos e usavam laçarotes de fita de seda branca na cabeça. Umas princesas.

Lá em casa somos sete filhos, minhas seis irmãs e eu. Todos com intervalo de um ano e meio um do outro. Mamãe contava com rancor que quando éramos pequenos, passando por grande dificuldade, pediu à cunhada se poderia mandar uma de minhas irmãs, a segunda, todos os dias para almoçar. Minha tia então disse que sentia muito, mas que todos os dias não seria possível. “De vez em quando até vai, mas todo dia, fica difícil”.

A casa deles era uma das únicas que tinham geladeira e televisão na cidade, mas não podíamos ir lá desfrutar de tamanha maravilha. Um dia eu passei em frente a casa deles e vi que estavam assistindo televisão de porta aberta. Reparei que era colorida. Só muitos anos depois, soube que naquela época não havia TV em cores e o que eu julgava ser colorido era uma tela de plástico de três cores que eles colavam na frente do vídeo para dar a impressão que era TV a cores.

Minha mãe era funcionária da limpeza e também cozinheira da escola estadual onde minha tia era diretora e sempre reclamava que minha tia zangava com ela na frente de todos quando via, por exemplo, que uma sala não havia sido bem limpa. Uma vez, cozinhando a sopa das crianças para a merenda, mamãe inadvertidamente deixou entrar fumaça na panela e a comida ficou com gosto de carvão. Nem precisa dizer que o fogão era à lenha. Minha tia fez um escândalo e a suspendeu do serviço por uma semana com uma advertência por escrito.

Para todos os fins, minha tia fazia entender que Carminha era sua terceira filha, e colhia os louros da sociedade local por isso. Todos comentavam de sua abnegação e bondade para com os mais necessitados, uma alma boníssima. Só que a realidade, segundo a própria menina, era bem diferente. Desde o primeiro dia em que chegou àquela casa, sempre foi tradada como empregada. Recebeu de presente uma vassoura no dia em que botou os pés na sala de entrada. Ela tinha a essa época apenas oito anos, e, com o passar doas anos, suas responsabilidades foram também aumentando. Nunca pode fazer suas refeições junto com família: comia na cozinha, junto com a outra empregada e isso depois que todos haviam almoçado, os restos do que sobrou nas bandejas que foram à mesa. As roupas que vestia também eram restos de suas “irmãs”. Pode parecer clichê, pode parecer com a estória da Cinderela, e eu até gostaria que fosse, por causa do final que essa princesa teve. Mas não foi bem assim.

Alguns anos mais tarde nossas famílias se mudaram de Guidoval, a minha transferiu-se para Juiz de Fora e a da minha tia foi para Belo Horizonte, deixando minha avó sozinha na cidade. Mas voltávamos sempre lá para as férias escolares. Isso era muito bom. Ficávamos hospedados na cada da vovó e eu gostava da Carminha. Lembro-me de irmos nadar no rio da cidade eu, ela e meu primo. Hoje este rio está assoreado e morto. É um rio morto, sem peixes, cheio de lixo. Mas naquela época tinha cachoeira de águas claras que batiam nas pedras. Numa manhã de muito sol fomos nadar fora da cidade. Andamos léguas a pé os três. Chegando lá, Carminha tirou a roupa no maior sem-cerimônia e nadou nua. Nunca vou me esquecer. Eu tinha 14 anos e ela uns 18, já com corpo de mulher. O que lhe faltava no rosto, a natureza havia lhe recompensado sobejamente nas formas perfeitas. Meu primo ficou mais chocado que eu quando viu seus seios duros de frio na água gelada. Ela ria às gargalhadas. Uma beleza para os sentidos. Insistiu para que tirássemos nós também nossas roupas, mas, travados, nadamos de cueca. Meu primo também era alguns anos mais velho que eu, e, assim como eu, também se tornaria homossexual. Mas juro que a nudez de Carminha nada tem a ver com isso.

