03 setembro 2010

O salão de baile

Galy Karaburdji Nóbrega casou-se com Luiz Theberge Nóbrega em Janeiro de 1940 e viveram juntos, segundo eles felizes, até que ela faleceu em dezembro de 2004, exatamente um mês antes de completarem 65 anos de casados.

Embora eu os tivesse conhecido quando já beiravam os 90 aos, este senhor não admitia que lhe chamassem de “Seu” Luiz, por que isso lhe fazia parecer muito velho. Essa proibição me colocava sempre em dificuldade, pois devido à minha criação, eu considerava um desrespeito chamar um senhor de idade que acabara de conhecer pelo primeiro nome. Por isso, estava sempre pisando em ovos quando me dirigia a ele. Por diversas vezes ele me corrigiu na frente de todos até que acostumei. Eles não gostavam da companhia de pessoas idosas, porque segundo eles, esses eram muito ranhetas e rabugentos. Assim, preferiam a companhia de pessoas mais jovens.

Eles haviam se conhecido quatro anos antes do casamento em um acampamento de jovens no topo da Pedra da Gávea, a 850 metros de altitude, no Rio de Janeiro. Luiz era mais falante que Galy e adorava contar repetidamente como se deu o primeiro encontro. Ambos faziam parte de grupos de caminhadas: ela era Bandeirante e ele era membro do Clube Excursionista Brasileiro, que se dedicava a andar distâncias continentais desbravando florestas e desvendando mistérios da natureza selvagem.
Dessa feita, o motivo da excursão era a investigação de inscrições fenícias que se encontram no rochedo daquela montanha de pedra. Luiz só me contou sobre esse encontro após a morte da Galy e se emocionava até as lágrimas a cada vez que me contava: sempre como se fosse a primeira. O seu grupo de rapazes havia carregado um gramofone, um trambolho pesadíssimo morro acima para tocar um LP com a Alvorada, de Carlos Gomes ao nascer do sol. As pessoas sempre tiveram seus motivos particulares para justificar suas ações mais inexplicáveis. Naquele momento, haviam acendido uma fogueirinha para o café e a música soava majestosa quando essa mocinha apareceu do nada, sorriu, aproximou-se e lhe ofereceu uma balinha. Incrédulo diante de tamanha formosura, ele lhe ofereceu uma xicarazinha de café e pelos próximos 65 anos nunca mais se desgrudaram. Não sou grande conhecedor de música, mas suspeito que a tal Alvorada de Carlos Gomes seja a conhecida protofonia da ópera O Guarani.

Quando me contou essa história pela primeira vez, foi buscar um livro antigo, amarelecido pelas décadas no qual ele leu e depois me mostrou uma inscrição colhida durante aquela expedição na montanha de rocha. Eu então rapidamente anotei em um pedaço de papel, já na intenção de um dia vir a escrever sobre eles: LAABHTEJ BAR RIZDAB NAISINEOF RUZT, que lidas de trás para frente dava: TZUR FOENISIAN BADZIR RAB JETHBAAL - Tiro, Fenícia, Badezir primogênito de Jetbaal. Por diversas vezes ele me contou dessa descoberta, e sempre com grande entusiasmo. Essa inscrição realmente desperta mais perguntas do que respostas. Depois de tal façanha, Luiz passou outros 70 anos intrigado com o que essas palavras poderiam significar. Morreu sem conseguir descobrir.

Casaram-se e vieram morar junto com os pais dela nessa casa, que fica embaixo da minha, em Santa teresa. Como havia três quartos eles fizeram o quarto dos dois casais em extremos opostos e usavam o quarto do meio como sala de estar. Segundo eles, a convivência foi sempre pacífica e jamais houve um momento de discórdia, uma dúvida, um senão, um elevar de voz. Viviam segundo um modelo que me parece comunista: todos os quatro trabalhavam e ninguém tinha conta em banco. Quando recebiam seus salários, todos colocavam seus soldos em uma caixinha de madeira com tampa trabalhada que ficava na estante da sala de visitas. Depois de pagas as contas da casa, quem precisasse de dinheiro para alguma coisa tinha total liberdade de pegar o quanto houvesse restante. Essa caixinha hoje pertence a mim e a guardo com muito apreço.

