15 setembro 2010

Santa Lola

Toda cidade em cada região do interior brasileiro tem seus santos. Na minha terra não foi diferente. Ali perto de Rio Pomba, no interior de Minas Gerais tinha uma santa de inquestionável eficiência e a quem todos reverenciavam. Ela se chamava Santa Lola.

É difícil escrever sobre um personagem que tangencia a divisa entre as esferas do imaginário e do real e o que eu sei sobre ela são apenas fragmentos de narrativas contadas esporadicamente por minha mãe e minha avó. Há muitos anos nunca mais ouvi ninguém falar dela. Perguntei às minhas irmãs o que elas poderiam dizer sobre a santa, mas parecem saber ainda menos do que eu. Pesquisei no Google e não há uma só linha sobre Santa Lola. Tem uma homônima, com dois eles, mas é marca de roupa. Até onde eu sei, sem relação com a santa em questão. Sei que não inventei por que lá em casa todo mundo já ouviu falar. Sei que ela existiu porque confio nas palavras de minha mãe minha avó. Elas jamais mentiriam a respeito de algo tão sério. Minha avó a viu pessoalmente nos anos cinqüenta e minha mãe tentou visitá-la nos anos sessenta, mas a essa época, a balbúrdia na sua porta já era grande e ela já não mais recebia devotos.

Contava-se que ela era uma menina muito religiosa, mas também peralta e brincalhona que gostava de subir em árvores com a molecada. Um dia, quando tinha treze anos, ela caiu de uma árvore e teve o estômago atravessado por um galho seco de grosso calibre. Estamos falando do interior de Minas Gerais, no inicio de século XX, quando mesmo na cidade mal havia hospitais, que dirá na roça. Ela morava numa casinha muito pobre e nada fazia crer que se tornaria tão famosa um dia. Pois bem, foi levada de carro de boi para o hospital mais próximo, que ficava em Ubá e lá ficou entre a vida e morte por muito tempo. Sua mãe era uma devota católica praticante e pediu de joelhos que a vida de sua filha fosse poupada. No hospital, a menina recebeu a extrema-unção do padre local, confessou seus pecados e recebeu a hóstia sagrada.

Só que ela não morreu. As semanas se passaram e ela continuava viva. Um dia seus pais pediram para levá-la para casa no estado em que estava para que lá pudessem cuidar melhor dela, já que não tinham condições de se hospedar naquela cidade. Não sei como isso seria resolvido hoje em dia, com a ética medica tão rígida. Mas naquele tempo os médicos se reuniram e acharam que não havia mal algum em deixá-la ir morrer em casa. Semanas viraram meses e a rotina de cuidar dela parecia ter-se integrado no dia-a-dia da casa. Recebia diariamente a hóstia sagrada, era limpa e virada na cama, mas não consumia alimento, pois estava traqueostomizada. No início recebia líquidos via traquéia para se manter viva. Depois não sei direito o que se passou, se os pais resolveram parar de dar, ou se ela pediu para não receber mais, só sei que pararam de dar a ela o alimento diário. Também não sei se recebia água. Hoje em dia isso seria ou eutanásia ou ortotanásia, ambas eticamente discutíveis. Mas a menina não morreu. As semanas viraram meses e os meses viraram anos até que sua fama se espalhou pela região. Em poucos anos todos sabiam que uma menina estava viva pela Graça de Deus.

Não tardou os romeiros começaram a chegar e pedir a ela intercessão junto às esferas superiores da dimensão divina em casos de doença grave, ou questões menos urgentes como a compra de uma fazenda ou só para pedir graça e proteção. Dizem que os pedidos costumavam ser atendidos. Foi nessa época que minha avó foi visitá-la e viajou durante um dia inteiro para cobrir pouco mais de cinqüenta quilômetros de Guidoval a Rio Pomba. Não sei mais quando e por que essa viagem se deu, pois eu ainda não era nascido e mineiro não gosta de dar detalhes de nada. Eu perguntava isso e muitas outras coisas, mas a tendência era sempre desconversar.Tudo na moita. Muitos anos depois minha mãe foi visitar a santa, mas nessa época ela já não recebia mais romeiros em casa. Minha mãe teve que pernoitar acampada na porta da casa dela e aquela turma de viajantes passou a noite em vigília rezando e pedindo. Não sei se a essa época eles pediam graças para a enferma ou se somente para si, por intermédio da santa. Nada disso posso contar com muita certeza, pois lá se vão quarenta e cinco anos.

Pouco tempo antes de falecer, minha mãe esteve aqui em casa e eu a perguntei se era verdade que Santa Lola de fato existiu. Ela silenciosamente abriu sua bolsa de mão e tirou de dentro um santinho todo amarfanhado, aquelas impressões que trazem a efígie de algum morto com uma oração no verso. Era a foto de Santa Lola, bem velhinha, deitada no seu leito, ainda lá na casinha da roça. Mamãe se emocionou ao falar dela como se emociona ao falar de um ente querido. Ela nunca a viu, mas jamais duvidou de sua existência ou de seus milagres.

Não tenho explicações cabíveis para a sobrevivência por mais de cinqüenta anos de alguém deitado em uma cama dura recebendo apenas uma porção de alguns gramas de farinha de trigo por dia. Sabe-se que a hóstia era a única ingestão diária dela. Mas sei também que nem tudo se explica à luz da ciência. Quem confia demais na ciência pode ter duras decepções. Há características idiossincráticas do sujeito que são responsáveis, por exemplo, pela resposta de um organismo a um tipo de medicamento. Pode-se especular sobre a redução ao mínimo das atividades vitais dela até um estado basal de sobrevivência de alguém que pesava pouco mais de trinta quilos. Pode-se pensar em uma conversão histérica elaborada que fez com que seu corpo emaciado pela dor passasse a queimar lentamente os carboidratos armazenados nos músculos e ossos e se acostumasse a consumir o mínimo apenas para que ela respirasse. Que tipo de gozo havia se instalado naquele aparelho psíquico incipiente de modo que o ajudar ao próximo serviria também como sustentáculo e fonte alternativa de vida para ela?
Entretanto, não sou dono da Verdade - nem sempre respondo de maneira eficiente pela minha própria. Chego a desconfiar que é uma certa arrogância achar que tudo se explica. Quem nos garante que uma força superior realmente não agiu ali fazendo com ela vivesse para ajudar as pessoas? Será que era esse o seu sintoma? Quem nos garante que seu corpo não foi usado com um propósito maior que nos escapa o entendimento?

Minha avó e minha mãe não tiveram dúvida alguma com relação a sua existência nem quanto à natureza de sua sobrevivência. Estavam convencidas de que era milagre, intercessão direta do Altíssimo. Talvez elas tivessem razão. Talvez a resposta seja tão simples assim. De qualquer maneira estou certo que nunca se preocuparam em saber os verdadeiros motivos do tal milagre.

Já me digladiei entre essas várias possibilidades, já inventei tantas outras, a maioria totalmente incabíveis, e às vezes sinto que já queimei neurônios demais tentando achar uma explicação para a mera existência de Santa Lola. Há coisas que não têm mesmo explicação. Mistérios existem. E temos que nos haver com este fato.

A vingança da pequena órfã

Desde que eu era muito pequeno, em meados dos anos 1960, na minha pequenina Guidoval, zona da Mata mineira, me lembro da existência dessa menina. Ela se chamava Carminha e era filha adotiva da minha tia, que era irmã do meu pai.

Ninguém da minha família sabe até hoje com ela chegou até a casa de minha tia, mas era fala comum que ela era “boazinha” e ajudava minha tia com as tarefas domésticas. Bonita, nunca foi: tinha a pele parda, ruça, com textura de papel celofane, era bem magrinha, dentuça, pálida, descabelada, e, para completar, era fanha e tinha lábio leporino. Mas minha tia a tomou como filha adotiva. Ou, pelo menos, era assim que a sociedade Guidovalense via a situação da garota. Minha tia tinha pretensões à sociedade local. Seu marido era dono da única padaria na cidade e era dono também de um cassino clandestino onde, dizem, fazendas trocaram de mãos. Não eram ricos, mas gostavam de se passar por.

