26 março 2008

Espelho, espelho meu...

Há poucos dias estava surfando pelos canais de televisão, quando, de repente, me deparei com uma entrevista com o ator darling da vez Rupert Everett. Mr Everett, como alguns talvez possam não estar se recordando fez filmes de grande sucesso ao lado da mega star Julia Roberts - O Casamento de Meu Melhor Amigo - e estrelou o festejado “Sobrou para Você”, em que aparece ao lado de Madonna, entre outros.

Trata-se de um ator inglês de quase dois metros de altura, que faz uma bela imagem na telona, (embora pessoalmente nem tanto) exibindo um queixo quadrado, olhos expressivos, boca bem cortada e lábios grossos. Ele despontou no teatro em Londres nos anos 80 ao lado de Kenneth Branagh colhendo prêmios e arrebatando crítica e público e ao mesmo tempo incendiando paixões entre admiradores de todos os sexos. Em pouco mais de dez anos, saiu do anonimato absoluto para fazer fama e fortuna (seu cachê atualmente está em torno de U$8.000.000,00 por filme) e vez por outra pode ser visto nas cerimônias de entrega do Oscar da Academia ao lado de beldades como Madonna, Michelle Pfeiffer, Wynonna Ryder e a própria Ms Roberts, que é sua amiga particular. Já vi pela televisão estrelas do naipe de Susan Sarandon cobri-lo de elogios dos mais envaidecedores. Os jornais cariocas informaram que ele esteve no Rio para passar Reveillon e foi visto, incógnito, na praia gay de Ipanema. Não sei se para seu deleite ou horror, lá passou praticamente desapercebido.

O homem realmente é muito belo e inteligente, sabe o que está dizendo. E surpreendente. Faz alguns anos, ele resolveu revelar numa entrevista para um grande canal americano, cujo nome agora me falha uma peculiaridade de sua personalidade: ele é homossexual assumido. Dito assim isso pode parecer bastante corriqueiro numa página GLS, e é. Não é segredo de ninguém que Hollywood está coalhada de gays e lésbicas, alguns dos quais enfrentando tremenda pressão dos grupos de gays e lésbicas que insistem que seu coming out seria de suma importância para a causa homossexual. No entanto, trata-se do primeiro ator de projeção internacional que faz tal revelação. Perguntado por que resolveu relevar ele próprio esse detalhe que poderia, sozinho, derrubar qualquer promissora carreira naquela industria tão homofóbica ele disse que o fez simplesmente porque não quer ser constrangido por um repórter que lhe jogue esta pergunta na cara sem aviso prévio. Não quer dar o prazer do furo de reportagem para ninguém. Como Madonna e eu, Mr Everett é sua própria Kitty Kelly.

Mas o que talvez tenha me chamado mais atenção foi o fato de ele ter dado essa entrevista abraçado ao seu cão. Não tenho a menor idéia de que raça possa ser, mas me lembro de ser um bicho tão grande que se ficasse de pé, talvez chegasse à altura do dono. Era praticamente um bezerro negro, exibindo uma bela e aparentemente cara coleira de ouro e brilhantes.

Não sou amante de animais, mas aquele cão era realmente maravilhoso com seu pelo curto e brilhante. Ao final do bate-papo, quando perguntado sobre sua vida amorosa ele disse que, aos 43 anos, nunca se apaixonou, nunca teve namorado, nunca dividiu sua vida com ninguém, nunca foi paixão de ninguém, mas sempre o tolo apaixonado e aquele cão é o que dele mais próximo havia chegado o amor. De repente, aquele homem imenso se transformou. Uma extrema fragilidade lhe escapara aos olhos, e, com ternura, abraçou seu cão, abaixou os olhos e a entrevista terminou.

Isso talvez nos leve a algumas reflexões sobre poder, beleza, popularidade, fama, dinheiro e etc. De que valem todas essas coisas se nos sentimos sós? Creio que se não lhe fizesse falta alguma o amor, Mr. Everett nem teria se referido a ele. Poderia ter dito simplesmente que nunca teve ninguém e ponto, mas o cão vem lhe suprir que algo de que ele sente falta. Então, quando você for ao cinema da próxima vez e vir um artista de grandeza estelar e sonhar com uma vida de pretenso glamour nem que seja por um dia, não se esqueça de que o ônus e a delícia de sermos quem somos, só o próprio sujeito pode saber. E olhe lá.