Creio que foi a grosseria de sua mãe que mais tarde o fez se casar e arranjar vários filhos. Ele não era um sujeito muito forte e não aprendeu as lições que Carminha tentava em vão lhe ensinar. Minha tia, por outro lado, era uma mulher muito dura e quando estava com raiva gritava o que lhe viesse na cabeça. Uma vez a vi humilhando até as lágrimas esse meu primo. Presenciei a uma cena doméstica que enquanto eu viver não vou esquecer. Quando percebeu que ele era afeminado ficou furiosa e despejava na cara dele seu embornal de acusações: “Barrigada desperdiçada. Você não serve para nada! Para que servem a merda desses bagos ai dependurados no meio de suas pernas? Isso é para enfeite? Se é, então corta e joga para o cachorro que assim terão alguma utilidade”. Fiquei enrijecido de pavor ao ouvir aquelas palavras e trinta e quatro anos mais tarde ninguém me convence que elas também não se endereçavam a mim. Ela era fogo.

Poucos anos depois dessa cena lastimável ele se casou com uma moça de uma cidade do interior de Minas, acho que era Congonhas. Como dois anos depois do enlace a moça ainda não engravidara, ele resolveu pegar pesado logo de cara: fez um trato com São Judas Tadeu, para quem não há nada impossível, oferecendo duzentos pares de sapatinhos de lã de bebê para serem distribuídos entre os pobres de Belo Horizonte, caso a moça engravidasse. Naquela época ele já sabia tricotar como poucos. Eu também sabia e fizemos muitos pull-overs de lã enquanto conversávamos longamente nas noites frias dos invernos mineiros, bebericando uma caninha da roça. Passou então a mão nas agulhas e atirou-se naquela tarefa inglória. Eu ia dizer hercúlea, mas depois me ocorreu que Hércules jamais teria feito um trato desses com santo. E santo costuma cobrar. Não é que ela engravidou? Quando a moça estava com três meses de gravidez e a promessa estava já cumprida, no entanto, teve um aborto espontâneo e perdeu a gestação.

Meu primo não se deixou abater e dessa vez ofereceu não duzentos, mas quatrocentos pares de sapatinhos de lã ao mesmo santo. E ela engravidou novamente e a gravidez ia de vento em popa. Quando ele se deu conta do absurdo que é tricotar quatrocentos pares de sapatinhos, comprou uma máquina tricotadeira e com poucos zigue-zagues de mão os sapatinhos iam caindo já aos pares na cesta de vime. Depois era só fechar rapidamente com ponto Paris e estava pronto, mas a maior parte do trabalho já tinha sido executada. Isso vale? Mas de repente, seu projeto sofre novo revés. Meu primo resolve, não sei por que cargas d’água, ir a um centro espírita na Lagoinha fazer uma consulta sobre o andamento de seu pedido lá nas esferas superiores da dimensão divina. O pai de santo, bebendo cachaça e fumando charuto, incorporado com um Preto Velho zombeteiro, disse a ele em transe “ô mizinfim... aquela máquina... aquela máquina qui ocê comprô num pode... tá pijudicano seu pidido... tá amarrano a sua vida...” Com grande desapontamento por ter sido flagrado trapaceando, ele saiu dali arrastando a chinelinha, voltou para as agulhas e completou a tempo a promessa. Creio que o santo tomou gosto pela coisa, pois nos quatro anos que se seguiram, sua esposa engravidou - e teve - mais três bebês saudáveis. Isso foi no início dos anos 80. Nunca conheci nenhuma dessas crianças.

Carminha era uma mulher libertária, alegre, engraçada, inteligente. Foi através da amizade com ela que passei a gostar de poesia e a prestar atenção em música. Foi através da amizade com ela que aprendi a desobedecer, a questionar, a levantar a cara, a dizer que eu também tinha opinião, a não me deixar ser humilhado. Não sei como ela conseguiu manter uma cabeça relativamente saudável em um ambiente tão inóspito. Não sei como conseguiu desenvolver sentido de auto-estima vivendo com uma mãe postiça que a humilhava. Ao contrário da mãe, meu primo a adorava e a minha prima mais nova também gostava dela.

Durante o período de aulas, incentivado pela Carminha, demos início a uma intensa correspondência. Lembro-me que os envelopes, dela e meus, eram sempre extravagantes e coloridos. Nessas cartas eu expunha meus questionamentos acerca da minha sexualidade, minha família, meus quereres, pensava na vida tendo-a como minha primeira interlocutora. Minha mãe conhecia a fama de respondona da Carminha e não gostava dela. Achava que a menina faltava com a gratidão que devia a minha tia.