Quando éramos pequenos, éramos proibidos pela nossa mãe de ir visitar aquela casa, pois nossa família era pobre e mamãe temia que eles nos dissessem isso. Meus cinco primos andavam bem vestidos, com roupas de marinheiro azul marinho com listras brancas e aquele paninho caído nas costas. Eu achava aquilo o máximo. Minhas duas primas andavam de vestidos de organdi branco com várias saias até os joelhos e usavam laçarotes de fita de seda branca na cabeça. Umas princesas.

Lá em casa somos sete filhos, minhas seis irmãs e eu. Todos com intervalo de um ano e meio um do outro. Mamãe contava com rancor que quando éramos pequenos, passando por grande dificuldade, pediu à cunhada se poderia mandar uma de minhas irmãs, a segunda, todos os dias para almoçar. Minha tia então disse que sentia muito, mas que todos os dias não seria possível. “De vez em quando até vai, mas todo dia, fica difícil”.

A casa deles era uma das únicas que tinham geladeira e televisão na cidade, mas não podíamos ir lá desfrutar de tamanha maravilha. Um dia eu passei em frente a casa deles e vi que estavam assistindo televisão de porta aberta. Reparei que era colorida. Só muitos anos depois, soube que naquela época não havia TV em cores e o que eu julgava ser colorido era uma tela de plástico de três cores que eles colavam na frente do vídeo para dar a impressão que era TV a cores.

Minha mãe era funcionária da limpeza e também cozinheira da escola estadual onde minha tia era diretora e sempre reclamava que minha tia zangava com ela na frente de todos quando via, por exemplo, que uma sala não havia sido bem limpa. Uma vez, cozinhando a sopa das crianças para a merenda, mamãe inadvertidamente deixou entrar fumaça na panela e a comida ficou com gosto de carvão. Nem precisa dizer que o fogão era à lenha. Minha tia fez um escândalo e a suspendeu do serviço por uma semana com uma advertência por escrito.

Para todos os fins, minha tia fazia entender que Carminha era sua terceira filha, e colhia os louros da sociedade local por isso. Todos comentavam de sua abnegação e bondade para com os mais necessitados, uma alma boníssima. Só que a realidade, segundo a própria menina, era bem diferente. Desde o primeiro dia em que chegou àquela casa, sempre foi tradada como empregada. Recebeu de presente uma vassoura no dia em que botou os pés na sala de entrada. Ela tinha a essa época apenas oito anos, e, com o passar doas anos, suas responsabilidades foram também aumentando. Nunca pode fazer suas refeições junto com família: comia na cozinha, junto com a outra empregada e isso depois que todos haviam almoçado, os restos do que sobrou nas bandejas que foram à mesa. As roupas que vestia também eram restos de suas “irmãs”. Pode parecer clichê, pode parecer com a estória da Cinderela, e eu até gostaria que fosse, por causa do final que essa princesa teve. Mas não foi bem assim.

Alguns anos mais tarde nossas famílias se mudaram de Guidoval, a minha transferiu-se para Juiz de Fora e a da minha tia foi para Belo Horizonte, deixando minha avó sozinha na cidade. Mas voltávamos sempre lá para as férias escolares. Isso era muito bom. Ficávamos hospedados na cada da vovó e eu gostava da Carminha. Lembro-me de irmos nadar no rio da cidade eu, ela e meu primo. Hoje este rio está assoreado e morto. É um rio morto, sem peixes, cheio de lixo. Mas naquela época tinha cachoeira de águas claras que batiam nas pedras. Numa manhã de muito sol fomos nadar fora da cidade. Andamos léguas a pé os três. Chegando lá, Carminha tirou a roupa no maior sem-cerimônia e nadou nua. Nunca vou me esquecer. Eu tinha 14 anos e ela uns 18, já com corpo de mulher. O que lhe faltava no rosto, a natureza havia lhe recompensado sobejamente nas formas perfeitas. Meu primo ficou mais chocado que eu quando viu seus seios duros de frio na água gelada. Ela ria às gargalhadas. Uma beleza para os sentidos. Insistiu para que tirássemos nós também nossas roupas, mas, travados, nadamos de cueca. Meu primo também era alguns anos mais velho que eu, e, assim como eu, também se tornaria homossexual. Mas juro que a nudez de Carminha nada tem a ver com isso.

Creio que foi a grosseria de sua mãe que mais tarde o fez se casar e arranjar vários filhos. Ele não era um sujeito muito forte e não aprendeu as lições que Carminha tentava em vão lhe ensinar. Minha tia, por outro lado, era uma mulher muito dura e quando estava com raiva gritava o que lhe viesse na cabeça. Uma vez a vi humilhando até as lágrimas esse meu primo. Presenciei a uma cena doméstica que enquanto eu viver não vou esquecer. Quando percebeu que ele era afeminado ficou furiosa e despejava na cara dele seu embornal de acusações: “Barrigada desperdiçada. Você não serve para nada! Para que servem a merda desses bagos ai dependurados no meio de suas pernas? Isso é para enfeite? Se é, então corta e joga para o cachorro que assim terão alguma utilidade”. Fiquei enrijecido de pavor ao ouvir aquelas palavras e trinta e quatro anos mais tarde ninguém me convence que elas também não se endereçavam a mim. Ela era fogo.

Poucos anos depois dessa cena lastimável ele se casou com uma moça de uma cidade do interior de Minas, acho que era Congonhas. Como dois anos depois do enlace a moça ainda não engravidara, ele resolveu pegar pesado logo de cara: fez um trato com São Judas Tadeu, para quem não há nada impossível, oferecendo duzentos pares de sapatinhos de lã de bebê para serem distribuídos entre os pobres de Belo Horizonte, caso a moça engravidasse. Naquela época ele já sabia tricotar como poucos. Eu também sabia e fizemos muitos pull-overs de lã enquanto conversávamos longamente nas noites frias dos invernos mineiros, bebericando uma caninha da roça. Passou então a mão nas agulhas e atirou-se naquela tarefa inglória. Eu ia dizer hercúlea, mas depois me ocorreu que Hércules jamais teria feito um trato desses com santo. E santo costuma cobrar. Não é que ela engravidou? Quando a moça estava com três meses de gravidez e a promessa estava já cumprida, no entanto, teve um aborto espontâneo e perdeu a gestação.

Meu primo não se deixou abater e dessa vez ofereceu não duzentos, mas quatrocentos pares de sapatinhos de lã ao mesmo santo. E ela engravidou novamente e a gravidez ia de vento em popa. Quando ele se deu conta do absurdo que é tricotar quatrocentos pares de sapatinhos, comprou uma máquina tricotadeira e com poucos zigue-zagues de mão os sapatinhos iam caindo já aos pares na cesta de vime. Depois era só fechar rapidamente com ponto Paris e estava pronto, mas a maior parte do trabalho já tinha sido executada. Isso vale? Mas de repente, seu projeto sofre novo revés. Meu primo resolve, não sei por que cargas d’água, ir a um centro espírita na Lagoinha fazer uma consulta sobre o andamento de seu pedido lá nas esferas superiores da dimensão divina. O pai de santo, bebendo cachaça e fumando charuto, incorporado com um Preto Velho zombeteiro, disse a ele em transe “ô mizinfim... aquela máquina... aquela máquina qui ocê comprô num pode... tá pijudicano seu pidido... tá amarrano a sua vida...” Com grande desapontamento por ter sido flagrado trapaceando, ele saiu dali arrastando a chinelinha, voltou para as agulhas e completou a tempo a promessa. Creio que o santo tomou gosto pela coisa, pois nos quatro anos que se seguiram, sua esposa engravidou - e teve - mais três bebês saudáveis. Isso foi no início dos anos 80. Nunca conheci nenhuma dessas crianças.