Galy nasceu na República da Estônia, que mais tarde seria parte integrante da antiga União Soviética em 1915. Seu nome de batismo era Galina, mas logo que seus pais chegaram ao Brasil e aprenderam Português descobriram que Galy soava melhor e assim passaram a chama-la. Já naquele tempo nosso país era pródigo em cretinos que sem demora passaram a chamar a menina de galinha. Galina Karaburdji era filha única de Demétrius e Claudia Karaburdji. Eles imigraram para o Brasil em 1918. O Brasil foi a primeira escolha devido às nossas famosas condições climáticas. Passaram alguns meses em São Paulo, mudando-se a família para o Rio logo em seguida. O pai de Galy foi, durante muitos anos, comandante de um submarino russo e logo após a Primeira Guerra Mundial a situação política na Estônia tornou-se insuportável especialmente para essa família porque eles eram considerados burgueses. Uma bóia trazida como souvenir do tal submarino foi mantida dependurada na parede como souvenir até recentemente. Só depois do falecimento de ambos, a casa foi reformada e tivemos que nos desfazer da maioria de seus apetrechos. Galy contava que um dos soldados do submarino de seu pai era irmão mais novo do compositor Tchaikovsky. Pelo que ela contava, esse rapaz era bem mais novo e via no irmão uma figura paterna, pois escrevia longas cartas para ele, nas temporadas que o submarino ficava fora da União Soviética. Ainda guardo uma foto desse rapaz abraçado a um companheiro, esmaecida por cem anos de gaveta. A veracidade de tal informação infelizmente jamais poderá ser atestada, já que não há qualquer inscrição no verso da mesma.

Dona Claudia morreu em 1949 e Seu Demétrius em 1955. Refiro-me desta maneira a eles, porque era assim que o casal a eles se referia. De tanto contarem histórias, acabei me acostumando com mais esses dois personagens. Não me lembro de mais detalhes sobre eles, exceto que adoravam dançar, jogar baralho e receber amigos em casa.

Freqüentavam clubes de dança no centro da cidade e levaram uma vida muito boa em nosso país. Quatro cinzeiros pequenos em forma de naipe de baralho, dois pretos e dois vermelhos enfeitam ainda hoje um console de madeira na minha casa, testemunhos silenciosos daquela época.

Galy e Luiz falavam várias línguas e tinham muitas histórias para contar de suas andanças pelo mundo. Tudo o que ganhavam com seus trabalhos, gastavam em viagens pelos quatro cantos do globo. Conheceram o Brasil tão bem quanto Amaral Neto e viajaram por todos os continentes. Uma vez me contaram de uma viagem que fizeram de fusca pelo interior da Bahia. O carro quebrou no meio do nada e passaram grande aperto, tendo que contar com a ajuda dos moradores de uma fazenda para comida e água. Viver é isso!

Ela tinha sido uma decoradora de interiores e designer de móveis para uma empresa chamada Laubisch Hirt durante toda sua vida profissional. Até algumas semanas antes de adoecer, ela ainda saía com sua bolsa embaixo do braço para visitar seus clientes mais antigos e dar dicas de decoração. Eu mesmo recebi dela dicas valiosas quando estava reformando minha casa. Foi ela quem decidiu qual luminária seria dependurada em cada cômodo, qual a melhor disposição dos móveis de forma a otimizar o espaço interno e me fez trocar toda a cerâmica que eu já havia comprado para o terraço. Estupidamente comprei cerâmica clara e ela me convenceu a trocar por algo mais sóbrio com um argumento simples e grande sutileza:
- Mande por isso no chão e terá que usar óculos de soldador para vir tomar banho de sol na varanda. Seu terraço vai ficar com cara de banheiro social. Você vai adorar.

Eles viveram uma vida de tranqüilidade e amor nesta mesma e única casa, decorada de forma humilde e mobiliada espartanamente. À exceção de dois guarda-roupas e uma cômoda da marca Laubish-Hirt que ficaram, todos os seus móveis eram cacarecos; algumas caixas de frutas serviam como mesinha de centro ou armário de cozinha. Galy nunca foi boa cozinheira. De fato, ela odiava a cozinha e todas as tarefas relacionadas com dona-de-casa. Só muito raramente entrou naquele cômodo da casa. O Luiz é que cozinhava e dava conta dos afazeres domésticos. Galy estava sempre muito ocupada com suas leituras. Ela adorava os clássicos russos, Gorki, Tchekhov, Tolstóy que lia no original. Até beirando 90 anos lia o que lhe caía nas mãos. Até meu pequeno Retrato em Branco e Preto ela leu e fez valentes comentários a respeito. Costurava sem óculos, o que me dava muita inveja, pois eu, aos quarenta em ponto precisei óculos de leitura, cujo grau vem crescendo a cada ano. Lenta e meticulosamente Luiz cortava cenouras e batatas, que seriam cozidas e misturadas à maionese. Um rosbife completaria a refeição que deveria durar uma semana inteira. Eles comiam a mesma comida por uma semana, só na seguinte ele se animava a cozinhar algo diferente. A bebida era sempre água tônica.