Dancing Queen

Há umas duas semanas fui ao aniversario de um amigo que comemorava com a turma em um bar de freqüência alternativa - seja lá o que isso possa significar - no Rio de Janeiro, chamado Boy Bar. Fazia muito tempo que eu não ia a bares e a perspectiva de sair da toca me fez torcer o nariz, mesmo por que estou jubilado da naite há pelo menos dez anos, e morro de preguiça depois que a noite cai. Mas não podia dizer não. Não é um bar diferente das centenas de assemelhados em que já entrei nos vinte anos que freqüentei o circuito gay em praticamente todas as cidades por que passei e três continentes: esse também fica cheio de pessoas jovens buscando se divertir e conhecer gente. Em um certo momento me senti meio fora da faixa etária do local, a maioria dos circunstantes aparentava ter a metade da minha idade, mas nem isso me fez ir embora.

Bem em frente à entrada tem um telão suspenso no ar, em cima de um balcão onde fica o vj, que projeta vídeo-clips de canções que fizeram sucesso nos anos 70 e 80. Não sei se ele toca esse repertório toda noite, mas essa foi um tremendo revival da época em que eu tinha dezesste a vinte e sete anos, quando eu ainda acreditava na possibilidade de uma felicidade incondicional, um estado de graça que os anos e a experiência já se encarregaram de me fazer crer que não existem. Não sei exatamente como é que a música toca as pessoas de uma maneira geral, mas em mim ela mexe nas lembranças de modo violento, arrancando raízes, revolvendo o lixo e as gavetas, revirando caixotes, trazendo de volta cheiros e sensações, lembranças boas e más e entupindo as ruas, como nas enchentes.

Num determinado momento eu estava junto do meu companheiro, encostados numa das paredes da casa quando de repente começou a tocar Dancing Queen, do extinto grupo sueco Abba. Formado por volta de 1970-1972, contava com músicos e compositores de nomes impronunciáveis Björn Ulvaeus e Benny Andersson, e as vocalistas Agnetha Fältskog e Anni-Frid Lyngstad (também chamada Frida). O Abba, para os que nasceram mais tarde, foi sucesso absoluto de meados dos anos 70 ate 81. Depois, por causa de uma serie de ingerências e erros grosseiros, entre eles o de ganharem dinheiro demais e de se casarem entre si para se divorciarem logo em seguida, o grupo se separou definitivamente, e nem todo dinheiro do mundo os fez cantar juntos novamente, feito os quatro de Liverpool.

A canção de que falo fez muito sucesso e estourou no mundo todo feito uma bomba em 1977. Então, quando vi o vídeo e ouvi a canção depois de tantos anos, foi como se a cortina do tempo se houvesse aberto na minha frente e eu vi ou sonhei ou tive uma epifania com uma cena que marcou minha vida para sempre. Os caminhos da memória... músicas, cheiros, as madaleines de Proust ... parece que estamos sempre trilhando um caminho meio obscuro, meio fragmentado e caótico dentro de nós mesmos. Como dizia Guimarães Rosa, são esses "crespos do homem"...

Em julho de 1977 eu morava em Juiz de Fora, cidade o interior de Minas Gerais, tinha dezessete anos, como a dancing queen da musica e estava descobrindo a vida devagar, comendo pelas beiradas. Nesse mês houve um festival de teatro na cidade e me lembro de grupos que vieram de diversas partes do Brasil apresentar peças em única récita. Foi a primeira vez que fui a um teatro fora do ambiente estudantil, e como era perto de casa e de graça, não perdi nem uma apresentação.

Naquela noite, antes de ir para a boate com uns amigos de colégio, eu havia assistido a uma peça que mexeu demais comigo. Em seguida, ainda abalado pelo impacto do espetáculo, me encontrei com uns rapazes e garotas do curso técnico que eu freqüentava e saímos para dançar.