Carminha era uma mulher libertária, alegre, engraçada, inteligente. Foi através da amizade com ela que passei a gostar de poesia e a prestar atenção em música. Foi através da amizade com ela que aprendi a desobedecer, a questionar, a levantar a cara, a dizer que eu também tinha opinião, a não me deixar ser humilhado. Não sei como ela conseguiu manter uma cabeça relativamente saudável em um ambiente tão inóspito. Não sei como conseguiu desenvolver sentido de auto-estima vivendo com uma mãe postiça que a humilhava. Ao contrário da mãe, meu primo a adorava e a minha prima mais nova também gostava dela.

Durante o período de aulas, incentivado pela Carminha, demos início a uma intensa correspondência. Lembro-me que os envelopes, dela e meus, eram sempre extravagantes e coloridos. Nessas cartas eu expunha meus questionamentos acerca da minha sexualidade, minha família, meus quereres, pensava na vida tendo-a como minha primeira interlocutora. Minha mãe conhecia a fama de respondona da Carminha e não gostava dela. Achava que a menina faltava com a gratidão que devia a minha tia.

Assim que se deu conta de que as cartas chegavam e de quem eram, enciumada passou a abri-las sistematicamente e lê-las antes de entregá-las a mim. Mamãe nunca teve a sutileza dos fraudadores que eu via nos filmes, nunca ferveu água na panela para amolecer a cola das cartas no vapor e assim poder abri-las sem que ninguém soubesse: metia a mão e rasgava o envelope como se a carta fosse para ela. Carminha me disse para enfrentá-la e eu o fiz. Deu uma grande confusão e levei até surra, mas hoje, olhando o fato em retrospectiva, acho que o saldo foi positivo. Eu era adolescente e estava experimentando a vida com toda força nos anos 70.

Quando Carminha tinha uns 20 anos, cansada da vida que tivera durante tantos anos sob o jugo e sanha cruel da “mãe”, ela deu um revertério. Pelo que eu soube na época, ela protagonizou uma cena de novela. Uma noite chegou tarde da rua e encontrou a mãe furiosa com seu atraso. Naquele momento se encontravam apenas as duas em casa houve uma discussão. Ofendida e acuada por algum motivo, Carminha resolveu lavar toda a roupa suja com minha tia. O tom da conversa subiu, e, aos berros, ela rememorou os doze anos que havia passado, não como empregada doméstica, por que empregada doméstica recebe salário, mas uma escrava naquela casa, nunca se sentira amada, só explorada. Minha tia a chamou de ingrata e começaram a se ofender verbalmente uma à outra. O caldo entornou mesmo quando minha tia deu-lhe um tapa no rosto e, ato contínuo, ela revidou. E revidou com a cobrança de juros e correção monetária atrasados, dando-lhe uma estrondosa surra entre lágrimas e risadas histéricas. Como devem ter gozado as duas! Quando minha tia caiu no sofá, convoluta e estupefata ouviu apenas o bater violento da porta. Carminha havia ido embora para sempre.

Mineiro é muito reservado, vamos dizer assim. Não conta nada. Esta e outras histórias cabeludas dos bastidores de nossa família só se ouvem anos e anos depois de ocorridas, assim mesmo por um descuido de quem as contou. Uma de minhas irmãs compra um big apartamento na planta e a família só fica sabendo muito tempo depois quando ela própria se trai nunca conversa informal. Um de nós faz uma viagem pela Europa, visitando cinco países e na família ninguém fala nada. Uma de minhas irmãs vai se separar do marido e o assunto morreu ali mesmo. Aquela que ouviu a inconfidência, por sua vez, jamais sairia cotando para as outras irmãs e o assunto vai vazando assim ao longo dos anos. Será para não suscitar olho-grande? Indiscrição? Não sei.

Da história da vingança da Carminha só se soube fragmentos contados entre dentes com mãozinha na boca aqui e ali ao longo de mais de trinta anos de discrição e silêncio. Ninguém garante que cada um que conta não aumenta uma ponta.

Disclaimer Esta é uma obra de ficção. Portanto, qualquer semelhança com pessoas reais vivas ou que ja tenham subido não passa de mera coincidência.

03 setembro 2010

O salão de baile

Galy Karaburdji Nóbrega casou-se com Luiz Theberge Nóbrega em Janeiro de 1940 e viveram juntos, segundo eles felizes, até que ela faleceu em dezembro de 2004, exatamente um mês antes de completarem 65 anos de casados.

Embora eu os tivesse conhecido quando já beiravam os 90 aos, este senhor não admitia que lhe chamassem de “Seu” Luiz, por que isso lhe fazia parecer muito velho. Essa proibição me colocava sempre em dificuldade, pois devido à minha criação, eu considerava um desrespeito chamar um senhor de idade que acabara de conhecer pelo primeiro nome. Por isso, estava sempre pisando em ovos quando me dirigia a ele. Por diversas vezes ele me corrigiu na frente de todos até que acostumei. Eles não gostavam da companhia de pessoas idosas, porque segundo eles, esses eram muito ranhetas e rabugentos. Assim, preferiam a companhia de pessoas mais jovens.

Eles haviam se conhecido quatro anos antes do casamento em um acampamento de jovens no topo da Pedra da Gávea, a 850 metros de altitude, no Rio de Janeiro. Luiz era mais falante que Galy e adorava contar repetidamente como se deu o primeiro encontro. Ambos faziam parte de grupos de caminhadas: ela era Bandeirante e ele era membro do Clube Excursionista Brasileiro, que se dedicava a andar distâncias continentais desbravando florestas e desvendando mistérios da natureza selvagem.
Dessa feita, o motivo da excursão era a investigação de inscrições fenícias que se encontram no rochedo daquela montanha de pedra. Luiz só me contou sobre esse encontro após a morte da Galy e se emocionava até as lágrimas a cada vez que me contava: sempre como se fosse a primeira. O seu grupo de rapazes havia carregado um gramofone, um trambolho pesadíssimo morro acima para tocar um LP com a Alvorada, de Carlos Gomes ao nascer do sol. As pessoas sempre tiveram seus motivos particulares para justificar suas ações mais inexplicáveis. Naquele momento, haviam acendido uma fogueirinha para o café e a música soava majestosa quando essa mocinha apareceu do nada, sorriu, aproximou-se e lhe ofereceu uma balinha. Incrédulo diante de tamanha formosura, ele lhe ofereceu uma xicarazinha de café e pelos próximos 65 anos nunca mais se desgrudaram. Não sou grande conhecedor de música, mas suspeito que a tal Alvorada de Carlos Gomes seja a conhecida protofonia da ópera O Guarani.

Quando me contou essa história pela primeira vez, foi buscar um livro antigo, amarelecido pelas décadas no qual ele leu e depois me mostrou uma inscrição colhida durante aquela expedição na montanha de rocha. Eu então rapidamente anotei em um pedaço de papel, já na intenção de um dia vir a escrever sobre eles: LAABHTEJ BAR RIZDAB NAISINEOF RUZT, que lidas de trás para frente dava: TZUR FOENISIAN BADZIR RAB JETHBAAL - Tiro, Fenícia, Badezir primogênito de Jetbaal. Por diversas vezes ele me contou dessa descoberta, e sempre com grande entusiasmo. Essa inscrição realmente desperta mais perguntas do que respostas. Depois de tal façanha, Luiz passou outros 70 anos intrigado com o que essas palavras poderiam significar. Morreu sem conseguir descobrir.