Assim que se deu conta de que as cartas chegavam e de quem eram, enciumada passou a abri-las sistematicamente e lê-las antes de entregá-las a mim. Mamãe nunca teve a sutileza dos fraudadores que eu via nos filmes, nunca ferveu água na panela para amolecer a cola das cartas no vapor e assim poder abri-las sem que ninguém soubesse: metia a mão e rasgava o envelope como se a carta fosse para ela. Carminha me disse para enfrentá-la e eu o fiz. Deu uma grande confusão e levei até surra, mas hoje, olhando o fato em retrospectiva, acho que o saldo foi positivo. Eu era adolescente e estava experimentando a vida com toda força nos anos 70.

Quando Carminha tinha uns 20 anos, cansada da vida que tivera durante tantos anos sob o jugo e sanha cruel da “mãe”, ela deu um revertério. Pelo que eu soube na época, ela protagonizou uma cena de novela. Uma noite chegou tarde da rua e encontrou a mãe furiosa com seu atraso. Naquele momento se encontravam apenas as duas em casa houve uma discussão. Ofendida e acuada por algum motivo, Carminha resolveu lavar toda a roupa suja com minha tia. O tom da conversa subiu, e, aos berros, ela rememorou os doze anos que havia passado, não como empregada doméstica, por que empregada doméstica recebe salário, mas uma escrava naquela casa, nunca se sentira amada, só explorada. Minha tia a chamou de ingrata e começaram a se ofender verbalmente uma à outra. O caldo entornou mesmo quando minha tia deu-lhe um tapa no rosto e, ato contínuo, ela revidou. E revidou com a cobrança de juros e correção monetária atrasados, dando-lhe uma estrondosa surra entre lágrimas e risadas histéricas. Como devem ter gozado as duas! Quando minha tia caiu no sofá, convoluta e estupefata ouviu apenas o bater violento da porta. Carminha havia ido embora para sempre.

Mineiro é muito reservado, vamos dizer assim. Não conta nada. Esta e outras histórias cabeludas dos bastidores de nossa família só se ouvem anos e anos depois de ocorridas, assim mesmo por um descuido de quem as contou. Uma de minhas irmãs compra um big apartamento na planta e a família só fica sabendo muito tempo depois quando ela própria se trai nunca conversa informal. Um de nós faz uma viagem pela Europa, visitando cinco países e na família ninguém fala nada. Uma de minhas irmãs vai se separar do marido e o assunto morreu ali mesmo. Aquela que ouviu a inconfidência, por sua vez, jamais sairia cotando para as outras irmãs e o assunto vai vazando assim ao longo dos anos. Será para não suscitar olho-grande? Indiscrição? Não sei.

Da história da vingança da Carminha só se soube fragmentos contados entre dentes com mãozinha na boca aqui e ali ao longo de mais de trinta anos de discrição e silêncio. Ninguém garante que cada um que conta não aumenta uma ponta.

Disclaimer Esta é uma obra de ficção. Portanto, qualquer semelhança com pessoas reais vivas ou que ja tenham subido não passa de mera coincidência.

5 Comments:

Blogger Luciana Azevedo said...

Gente?! Recordar a tela de plástico colorido que dava a impressão que a TV era colorida, os vestidos de organdi, os laçarotes na cabeça...incrível. Adorei! Viajei na sua estória rica em detalhes!!!

1:11 AM  
Anonymous Silvia said...

Essa história é muito mineira!
Gostei, dá um filme,
Silvia

2:03 AM  
Anonymous Anônimo said...

Olá Angelo.

O conto está muito bem escrito e a riqueza de detalhes remete o leitor àquela época, com um certo sausosismo. Carminha lembra um pouco o personagem "Coseta" do Romance "Os Miseráveis" de Victor Hugo. Pena que não apareceu um Jean Valjean na vida dela.

Como já disse antes, você escreve muito bem. Seus contos são muito interessantes.

Antonio Eugenio Magarinos Torres

1:05 PM  
Blogger Soninha Coelho said...

Angelo, alguns pontos amarelados pelo tempo precisam ser esclarecidos: quero te contar o final do conto, faça um filme se quiser, autorizo. Nunca fui lábio leporino, fanhosa sim, mas atualmente com uma nova voz, operei. Ah, feia também não mais, me sinto linda, cabelo lindo, bronzeada,
mas continuo sim alegre, inteligente, mega feliz e super amada! Vamos continuar contando, eu colaboro! Bjs

9:26 PM  
Blogger zapfig said...

Gostei.

8:36 PM  

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