Tudo o que fizeram a vida toda foi cuidar um do outro, fazendo-lhe companhia, lendo poemas e os romances de Eça de Queiroz, em voz alta, um para o outro. Tudo isso para mim era tão impressionante que com o tempo eu me acerquei mais e mais do casal. Todas as outras atividades, como o trabalho, por exemplo, lhes pareciam extremamente frugais e dispensáveis. Trabalhavam o mínimo e não se preocuparam em ganhar mais dinheiro do que o suficiente para comer e viajar de vez em quando. Já velhinhos, usavam roupas que pareciam frangalhos, camisas puídas e vestidos com buracos aqui e ali, mas não se deram conta disso. Ao contrário, sempre alegres faziam planos de novas viagens e estavam de viagem marcada em uma excursão para Dezembro de 2004 quando Galy caiu doente e não puderam ir. Erike, um dedicado acompanhante que eu contratei para fazer companhia ao Luiz depois da morte da Galy me contou que eles faziam sexo até uns três anos antes, ou seja, ela tinha uns 87 e ele uns 90 anos.

A alegria de viver e vitalidade que ostentavam impressionavam a todos. Ambos tinham seus corpos bastante eretos. Havia muitas fotos deles na juventude praticando esportes, nadando, escalando montanhas, ele segurando halteres sobre a cabeça com os braços esticados, corpo todo em forma. Essas fotos, que eram centenas, eu guardei por muito tempo até que o peso de possuí-las se me tornou insuportável e eu as presenteei ao tal rapaz que lhe fez companhia. Erike produz camisetas e fez belos apliques com a cópia de algumas delas nas estampas que produz.

Mesmo velhinha Galy exibia seios grandes e empinados e jurava que jamais usou sutiã. Usava maquiagem e saltos altos até dentro de casa. Luiz saía de casa todas as manhãs para suas caminhadas pelo centro da cidade, sempre trazendo para ela frutas frescas e suas trouxinhas de maçã.

Uma manhã de sábado Galy gritou forte meu nome e me chamou lá embaixo. Cheguei à varanda e quando não vi o velho, pensei no pior. Vesti de qualquer jeito o primeiro calção que encontrei e desci ainda sem camisa. Para minha surpresa, Luiz abriu a porta sorrindo e me fez entrar. Aliviado, não recusei e desci as escadas já dentro de casa. Caminhei até os fundos e lá estava a mesa posta na varanda, debaixo de uma parreira de buganvile toda cacheada de flores vermelhas, e aquela vista linda do centro da cidade. Estavam bebendo algo que imaginei ser água gelada. Ela me mandou sentar e me ofereceu um copo, que aceitei. Em seguida veio de lá o Luiz com um copo cheio de gelo e uma garrafa de água tônica. Eles adoravam água tônica.
- Que bom, eu disse. Está tão quente... Vamos beber água tônica?
- Sim, with a splash of gin, ela completou com um sorriso e uma piscadela.
Fiquei surpreso que eles estivessem bebendo gin tônica às nove da manhã de um sábado, mas se nessa idade eles podem, por que eu não poderia? A resposta viria logo a seguir. Ela tomou nas mãos a garrafa de Gordon’s Dry Gin que estava malocada embaixo da mesa e virou no meu copo. Glup, glup, glup. Deixou verter até completar o volume. Era drink longo. Cocei a cabeça e resolvi entrar no jogo. Ficamos ali conversando e dando risada por mais de duas horas, só bebendo, sem petisco. Quando desci para atender a emergência, ainda não havia tomado café da manhã, portanto estava me virando no gin tônica de barriga vazia. Quando finalmente decidi subir por volta de onze e pouco tentei ficar de pé, mas me faltavam as pernas. Vacilei o andar e contei um passo para trás. Eles riram a debalde.
- Gin tônica não é para iniciantes, rapaz! Fica firme!, disse Luiz com voz forte.
- Se isso é água tônica com um splash of gin, não imagino o que vocês tomam como gin tônica, eu disse antes de subir para deitar-me.