Casaram-se e vieram morar junto com os pais dela nessa casa, que fica embaixo da minha, em Santa teresa. Como havia três quartos eles fizeram o quarto dos dois casais em extremos opostos e usavam o quarto do meio como sala de estar. Segundo eles, a convivência foi sempre pacífica e jamais houve um momento de discórdia, uma dúvida, um senão, um elevar de voz. Viviam segundo um modelo que me parece comunista: todos os quatro trabalhavam e ninguém tinha conta em banco. Quando recebiam seus salários, todos colocavam seus soldos em uma caixinha de madeira com tampa trabalhada que ficava na estante da sala de visitas. Depois de pagas as contas da casa, quem precisasse de dinheiro para alguma coisa tinha total liberdade de pegar o quanto houvesse restante. Essa caixinha hoje pertence a mim e a guardo com muito apreço.

Galy nasceu na República da Estônia, que mais tarde seria parte integrante da antiga União Soviética em 1915. Seu nome de batismo era Galina, mas logo que seus pais chegaram ao Brasil e aprenderam Português descobriram que Galy soava melhor e assim passaram a chama-la. Já naquele tempo nosso país era pródigo em cretinos que sem demora passaram a chamar a menina de galinha. Galina Karaburdji era filha única de Demétrius e Claudia Karaburdji. Eles imigraram para o Brasil em 1918. O Brasil foi a primeira escolha devido às nossas famosas condições climáticas. Passaram alguns meses em São Paulo, mudando-se a família para o Rio logo em seguida. O pai de Galy foi, durante muitos anos, comandante de um submarino russo e logo após a Primeira Guerra Mundial a situação política na Estônia tornou-se insuportável especialmente para essa família porque eles eram considerados burgueses. Uma bóia trazida como souvenir do tal submarino foi mantida dependurada na parede como souvenir até recentemente. Só depois do falecimento de ambos, a casa foi reformada e tivemos que nos desfazer da maioria de seus apetrechos. Galy contava que um dos soldados do submarino de seu pai era irmão mais novo do compositor Tchaikovsky. Pelo que ela contava, esse rapaz era bem mais novo e via no irmão uma figura paterna, pois escrevia longas cartas para ele, nas temporadas que o submarino ficava fora da União Soviética. Ainda guardo uma foto desse rapaz abraçado a um companheiro, esmaecida por cem anos de gaveta. A veracidade de tal informação infelizmente jamais poderá ser atestada, já que não há qualquer inscrição no verso da mesma.

Dona Claudia morreu em 1949 e Seu Demétrius em 1955. Refiro-me desta maneira a eles, porque era assim que o casal a eles se referia. De tanto contarem histórias, acabei me acostumando com mais esses dois personagens. Não me lembro de mais detalhes sobre eles, exceto que adoravam dançar, jogar baralho e receber amigos em casa.

Freqüentavam clubes de dança no centro da cidade e levaram uma vida muito boa em nosso país. Quatro cinzeiros pequenos em forma de naipe de baralho, dois pretos e dois vermelhos enfeitam ainda hoje um console de madeira na minha casa, testemunhos silenciosos daquela época.

Galy e Luiz falavam várias línguas e tinham muitas histórias para contar de suas andanças pelo mundo. Tudo o que ganhavam com seus trabalhos, gastavam em viagens pelos quatro cantos do globo. Conheceram o Brasil tão bem quanto Amaral Neto e viajaram por todos os continentes. Uma vez me contaram de uma viagem que fizeram de fusca pelo interior da Bahia. O carro quebrou no meio do nada e passaram grande aperto, tendo que contar com a ajuda dos moradores de uma fazenda para comida e água. Viver é isso!

Ela tinha sido uma decoradora de interiores e designer de móveis para uma empresa chamada Laubisch Hirt durante toda sua vida profissional. Até algumas semanas antes de adoecer, ela ainda saía com sua bolsa embaixo do braço para visitar seus clientes mais antigos e dar dicas de decoração. Eu mesmo recebi dela dicas valiosas quando estava reformando minha casa. Foi ela quem decidiu qual luminária seria dependurada em cada cômodo, qual a melhor disposição dos móveis de forma a otimizar o espaço interno e me fez trocar toda a cerâmica que eu já havia comprado para o terraço. Estupidamente comprei cerâmica clara e ela me convenceu a trocar por algo mais sóbrio com um argumento simples e grande sutileza:
- Mande por isso no chão e terá que usar óculos de soldador para vir tomar banho de sol na varanda. Seu terraço vai ficar com cara de banheiro social. Você vai adorar.

Eles viveram uma vida de tranqüilidade e amor nesta mesma e única casa, decorada de forma humilde e mobiliada espartanamente. À exceção de dois guarda-roupas e uma cômoda da marca Laubish-Hirt que ficaram, todos os seus móveis eram cacarecos; algumas caixas de frutas serviam como mesinha de centro ou armário de cozinha. Galy nunca foi boa cozinheira. De fato, ela odiava a cozinha e todas as tarefas relacionadas com dona-de-casa. Só muito raramente entrou naquele cômodo da casa. O Luiz é que cozinhava e dava conta dos afazeres domésticos. Galy estava sempre muito ocupada com suas leituras. Ela adorava os clássicos russos, Gorki, Tchekhov, Tolstóy que lia no original. Até beirando 90 anos lia o que lhe caía nas mãos. Até meu pequeno Retrato em Branco e Preto ela leu e fez valentes comentários a respeito. Costurava sem óculos, o que me dava muita inveja, pois eu, aos quarenta em ponto precisei óculos de leitura, cujo grau vem crescendo a cada ano. Lenta e meticulosamente Luiz cortava cenouras e batatas, que seriam cozidas e misturadas à maionese. Um rosbife completaria a refeição que deveria durar uma semana inteira. Eles comiam a mesma comida por uma semana, só na seguinte ele se animava a cozinhar algo diferente. A bebida era sempre água tônica.

Tudo o que fizeram a vida toda foi cuidar um do outro, fazendo-lhe companhia, lendo poemas e os romances de Eça de Queiroz, em voz alta, um para o outro. Tudo isso para mim era tão impressionante que com o tempo eu me acerquei mais e mais do casal. Todas as outras atividades, como o trabalho, por exemplo, lhes pareciam extremamente frugais e dispensáveis. Trabalhavam o mínimo e não se preocuparam em ganhar mais dinheiro do que o suficiente para comer e viajar de vez em quando. Já velhinhos, usavam roupas que pareciam frangalhos, camisas puídas e vestidos com buracos aqui e ali, mas não se deram conta disso. Ao contrário, sempre alegres faziam planos de novas viagens e estavam de viagem marcada em uma excursão para Dezembro de 2004 quando Galy caiu doente e não puderam ir. Erike, um dedicado acompanhante que eu contratei para fazer companhia ao Luiz depois da morte da Galy me contou que eles faziam sexo até uns três anos antes, ou seja, ela tinha uns 87 e ele uns 90 anos.

A alegria de viver e vitalidade que ostentavam impressionavam a todos. Ambos tinham seus corpos bastante eretos. Havia muitas fotos deles na juventude praticando esportes, nadando, escalando montanhas, ele segurando halteres sobre a cabeça com os braços esticados, corpo todo em forma. Essas fotos, que eram centenas, eu guardei por muito tempo até que o peso de possuí-las se me tornou insuportável e eu as presenteei ao tal rapaz que lhe fez companhia. Erike produz camisetas e fez belos apliques com a cópia de algumas delas nas estampas que produz.

Mesmo velhinha Galy exibia seios grandes e empinados e jurava que jamais usou sutiã. Usava maquiagem e saltos altos até dentro de casa. Luiz saía de casa todas as manhãs para suas caminhadas pelo centro da cidade, sempre trazendo para ela frutas frescas e suas trouxinhas de maçã.