A peça a que me refiro, apresentada por um grupo vindo de Pouso Alegre, sul de Minas, me tocou de maneira que faria toda diferença dali em diante. Era Um Bonde Chamado Desejo, do dramaturgo americano Tennessee Williams (1911-1983), que ficou conhecido pelos seus diálogos envolventes e temas que - para o seu tempo - pareciam muitas vezes estranhos e chocantes. Williams transmitia vividamente as tensões sexuais e violência reprimida das suas personagens geralmente com compaixão bem como com ironia. Muito mais tarde li ou assisti outras peças de sua autoria como Orpheus Descending Doce Pássaro da Juventude, Cat on a Hot Tin Roof, The Glass Menagerie, entre outras pérolas. Claro que naquela época eu ainda era, e às vezes acho que ainda sou, imaturo para compreender Tennessee Williams. Por isso nem sei se consegui prestar atenção ao enredo daquele drama de tão fascinado que fiquei com o ator principal, chamado Carmine Acconcia.

Ele tinha aproximadamente trinta e quatro anos e era o homem mais bonito que eu jamais vira. A calça de lycra branca que ele usava na peça era tão apertada que deixava-se lhe adivinhar a religião e a jaqueta de couro preto fazia lembrar James Dean. Quando me lembro dele penso em beleza de príncipe de estória infantil, como a Fera, transformada em beldade pelo beijo redentor de Bela. De tão lindo ele pode a qualquer momento, e sem causar espécie, simplesmente ascender aos céus envolto em melífluos lençóis de linho bordados, como Remédios, a outra bela, essa de GGMarques. Não me lembro se era bom ator, nem me lembro do que se tratava a peça, mas ainda tenho seu sorriso tatuado na lembrança. O rosado de sua tez, o azul de seus olhos e seus cabelos loiros e cacheados, exatamente como a seda azul do papel que envolve a maçã, trinta anos mais tarde ainda me assombram. Certamente estava enfeitiçado por ele e, ao final da apresentação, também irremediavelmente apaixonado.

Na boate tocava o hit do momento Dancing Queen e eu dançava e cantava alegremente com a turma quando vi o tal rapaz em carne e osso e sorriso dançando quase ao meu lado. Viajei que ele estava olhando pra mim. Estava ali feito um espectro quase ao alcance da boca. Fiquei gelado, coração acelerado, sangue explodindo na jugular, pensamentos rodopiando na cabeça, a cabeça em maresia e eu só fazia cantar bem alto a plenos pulmões uma oitava acima do que minha garganta pode suportar you can dance you can jive having the time of your life uh uh uh See that girl watch that scene dig in the dancing queen . Eu vou enlouquecer aqui, pensei. You are the dancing queen young and sweet only seventeen (ela é eu e eu sou ela eu também tenho dezessete anos e estou do lado desse cara lindo e estou apaixonado por ele). Ó minha virgem Dancing queen, feel the beat from the tambourine , a música ia subindo num crescendo mais e mais até o yeah yeah yeah (minha Nossa Senhora me Ajuda, ele está olhando para mim o que é que eu faço?) You can dance you can jive having the time of your life, ela parecia dizer isso. See that girl watch that scene dig in the dancing queen.

De repente ele foi ao banheiro e meu coração parou. Parei de respirar, meu cérebro parou, morte cerebral, e morri por uns dois ou três minutos enquanto pensava no que fazer. Oh! minha Nossa Senhora dos Afogados, me diga o que fazer, supliquei quase de joelhos no meio da pista. Sabe o que ela me disse? O óbvio: “Vai atrás! Corre antes que ele volte!”

E eu fui. Entrei no banheiro feito um boi bravo, feito Bethânia entrando no palco para cantar Carcará, ainda sem respirar e lá estava ele, já lavando as mãos na pia. Eu parei petrificado do seu lado e fiquei olhando pra ele, sem dizer palavra. Ele olhou pra mim com calma, enxugou as mãos na toalha de papel, depois se virou para mim, segurou meu rosto com as duas mãos e me deu um beijo na boca, sem língua, só lábios. Deve ter lido algum sinal de desespero, desalento, desamparo sei lá nos meus olhos e me beijou, talvez por compaixão, talvez pra se divertir. Nunca vou saber. Não toquei nele, os braços permaneceram estendidos, as mãos geladas. Petrificado estava e petrificado fiquei quando ele sorriu, virou-se e saiu do banheiro para nunca mais. Deve ter ido embora em seguida por que não o vi mais.
Momentos depois, sai do banheiro com cara de paisagem e ninguém perguntou nada. Sem fazer drama nem dar explicações, disse que estava cansado e fui para casa. Na cama, não pude dormir e passei o resto da noite tentando decidir se a vida era sonho ou desgraça. Nunca consegui descobrir.