Não posso falar de Galy sem enfatizar a alegria de viver que exalava. Uma vez chegou em casa furiosa por que foi visitar uma amiga de juventude no hospital. Ela chegou quando eu estava entrando em casa e me convidou para um café.
- Não acredito que a Genoveva está se entregando, Luiz. Você tinha que ver a cara dela. Chega a estar pálida lá deitava. Será que quer morrer?
- E quantos anos tem a Genoveva? eu quis saber.
- 86! Mas isso não lhe dá o direito de abrir mão assim-assim.
Preferi ficar bem calado nessa hora. De fato, dois dias depois veio a notícia de que Genoveva havia partido. Parece que tomou a decisão e se foi.

Segundo o casal, nunca houve uma briga entre eles. Em 1974, houve um pequeno atrito por causa de alguma coisa de que ambos se esqueceram, mas no calor da discussão ele teve a infelicidade de chamá-la de chata. Aquela palavra feriu de morte seu coração delicado. Ficou chateada por semanas e só voltou a falar com ele quando este escreveu um documento de próprio punho, datado, e assinou embaixo jurando por escrito que nunca mais a chamaria de chata. É apenas um bilhetinho informal, mas por que ele deu sua honra como garantia, tem peso de compromisso. Ela aceitou seu pedido de perdão e eles guardaram a notinha enquanto viveram. Aquela foi a única vez que ele se atreveu a ofendê-la. Guardo com imenso carinho também esta notinha.

Já velhinhos foram fazer uma excursão em Abrolhos. Viajavam sempre de ônibus com a desculpa de que se vê mais. Foram até alguma cidade no litoral baiano e de lá tomaram uma escuna que os levou até os atóis. Passaram rapidamente pela pousada para trocar de roupa e foram logo nadar nas piscinas encetadas no meio dos arrecifes. Naquela brincadeira toda Luiz não se deu conta de uma onda grande que veio de repente e o derrubou. Quando tornou a ficar de pé estava banguelo: a onda havia levado seu par de dentaduras. O salva-vidas percebeu que o velho estava em apuros e ofereceu ajuda, convocando toda a turma de excursionistas da terceira idade para ajudar na busca.
- Vamos todos agora mergulhar e tentar achar as dentaduras do senhor Luiz!
Luiz sabia bem que era tarefa se afigurava impossível, mas não perdeu a pose. Nem a piada.
- Muito bem. Prestem atenção todos: se alguém vir um badejo enorme com um sorriso suspeito, pode pegar que são as minhas dentaduras.
Resultado: passou seis dias comendo sopinha e banana, até o dia do retorno à terra.

Num determinando momento meu casamento não ia bem das pernas e a separação já era iminente. Algumas vezes Marcelo saía de casa à noite dizendo que ia dançar e só voltava ao amanhecer. Como nesse tempo eu ainda gostava dele, ficava muito triste quando isso acontecia. Uma noite cheguei à janela do escritório para vê-lo descer a rua deserta e não acendi as luzes, para não ser percebido. Fiquei assim olhando de soslaio aquela cena até que ouvi barulho de porta se abrindo logo embaixo de minha janela. Era o casal Luiz e Galy, super chiques: ela de costume cinza claro acetinado, bolsinha combinando e ele de terno preto. Onde estariam indo àquela hora? Já era quase meia noite, não era mais hora de jantar e eles estavam saindo de casa.
- Será que vão dançar?, pensei comigo.
Em dois minutos tomei a decisão acertada: também vou sair. Meu filho estava dormindo no quarto dele e a empregada, no dela. Eu podia sair.
- Nada de tristeza, pára de drama, faça-me o favor, disse para mim mesmo.
Rapidamente tratei de tomar um banho e fazer a barba e lá fui eu, meio a contragosto também curtir a noite. Agradeço aos dois até hoje pela força que me deram sem saber aquela noite.

Luiz Theberge Nóbrega nasceu em 26 de maio de 1912 em uma família abastada. O pai havia feito fortuna trabalhando como advogado em Manaus durante o ciclo da borracha. Naquele tempo ele ganhava tanto dinheiro que durante anos manteve casa em Lausanne, na Suiça, para onde ia com a esposa e os filhos. Ficavam seis meses lá e seis meses no Brasil.