Uma manhã de sábado Galy gritou forte meu nome e me chamou lá embaixo. Cheguei à varanda e quando não vi o velho, pensei no pior. Vesti de qualquer jeito o primeiro calção que encontrei e desci ainda sem camisa. Para minha surpresa, Luiz abriu a porta sorrindo e me fez entrar. Aliviado, não recusei e desci as escadas já dentro de casa. Caminhei até os fundos e lá estava a mesa posta na varanda, debaixo de uma parreira de buganvile toda cacheada de flores vermelhas, e aquela vista linda do centro da cidade. Estavam bebendo algo que imaginei ser água gelada. Ela me mandou sentar e me ofereceu um copo, que aceitei. Em seguida veio de lá o Luiz com um copo cheio de gelo e uma garrafa de água tônica. Eles adoravam água tônica.
- Que bom, eu disse. Está tão quente... Vamos beber água tônica?
- Sim, with a splash of gin, ela completou com um sorriso e uma piscadela.
Fiquei surpreso que eles estivessem bebendo gin tônica às nove da manhã de um sábado, mas se nessa idade eles podem, por que eu não poderia? A resposta viria logo a seguir. Ela tomou nas mãos a garrafa de Gordon’s Dry Gin que estava malocada embaixo da mesa e virou no meu copo. Glup, glup, glup. Deixou verter até completar o volume. Era drink longo. Cocei a cabeça e resolvi entrar no jogo. Ficamos ali conversando e dando risada por mais de duas horas, só bebendo, sem petisco. Quando desci para atender a emergência, ainda não havia tomado café da manhã, portanto estava me virando no gin tônica de barriga vazia. Quando finalmente decidi subir por volta de onze e pouco tentei ficar de pé, mas me faltavam as pernas. Vacilei o andar e contei um passo para trás. Eles riram a debalde.
- Gin tônica não é para iniciantes, rapaz! Fica firme!, disse Luiz com voz forte.
- Se isso é água tônica com um splash of gin, não imagino o que vocês tomam como gin tônica, eu disse antes de subir para deitar-me.

Não posso falar de Galy sem enfatizar a alegria de viver que exalava. Uma vez chegou em casa furiosa por que foi visitar uma amiga de juventude no hospital. Ela chegou quando eu estava entrando em casa e me convidou para um café.
- Não acredito que a Genoveva está se entregando, Luiz. Você tinha que ver a cara dela. Chega a estar pálida lá deitava. Será que quer morrer?
- E quantos anos tem a Genoveva? eu quis saber.
- 86! Mas isso não lhe dá o direito de abrir mão assim-assim.
Preferi ficar bem calado nessa hora. De fato, dois dias depois veio a notícia de que Genoveva havia partido. Parece que tomou a decisão e se foi.

Segundo o casal, nunca houve uma briga entre eles. Em 1974, houve um pequeno atrito por causa de alguma coisa de que ambos se esqueceram, mas no calor da discussão ele teve a infelicidade de chamá-la de chata. Aquela palavra feriu de morte seu coração delicado. Ficou chateada por semanas e só voltou a falar com ele quando este escreveu um documento de próprio punho, datado, e assinou embaixo jurando por escrito que nunca mais a chamaria de chata. É apenas um bilhetinho informal, mas por que ele deu sua honra como garantia, tem peso de compromisso. Ela aceitou seu pedido de perdão e eles guardaram a notinha enquanto viveram. Aquela foi a única vez que ele se atreveu a ofendê-la. Guardo com imenso carinho também esta notinha.

Já velhinhos foram fazer uma excursão em Abrolhos. Viajavam sempre de ônibus com a desculpa de que se vê mais. Foram até alguma cidade no litoral baiano e de lá tomaram uma escuna que os levou até os atóis. Passaram rapidamente pela pousada para trocar de roupa e foram logo nadar nas piscinas encetadas no meio dos arrecifes. Naquela brincadeira toda Luiz não se deu conta de uma onda grande que veio de repente e o derrubou. Quando tornou a ficar de pé estava banguelo: a onda havia levado seu par de dentaduras. O salva-vidas percebeu que o velho estava em apuros e ofereceu ajuda, convocando toda a turma de excursionistas da terceira idade para ajudar na busca.
- Vamos todos agora mergulhar e tentar achar as dentaduras do senhor Luiz!
Luiz sabia bem que era tarefa se afigurava impossível, mas não perdeu a pose. Nem a piada.
- Muito bem. Prestem atenção todos: se alguém vir um badejo enorme com um sorriso suspeito, pode pegar que são as minhas dentaduras.
Resultado: passou seis dias comendo sopinha e banana, até o dia do retorno à terra.

Num determinando momento meu casamento não ia bem das pernas e a separação já era iminente. Algumas vezes Marcelo saía de casa à noite dizendo que ia dançar e só voltava ao amanhecer. Como nesse tempo eu ainda gostava dele, ficava muito triste quando isso acontecia. Uma noite cheguei à janela do escritório para vê-lo descer a rua deserta e não acendi as luzes, para não ser percebido. Fiquei assim olhando de soslaio aquela cena até que ouvi barulho de porta se abrindo logo embaixo de minha janela. Era o casal Luiz e Galy, super chiques: ela de costume cinza claro acetinado, bolsinha combinando e ele de terno preto. Onde estariam indo àquela hora? Já era quase meia noite, não era mais hora de jantar e eles estavam saindo de casa.
- Será que vão dançar?, pensei comigo.
Em dois minutos tomei a decisão acertada: também vou sair. Meu filho estava dormindo no quarto dele e a empregada, no dela. Eu podia sair.
- Nada de tristeza, pára de drama, faça-me o favor, disse para mim mesmo.
Rapidamente tratei de tomar um banho e fazer a barba e lá fui eu, meio a contragosto também curtir a noite. Agradeço aos dois até hoje pela força que me deram sem saber aquela noite.

Luiz Theberge Nóbrega nasceu em 26 de maio de 1912 em uma família abastada. O pai havia feito fortuna trabalhando como advogado em Manaus durante o ciclo da borracha. Naquele tempo ele ganhava tanto dinheiro que durante anos manteve casa em Lausanne, na Suiça, para onde ia com a esposa e os filhos. Ficavam seis meses lá e seis meses no Brasil.

Foi durante uma dessas viagens que Luiz nasceu nessa cidade européia e contava isso sorrindo, como a primeira de suas façanhas. Quando o plástico e outros tantos derivados do petróleo consolidaram seu lugar no mercado e a borracha gradualmente foi perdendo seu status de máquina da economia brasileira, seu pai resolveu voltar para o Rio de Janeiro. Poucos anos depois de seu retorno, ele aceitou o conselho de um amigo e investiu todo seu patrimônio em uma fazenda de café na região de Rezende, no sul fluminense.

Esse foi seu grande erro por que como não sabia nada das manhas da agricultura dessa rubiácea, em poucos anos perdeu tudo que tinha. Ficou pobre. Dessa experiência seu pai tirou um ensinamento que passou para os filhos: nunca ponha todos os seus ovos em uma única cesta. Falida, a família se viu obrigada a se mudar para um local então considerado longínquo e inóspito no Rio de Janeiro, a praia de Ipanema. Naquela época o chique era morar no centro da cidade ou até o Flamengo. Só ia buscar pousada naquelas paragens da zona sul as famílias menos abastadas.

Luiz e Galy nunca quiseram ter filhos. Por opção viveram exclusivamente um para o outro e rechaçaram todos que tentaram se interpor entre eles. Nas palavras da própria Galy, por duas vezes nos anos quarenta ela engravidou e “tivemos que agir rápido”. Nunca percebeu dentro de si o menor sentimento maternal e, para se manter coerente com suas idéias, fez dois abortos numa época em que ninguém falava sobre isso.

Um dia Luiz me chamou pedindo que eu descesse lá correndo. Prevendo o pior, pedi minha empregada que descesse comigo. No quarto do casal, escuro e abafado por janelas e pesadas cortinas de veludo jazia Galy em cima da cama. Abri portas e janelas e percebi que estava viva, porém respirando com muita dificuldade. A perna esquerda estava inchada e do pé merejava um líquido incolor. Perguntei o que era aquilo e ele me explicou que há duas semanas eles estavam indo para a zona sul de ônibus quando o motorista deu uma freada brusca, e como estavam de pé, Galy caiu arranhando profundamente o tornozelo esquerdo em um parafuso de um banco. Ela não quebrou nenhum osso, mas ofendida que estava pela sua queda, resolveu vir para casa e descansar. Apenas. Recusou médico, hospital, curativo e farmácia. Não quis tratamento algum e o proibiu de buscar ajuda. Até que, vendo o estado em que ela se encontrava, ele finalmente teve coragem de contrariá-la e veio me chamar.

Pedi então que a minha empregada vestisse nela outra roupa, pois aquela estava imunda e imediatamente a levei para o hospital. Como não podia andar, peguei-a no colo e subi as escadas e a coloquei no fusca. O ferimento não tratado havia aberto uma porta para infecção e a perna estava toda contaminada. Foi tratada com antibióticos fortes para o eczema que se alastrara pelos membros inferiores, mas já estava em septicemia. No estado de suspensão de lucidez, de repente só falava em alemão e as enfermeiras e médicos não podiam se comunicar com ela.

- Quando eu morrer, disse, quero que você me jogue no mar ou na floresta. Não quero ser enterrada junto daquela família de vespas do Luiz. Não deixe isso acontecer.
- Tá bom Galy. Mas pense na mão de obra que isso vai me dar. Além disso, posso ter problemas com a polícia se atender a seu pedido.

Rimos à beça com aquele papo absurdo em alemão no
meio de dezenas de outros pacientes alojados em camas contíguas na geral do hospital, que assistiam boquiabertos à nossa conversa.
Assim, passei muitas horas ao seu lado tentando oferecer conforto e ajudar de alguma maneira. Ficou apenas quatro dias no Sousa Aguiar e faleceu.
Depois que ela se foi, ele ficou muito mais próximo de nós do que havia estado nos últimos quatro anos. Passava a maior parte do dia espichado em uma espreguiçadeira ouvindo aquelas músicas tristes da Radio MEC. Em que estaria pensando? Convidado, vinha todos os dias se sentar na minha varanda e costumávamos conversar por longas horas. Tinha cadeira cativa sentado à minha direita na sala de jantar e adorava divertir meus convidados recitando Manoel Bandeira de cor e de pé, copo na mão.

Bebia o que todos estavam bebendo e não reclamava de nada. O convidado ideal. Luiz deixava meus amigos gays totalmente à vontade para fazerem suas piadas picantes e ria conosco às gargalhadas, sem o menor pudor, sem um traço de preconceito. Seu cabedal de histórias e fatos passados parecia não ter fim e eu os ouvia sempre com grande interesse e atenção. Sempre tomávamos vinho, que é para molhar a palavra, como ele sempre dizia. Ele sobreviveu ainda um ano a sua esposa e falava demais nela e de como tinha tido uma vida perfeita a seu lado, que sorte a vida tinha lhe concedido em encontrar a mulher perfeita.

Um dia fomos Luiz e eu à igreja Ortodoxa Russa de Santa Teresa levar de presente uns quadros que havia na parede de sua casa desde que a família imigrou da Estônia, há quase um século. Tratava-se de cinco quadros de santos da igreja ortodoxa, que ele sempre odiou. Disse que lutou durante anos a fio para retirá-los da parede. Tudo em vão. Venceu a maioria e os quadros ficaram. Lembro-me bem de um deles: era um quadro de fundo falso onde havia um Cristo de rosto contorcido de dor, entalhado em metal, provavelmente prata, envolto em vasta cabeleira humana. Realmente era um horror, mas certamente havia valor histórico e econômico naquela peça rara. O pároco, vendo os quadros, deu um chilique e mandou retirá-los imediatamente de sobre a mesa de jacarandá com medo dos cupins.
- Tirem já esses quadros de cima da mesa. Isso tudo é lixo. Não quero que os cupins destruam o patrimônio da igreja.

Embora tivesse odiado os quadros por mais de sessenta anos, Luiz ficou revoltado com a falta de sensibilidade do padre. Meteu os quadros de volta na sacola de plástico e descemos de volta a rua em silêncio. De repente ele falou:
- O padre me deu uma ótima idéia. Ele disse que é lixo. Tem razão. É lixo mesmo e é para lá que eles vão. Vou jogar tudo no lixo hoje mesmo, disse com raiva.
- Luiz, não quero me meter, mas esses quadros devem valer uma grana. Não quer tentar vender e passar eles nos cobres?
-Não preciso de dinheiro. Agora eu quero é jogar no lixo. Espera comigo o caminhão?
- Mas Luiz, pense um pouco mais, tentei argumentar.
- Angelo, você não pode me negar o prazer de jogar no lixo esses quadros horrorosos que eu odiei a vida toda. Hoje eles vão.
Não tive escolha. Às cinco horas parou o caminhão da Comlurb na porta de casa, Luiz se aproximou quando a pá estava no alto e jogou lá dentro as duas sacolas contendo cinco quadros de santos da igreja ortodoxa russa do século xix que poderiam valer uma fortuna. Quando a pá desceu, moeu e engoliu os quadros eu baixei a cabeça, em respeito. Naquele momento me lembrei de uma cena do filme Titanic em que a personagem de Rose, já velhinha se debruça no beiral do navio e atira ao mar uma pedra preciosa que para ela não tinha preço. Aqui o valor simbólico era ao contrário, mas os opostos se equivalem. Eu tinha que respeitar o desejo dele, e assim o fiz.
Antes de entrarmos em casa ele disse:
- A casa é sua.
- Como?
- Você fica com a casa quando eu morrer.
- Luiz, depois a gente fala sobre isso, você está nervoso, respondi depois de alguns instantes.
Na semana seguinte ele tornou a falar no assunto e conversamos mais abertamente acerca de sua oferta.
- Quando eu morrer, disse, peço apenas que não me deixe apodrecer sozinho aqui, pode pegar a chave e ocupar minha casa.
- Fique tranqüilo, isso não vai acontecer. Não vou deixar você apodrecer aqui. Eu moro em cima. O cheiro ficaria insuportável depois de uma semana.
- Falo sério sobre a casa. Galy e eu pensamos em deixar para a Igreja em que nos casamos em 1940, mas aquele padre me dá nojo. Nunca gostei dele. Padres me dão nojo. Será que eles próprios acreditam nas mentiras que falam? Quando meu pai morreu, mamãe chamou um padre para encomendar o corpo. Ele trouxe um auxiliar não sei para que. Quando entrou, parou junto à porta e cochichou ao seu ajudante: Já pagaram? Já pagaram? Eu ouvi aquilo e fiquei revoltado. Queria botar todo mundo porta fora, mas minha mãe não deixou.
- Já que quer me dar a casa, então vamos ao cartório fazer tudo direitinho. Vamos fazer um testamento, tudo nos conformes. Sua família pode aparecer de repente e me tirar de lá.
-Imagine! Isso não será necessário. Dos meus seis irmãos e irmãs, tenho apenas uma irmã viva que mora em São Paulo. Ela está muito bem de vida e jamais se importaria com essa casa velha.
- Ledo engano. No dia seguinte à sua morte eles aparecem do nada feito urubus e me põem na rua.
Ele riu e marcamos então a data de irmos ao cartório.

Poucos dias antes de seu aniversario de 95 anos ele sofreu uma queda na varanda e quebrou o quadril. Aparentemente ele estava cochilando sentado numa cadeira de plástico quando esta virou e ele caiu. Levei-o às pressas para o hospital e foi constatada a fratura. Não puderam operar imediatamente por que ele tinha pressão alta e os médios esperavam que ela se estabilizasse para então submetê-lo ao procedimento. O risco cirúrgico seria alto demais.
Uma semana depois ele expirou no Hospital Miguel Couto.