Foi durante uma dessas viagens que Luiz nasceu nessa cidade européia e contava isso sorrindo, como a primeira de suas façanhas. Quando o plástico e outros tantos derivados do petróleo consolidaram seu lugar no mercado e a borracha gradualmente foi perdendo seu status de máquina da economia brasileira, seu pai resolveu voltar para o Rio de Janeiro. Poucos anos depois de seu retorno, ele aceitou o conselho de um amigo e investiu todo seu patrimônio em uma fazenda de café na região de Rezende, no sul fluminense.

Esse foi seu grande erro por que como não sabia nada das manhas da agricultura dessa rubiácea, em poucos anos perdeu tudo que tinha. Ficou pobre. Dessa experiência seu pai tirou um ensinamento que passou para os filhos: nunca ponha todos os seus ovos em uma única cesta. Falida, a família se viu obrigada a se mudar para um local então considerado longínquo e inóspito no Rio de Janeiro, a praia de Ipanema. Naquela época o chique era morar no centro da cidade ou até o Flamengo. Só ia buscar pousada naquelas paragens da zona sul as famílias menos abastadas.

Luiz e Galy nunca quiseram ter filhos. Por opção viveram exclusivamente um para o outro e rechaçaram todos que tentaram se interpor entre eles. Nas palavras da própria Galy, por duas vezes nos anos quarenta ela engravidou e “tivemos que agir rápido”. Nunca percebeu dentro de si o menor sentimento maternal e, para se manter coerente com suas idéias, fez dois abortos numa época em que ninguém falava sobre isso.

Um dia Luiz me chamou pedindo que eu descesse lá correndo. Prevendo o pior, pedi minha empregada que descesse comigo. No quarto do casal, escuro e abafado por janelas e pesadas cortinas de veludo jazia Galy em cima da cama. Abri portas e janelas e percebi que estava viva, porém respirando com muita dificuldade. A perna esquerda estava inchada e do pé merejava um líquido incolor. Perguntei o que era aquilo e ele me explicou que há duas semanas eles estavam indo para a zona sul de ônibus quando o motorista deu uma freada brusca, e como estavam de pé, Galy caiu arranhando profundamente o tornozelo esquerdo em um parafuso de um banco. Ela não quebrou nenhum osso, mas ofendida que estava pela sua queda, resolveu vir para casa e descansar. Apenas. Recusou médico, hospital, curativo e farmácia. Não quis tratamento algum e o proibiu de buscar ajuda. Até que, vendo o estado em que ela se encontrava, ele finalmente teve coragem de contrariá-la e veio me chamar.

Pedi então que a minha empregada vestisse nela outra roupa, pois aquela estava imunda e imediatamente a levei para o hospital. Como não podia andar, peguei-a no colo e subi as escadas e a coloquei no fusca. O ferimento não tratado havia aberto uma porta para infecção e a perna estava toda contaminada. Foi tratada com antibióticos fortes para o eczema que se alastrara pelos membros inferiores, mas já estava em septicemia. No estado de suspensão de lucidez, de repente só falava em alemão e as enfermeiras e médicos não podiam se comunicar com ela.

- Quando eu morrer, disse, quero que você me jogue no mar ou na floresta. Não quero ser enterrada junto daquela família de vespas do Luiz. Não deixe isso acontecer.
- Tá bom Galy. Mas pense na mão de obra que isso vai me dar. Além disso, posso ter problemas com a polícia se atender a seu pedido.

Rimos à beça com aquele papo absurdo em alemão no
meio de dezenas de outros pacientes alojados em camas contíguas na geral do hospital, que assistiam boquiabertos à nossa conversa.
Assim, passei muitas horas ao seu lado tentando oferecer conforto e ajudar de alguma maneira. Ficou apenas quatro dias no Sousa Aguiar e faleceu.
Depois que ela se foi, ele ficou muito mais próximo de nós do que havia estado nos últimos quatro anos. Passava a maior parte do dia espichado em uma espreguiçadeira ouvindo aquelas músicas tristes da Radio MEC. Em que estaria pensando? Convidado, vinha todos os dias se sentar na minha varanda e costumávamos conversar por longas horas. Tinha cadeira cativa sentado à minha direita na sala de jantar e adorava divertir meus convidados recitando Manoel Bandeira de cor e de pé, copo na mão.