Quando morreu, Luiz já tinha deixado claro que estava mais do que pronto para ir. Como ele me disse, ele passou toda a sua vida do jeito que ele queria, escolheu seus empregos, passou 65 anos com a mulher que ele amava e nunca teve que fazer qualquer coisa de que ele não gostasse. Ele teve vários empregos na vida, disse não a ótimas propostas de trabalho, mas passou a maior parte de seus anos mais produtivos como um agente imobiliário. A vida toda escolheu empregos que não exigissem dele dedicação exclusiva ou tempo integral, pois queria estar livre para viajar quando quer que lhe desse na telha. Como ele sempre dizia, sua vida tinha sido uma festa constante.

Entretanto, depois Galy morreu, ele sentiu que a festa tinha acabado. Uma noite, enquanto saboreávamos uma garrafa de vinho na varanda aqui de casa, ele me disse sorrindo, embora seriamente, que ele sentiu que a vida tinha sido um grande baile. Mas que já tinha acabado. A pista estava vazia, todo mundo já tinha ido embora, as cadeiras haviam sido colocadas de cabeça para baixo sobre as mesas e a turma da limpeza estava ocupada com suas vassouras e baldes varrendo e limpando o chão para a próxima turma que viria curtir outro baile. Eu nunca vi este homem amargo ou ressentido de qualquer coisa.
- Todos os meus amigos estão mortos, meus pais e irmãos estão mortos, minha esposa está morta. E eu estou pronto para ir também, disse ele sem sinal de amargura.
Estou orgulhoso e grato à vida por ter sido escolhido como o depositário de todas essas histórias.

Em nenhum momento sua família esteve por perto quando precisamos dela. Eu ligava para São Paulo e Brasília, onde ele tinha parentes distantes e comunicava o estado de saúde de ambos. Avisados, ninguém veio aos enterros. Contrariando pela última vez o desejo de Galy, aquela história absurda de se unir à natureza na mata ou mar, Luiz, Terezinha, minha empregada e eu a sepultamos no São João Batista mesmo. Luiz concordou em não colocar seu corpo na sepultura de sua família. Um ano depois, Terezinha e eu fomos os únicos presentes ao enterro do Luiz, no mesmo cemitério.
Um mês exato após seu falecimento recebi a visita de um oficial de justiça com uma ação judicial contra mim impetrada por sua sobrinha, usando o nome de sua mãe viva, contestando a validade do testamento, me acusando de exercer coação irresistível contra vulnerável e requerendo para si a casa que o Luiz me deixou. Há quatro anos esse processo corre no tribunal do Rio de Janeiro e ainda não há sentença.

A moça do vestido de bolinha

Moro em uma casa centenária no bairro de Santa Tereza, Rio de janeiro. Eu estava procurando imóvel para comprar, pois o apartamento em que eu morava no bairro do Flamengo havia se tornado pequeno demais para minha família depois da adoção de Pedro Paulo. Um dia vi um anúncio de uma casa no jornal e vim ver, assim por esporte.

Assim que entrei na casa pela primeira vez senti que ela seria minha, de um jeito ou de outro. Trata-se de uma construção em estilo neocolonial do final do século XIX. Minha casa fica ao nível da rua, entretanto há dois outros andares sob ela, pois este bairro é situado sobre terreno bastante íngreme. O andar imediatamente inferior tem entrada também pela frente, mas o segundo andar no subsolo possui entrada por uma escadaria lateral, cuja servidão leva ao Bairro de Fátima, próximo ao centro da cidade.

A casa estava em péssimo estado de conservação, no osso mesmo, já que se encontrava fechada há muitos anos, mas senti que ela tinha potencial. Os antigos donos decidiram ir morar em um sítio no interior de Minas Gerais e para lá partiram, vindo raramente ao Rio. As paredes têm pé direito muito alto, 4,00m, o que permite que a brisa da noite possa correr e os cômodos fiquem arejados, mesmo na canícula deste trópico. O forro do teto havia despencado em alguns pontos deixando entrever as telhas de barro, não tinha luz nem água, pois os encanamentos e a fiação já haviam deteriorado dentro das paredes. As doze portas e as nove janelas de madeira não tinham trinco, algumas estavam soltas e carcomidas de cupim, outras faltavam vidro, enfim a casa precisava de uma reforma geral até que estivesse em condições de ser habitada.

Foi preciso muita coragem e determinação para tomar a decisão de comprá-la. Meus amigos, como sempre, diziam que eu estava louco e quando minha mãe e minhas irmãs vieram vê-la rezaram pedindo a Deus que não me deixasse fazer tamanha loucura. Mas aparentemente Ele deixou, pois acabei comprando-a. Um belíssimo assoalho original de pinho de Riga forra todos os cômodos. Ela tem personalidade, as paredes estão impregnadas de história, um corredor externo circunda toda a ala oeste da casa. Para esse lado abrem-se todas as portas e janelas e é também dali que se vê o centro da cidade, inundado de luz solar matutina. A vista é deslumbrante. Ao longe se vêem o prédio da Petrobrás e a Catedral Metropolitana na Avenida Chile, um pouco mais para a esquerda se avistam o RB1, o relógio da Central do Brasil, o Palácio Duque de Caxias e vários outros prédios históricos no cenário da cidade cujos nomes eu nunca soube.

Vim aqui diversas vezes antes de fechar o negócio, sempre acompanhado do corretor de imóveis. Numa dessas ocasiões eu estava acompanhado de meu amigo Ézio e queria ouvir sua opinião. Havia trazido também meu filho, à época com cinco anos. Enquanto nos sentávamos no terraço conversando sobre a compra da casa o menino corria solto, explorando cada quarto, na maior alegria.

Entretido na conversa, mal pude notar quando alguém bateu no portão. Era a vizinha de baixo, dona Galy Karaburdji Nóbrega reclamando do barulho de criança correndo dentro de casa. Abri o portão e ela então me contou que a casa não tem laje entre os andares. Existem duas paredes laterais espessas sobre as quais se estendem trilhos de trem. Tanto o assoalho do andar superior quanto o forro do andar inferior são instalados diretamente sobre eles, o que, segundo ela, transforma o assoalho num tambor de ressonância.
- Você deixa cair um alfinete no chão e lá embaixo é um trovão, disse ela.

Como eu fui rude com ela! E como me arrependo disso! Embora a essa época ela já fosse uma senhora de oitenta e seis anos de idade pedi a ela gentilmente que esperasse até que eu comprasse a casa para só então começar com as reclamações. Sabiamente, ela apenas sorriu e foi-se embora. Meu amigo me repreendeu, e de repente caiu a ficha que eu tinha sido grosseiro. Mas ela já havia descido. Como já caía a noite, fechamos a casa e fomos embora. Pretendo falar desse importante personagem na minha vida em outro momento.

No dia seguinte fechamos o negócio. Após a assinatura dos papéis, a antiga proprietária me convidou para me trazer até a casa e mostrar os segredos dela, onde ficavam o relógio de luz, o hidrômetro, o medidor de gás, os registros, interruptores e mais um monte de segredinhos que toda casa possui. Quando terminou de explicar os detalhes técnicos, me puxou de lado e confidenciou:

- Não sei qual a sua religião, nem sei se acredita em espíritos, mas devo te dizer que dentro desta casa “mora” um espírito. Não tenha medo, pelo que me contaram trata-se de uma moça jovem, mas nunca fez mal a ninguém. Então, se eu fosse você, eu faria uma prece no momento de se mudar para cá. Peça a ela permissão para entrar e morar em sua casa, diga que pretende morar aqui em perfeita paz, respeito e harmonia com seu espírito de luz.