Bebia o que todos estavam bebendo e não reclamava de nada. O convidado ideal. Luiz deixava meus amigos gays totalmente à vontade para fazerem suas piadas picantes e ria conosco às gargalhadas, sem o menor pudor, sem um traço de preconceito. Seu cabedal de histórias e fatos passados parecia não ter fim e eu os ouvia sempre com grande interesse e atenção. Sempre tomávamos vinho, que é para molhar a palavra, como ele sempre dizia. Ele sobreviveu ainda um ano a sua esposa e falava demais nela e de como tinha tido uma vida perfeita a seu lado, que sorte a vida tinha lhe concedido em encontrar a mulher perfeita.

Um dia fomos Luiz e eu à igreja Ortodoxa Russa de Santa Teresa levar de presente uns quadros que havia na parede de sua casa desde que a família imigrou da Estônia, há quase um século. Tratava-se de cinco quadros de santos da igreja ortodoxa, que ele sempre odiou. Disse que lutou durante anos a fio para retirá-los da parede. Tudo em vão. Venceu a maioria e os quadros ficaram. Lembro-me bem de um deles: era um quadro de fundo falso onde havia um Cristo de rosto contorcido de dor, entalhado em metal, provavelmente prata, envolto em vasta cabeleira humana. Realmente era um horror, mas certamente havia valor histórico e econômico naquela peça rara. O pároco, vendo os quadros, deu um chilique e mandou retirá-los imediatamente de sobre a mesa de jacarandá com medo dos cupins.
- Tirem já esses quadros de cima da mesa. Isso tudo é lixo. Não quero que os cupins destruam o patrimônio da igreja.

Embora tivesse odiado os quadros por mais de sessenta anos, Luiz ficou revoltado com a falta de sensibilidade do padre. Meteu os quadros de volta na sacola de plástico e descemos de volta a rua em silêncio. De repente ele falou:
- O padre me deu uma ótima idéia. Ele disse que é lixo. Tem razão. É lixo mesmo e é para lá que eles vão. Vou jogar tudo no lixo hoje mesmo, disse com raiva.
- Luiz, não quero me meter, mas esses quadros devem valer uma grana. Não quer tentar vender e passar eles nos cobres?
-Não preciso de dinheiro. Agora eu quero é jogar no lixo. Espera comigo o caminhão?
- Mas Luiz, pense um pouco mais, tentei argumentar.
- Angelo, você não pode me negar o prazer de jogar no lixo esses quadros horrorosos que eu odiei a vida toda. Hoje eles vão.
Não tive escolha. Às cinco horas parou o caminhão da Comlurb na porta de casa, Luiz se aproximou quando a pá estava no alto e jogou lá dentro as duas sacolas contendo cinco quadros de santos da igreja ortodoxa russa do século xix que poderiam valer uma fortuna. Quando a pá desceu, moeu e engoliu os quadros eu baixei a cabeça, em respeito. Naquele momento me lembrei de uma cena do filme Titanic em que a personagem de Rose, já velhinha se debruça no beiral do navio e atira ao mar uma pedra preciosa que para ela não tinha preço. Aqui o valor simbólico era ao contrário, mas os opostos se equivalem. Eu tinha que respeitar o desejo dele, e assim o fiz.
Antes de entrarmos em casa ele disse:
- A casa é sua.
- Como?
- Você fica com a casa quando eu morrer.
- Luiz, depois a gente fala sobre isso, você está nervoso, respondi depois de alguns instantes.
Na semana seguinte ele tornou a falar no assunto e conversamos mais abertamente acerca de sua oferta.
- Quando eu morrer, disse, peço apenas que não me deixe apodrecer sozinho aqui, pode pegar a chave e ocupar minha casa.
- Fique tranqüilo, isso não vai acontecer. Não vou deixar você apodrecer aqui. Eu moro em cima. O cheiro ficaria insuportável depois de uma semana.
- Falo sério sobre a casa. Galy e eu pensamos em deixar para a Igreja em que nos casamos em 1940, mas aquele padre me dá nojo. Nunca gostei dele. Padres me dão nojo. Será que eles próprios acreditam nas mentiras que falam? Quando meu pai morreu, mamãe chamou um padre para encomendar o corpo. Ele trouxe um auxiliar não sei para que. Quando entrou, parou junto à porta e cochichou ao seu ajudante: Já pagaram? Já pagaram? Eu ouvi aquilo e fiquei revoltado. Queria botar todo mundo porta fora, mas minha mãe não deixou.
- Já que quer me dar a casa, então vamos ao cartório fazer tudo direitinho. Vamos fazer um testamento, tudo nos conformes. Sua família pode aparecer de repente e me tirar de lá.
-Imagine! Isso não será necessário. Dos meus seis irmãos e irmãs, tenho apenas uma irmã viva que mora em São Paulo. Ela está muito bem de vida e jamais se importaria com essa casa velha.
- Ledo engano. No dia seguinte à sua morte eles aparecem do nada feito urubus e me põem na rua.
Ele riu e marcamos então a data de irmos ao cartório.