Como meu pai, eu também gosto de chocar as pessoas revelando que sou ateu. Também como ele, eu só acredito no que vejo e mesmo assim olhe lá. Tem coisas que mesmo eu vendo, não dá para acreditar. Mesmo na época em que eu, contrito, ainda insistia em rezar com joelhos no chão, a dimensão divina sempre me escapou. Não conseguia me livrar da estranha impressão de estar falando ao telefone sem interlocutor do lado de lá da linha. As energias sutis invisíveis e imensuráveis tão propaladas, defendidas e apontadas pelos crédulos como prova cabal da existência de um mundo intangível, para mim não passam de manifestações psiquiátricas. Devido a reações histéricas que desde muito cedo eu percebi nas pessoas quando falo desse assunto, eu resolvi só falar desta minha dobra se isso me for perguntado. Olhei fixamente para a mulher e disse:
- Dona Fulana, acabo de lhe fazer um cheque vultoso quitando à vista o valor que senhora pediu pelo imóvel. Me desculpe a franqueza, mas se alguém precisa de permissão para continuar morando aqui, é ela que deve pedir a mim.
Ela fez o sinal da cruz e olhou para mim com um olhar que eu interpretei como sendo um misto de compaixão e desprezo. Mesmo assim pedi a ela que me revelasse mais detalhes sobre a tal moradora da agora minha casa.

Refeito o susto, ela se sentou e me disse que alguns amigos de seus filhos, em momentos diferentes, avistaram o vulto de uma moça jovem, pálida, beirando os vinte anos de idade, cabelo preto amarrado em coque atrás da cabeça, trajando um vestido marrom escuro com mangas curtas e bufantes, com umas bolinhas amarelas, de acordo com alguns, ou umas florezinhas amarelas, de acordo com outros. Essa moça caminha lentamente no corredor interno da casa, sempre na direção da sala para a cozinha, a passos lentos, sapato baixo, sem fazer qualquer ruído e sua visão é tão real e insuspeita que algumas das pessoas que a avistaram chegaram a se dirigir a ela. Mas ela nunca respondeu.

Nisso eu me lembrei de um fato ocorrido numa dessas visitas que fiz à casa antes de concretizar sua compra, quando eu estava acompanhado de meu namorado. Já era fim de tarde e tínhamos que nos apressar para ver o imóvel, pois como estava fechado há muito tempo, a luz havia sido cortada. O corretor abriu toda a casa e nos pusemos e percorrer seus cômodos rapidamente fazendo planos para depois da mudança. Quando ficou escuro, fechamos todas as portas e janelas e saímos. Quando chegamos do lado de fora Marcelo fez questão que esperássemos a moça sair para podermos ir embora.
- Que moça? perguntou o corretor.
- A moça que vi lá dentro, vendo a casa conosco. Não está mostrando o imóvel para outra pessoa também?
- Não. Só vocês.
Marcelo estava tão convencido de que alguém estava sendo trancado na casa que tivemos que voltar e percorrer todos os cômodos com fósforo na mão, procurando por ela. Muito contrariado ele por fim aceitou entrar no carro para irmos embora.
Ao ouvir a descrição da antiga proprietária, olhei para Marcelo e ele estava pálido, com os olhos arregalados. Ele me puxou para o canto e sussurrou:
- Você vem morar aqui sozinho. Eu é que não venho. É exatamente a moça que eu vi na casa. Lembra-se? Tenho certeza!
Só depois de muito explicar, insistir e assegurar, ele finalmente concordou em se mudar para cá quando a reforma terminou.

Os meses se passaram e não se teve notícia da tal moça até que uma noite dei uma festa, com recital de piano, canto e declamação de poesia. A casa estava lotada de amigos e amigas que jantaram e curtiram junto o evento. Acabou ficando tarde e um convidado resolveu ficar e dormir aqui. Como não temos quarto de hóspedes, ele se aninhou no sofá da sala depois que todos foram embora e fomos dormir. Na manhã seguinte, conversávamos animadamente à mesa do café da manhã sobre o jantar e o sarau quando ele perguntou:
- Quem mais dormiu aqui?
- Ninguém, por quê?
- Por nada. Quando eu estava quase dormindo, já com a luz apagada passou uma moça no corredor e eu a cumprimentei, mas ela só me olhou friamente e não respondeu. Metida! Quem era?
- Ninguém. Só um fantasma.
Eu tive então que contar a ele a história, mas ele infelizmente não achou graça nenhuma e jurou nunca mais vir dormir aqui.

De certa forma me sinto enciumado das pessoas que tiveram esse contato imediato de segundo grau com a tal aparição. Ora, mesmo sendo eu o dono da casa onde ela circula nas horas escuras da madrugada, ela nunca deu o ar de sua graça para mim. Quando vou ao banheiro de madrugada não acendo as luzes para não acordar totalmente e atravesso o salão de jantar com os olhos bem abertos, tentado vislumbrar sua efígie no lusco-fusco da noite. Nunca dei a sorte. E se um dia a vir, humildemente pedirei apenas uma entrevista em troca da permissão para sua permanência aqui, e mais nada.

Muitos meses depois do sarau eu estava dentro do carro esperando para dar uma aula na casa de um aluno. Eu havia chegado cedo demais e não queria tocar a campainha antes da hora combinada. Estava ouvindo rádio e observando o movimento dos moradores naquela ruela escura do bairro do Estácio, quando reparei que algumas pessoas entravam em um portão entreaberto de uma casa bem em frente ao endereço a que eu me destinava. Curioso como eu só, fui até lá e perguntei a uma das pessoas que entravam do que se tratava.
- O que é isso aqui? Perguntei.
- É um centro espírita kardecista, a senhora respondeu gentilmente.
- Será que a gente pode entrar para dar uma olhadinha?
- Claro, seja bem vindo.
Por pura diversão, em poucos minutos lá estava eu, sentado numa roda de pessoas de boa aparência e cheias de boas intenções e se não fosse pela seriedade com que discutiam o imaginário, sempre respaldadas por uma fé científica, ninguém diria que eram delirantes.

Quando fui instado a me apresentar e a dizer o motivo de minha visita, acabei perguntando o que poderiam me contar sobre a tal moça de vestido de bolinha. Depois que dei todos os detalhes de que me lembrava, o homem que comandava a reunião, fechando os olhos como que recebendo um fax do além, me disse que se tratava de uma moça que havia vivido na minha casa há muitos anos e que morreu aqui dentro. Ela teria muito amor por este lugar e que estaria tendo dificuldade em seguir seu caminho para o além. Não sei se foram exatamente estas as suas palavras, mas tantos anos depois é assim que me lembro. E foi mais além, arriscou seu nome: Hilda, e causa mortis: pneumonia. Ouvi aquelas informações como quem assiste a filme de ficção. Com interesse e distanciamento.

Poucos dias depois, desci para tomar um cafezinho com a Dona Galy, que a essa altura já havia se tornado minha amiga de infância e perguntei se ela conheceu a tal moça, já que morava aqui embaixo, na mesma residência há 85 anos. Sem fazer esforço algum, lúcida que era aos 88 anos, ela recontou de uma jovem que era sua amiga de juventude que realmente morou aqui e morreu mocinha, fraca dos pulmões em 1938. Ora, fraca dos pulmões me soava como um pleonasmo para pneumonia ou tuberculose, concluí meio sem graça.
- Ela morreu na minha casa?
- Não. Morreu no Quarto Centenário.
Ufa! Respirei aliviado, como se isso fizesse alguma diferença. Afinal, a morte é apenas a diferença entre estar e não estar mais, segundo José Saramago.
- Por acaso, essa sua amiga de juventude se chamava Hilda? Insisti.
- Não. Era Gilda. Por quê?
- Por nada, menti. Um frio percorreu minha espinha.
Terminei o café e subi para ligar para minha analista.