Poucos dias antes de seu aniversario de 95 anos ele sofreu uma queda na varanda e quebrou o quadril. Aparentemente ele estava cochilando sentado numa cadeira de plástico quando esta virou e ele caiu. Levei-o às pressas para o hospital e foi constatada a fratura. Não puderam operar imediatamente por que ele tinha pressão alta e os médios esperavam que ela se estabilizasse para então submetê-lo ao procedimento. O risco cirúrgico seria alto demais.
Uma semana depois ele expirou no Hospital Miguel Couto.

Quando morreu, Luiz já tinha deixado claro que estava mais do que pronto para ir. Como ele me disse, ele passou toda a sua vida do jeito que ele queria, escolheu seus empregos, passou 65 anos com a mulher que ele amava e nunca teve que fazer qualquer coisa de que ele não gostasse. Ele teve vários empregos na vida, disse não a ótimas propostas de trabalho, mas passou a maior parte de seus anos mais produtivos como um agente imobiliário. A vida toda escolheu empregos que não exigissem dele dedicação exclusiva ou tempo integral, pois queria estar livre para viajar quando quer que lhe desse na telha. Como ele sempre dizia, sua vida tinha sido uma festa constante.

Entretanto, depois Galy morreu, ele sentiu que a festa tinha acabado. Uma noite, enquanto saboreávamos uma garrafa de vinho na varanda aqui de casa, ele me disse sorrindo, embora seriamente, que ele sentiu que a vida tinha sido um grande baile. Mas que já tinha acabado. A pista estava vazia, todo mundo já tinha ido embora, as cadeiras haviam sido colocadas de cabeça para baixo sobre as mesas e a turma da limpeza estava ocupada com suas vassouras e baldes varrendo e limpando o chão para a próxima turma que viria curtir outro baile. Eu nunca vi este homem amargo ou ressentido de qualquer coisa.
- Todos os meus amigos estão mortos, meus pais e irmãos estão mortos, minha esposa está morta. E eu estou pronto para ir também, disse ele sem sinal de amargura.
Estou orgulhoso e grato à vida por ter sido escolhido como o depositário de todas essas histórias.

Em nenhum momento sua família esteve por perto quando precisamos dela. Eu ligava para São Paulo e Brasília, onde ele tinha parentes distantes e comunicava o estado de saúde de ambos. Avisados, ninguém veio aos enterros. Contrariando pela última vez o desejo de Galy, aquela história absurda de se unir à natureza na mata ou mar, Luiz, Terezinha, minha empregada e eu a sepultamos no São João Batista mesmo. Luiz concordou em não colocar seu corpo na sepultura de sua família. Um ano depois, Terezinha e eu fomos os únicos presentes ao enterro do Luiz, no mesmo cemitério.
Um mês exato após seu falecimento recebi a visita de um oficial de justiça com uma ação judicial contra mim impetrada por sua sobrinha, usando o nome de sua mãe viva, contestando a validade do testamento, me acusando de exercer coação irresistível contra vulnerável e requerendo para si a casa que o Luiz me deixou. Há quatro anos esse processo corre no tribunal do Rio de Janeiro e ainda não há sentença.

3 Comments:

Blogger Luciana Azevedo said...

História magnífica! Emocionante mesmo...li, reli e vou ler mais vezes.

3:37 AM  
Blogger zapfig said...

Gostei. Tiv que rir demais

4:11 PM  
Anonymous branquinho said...

História linda. Que privilégio ter conhecido esse casal.
Estou adorando o seu blog.

4:41 PM  

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