23 outubro 2010

I’m a bluff

Em 1979, aos dezoito anos de idade, saí de casa e fui estudar na Universidade Federal de Viçosa. Como morar em outra cidade, longe da família, significava ter que trabalhar, fui ao IBEU local e pedi para dar aulas. Eu havia completado apenas o ciclo básico, quando era adolescente, mas a necessidade não me deixava opções. O diretor foi bastante gentil e disse:
- Se você não se importar em fazer um teste, estou precisando de alguém para me substituir numa turma de iniciantes.
- Claro que não!, respondi pensando que seria uma prova escrita. O pior que podia acontecer era eu não passar, pensei, já que eu mal sabia a língua.
Pediu que eu o seguisse, entrou em uma sala com doze alunos, me entregou um livro em cuja capa se lia English 900 e se sentou na última carteira com uma prancheta e um lápis na mão.
- Só demos uma aula. Paramos na página cinco. Pode começar daí, disse.
Sem entender – e já entendendo – comecei a apagar o quadro negro, enquanto rezava silenciosamente uma Salve Rainha. Naquela época tinha quadro negro nas escolas de inglês, e eu ainda rezava Salves Rainhas em momentos de grande aperto. Eu nunca tinha visto aquele livro e jamais havia dado uma aula na vida.
Ao final da aula ele disse:
- Tá meio verde, mas acho que pode ser, sim. Terça e quinta às 19h?
- Claro!
Desci as barulhentas escadas de madeira do sobrado antigo pulando os degraus de dois em dois e quando cheguei na calçada ele me gritou.
- Ei, rapaz! Qual é mesmo o seu nome?
- Angelo!
- Não quer saber quanto vai ganhar?
- É mesmo. Quanto, heim? Gritei de lá.
- Vinte cruzeiros por aula.
- Tá ótimo. Obrigado.
Rapidamente calculei que esse dinheiro daria justo para pagar o alojamento e os tíquetes do refeitório por um mês. Fui para casa sorrindo.
E foi dessa maneira canhestra que comecei na profissão: assustado, despreparado e sem saber ao certo o que estava acontecendo.

No ano seguinte, mudei-me para uma casa velha num bairro pobre de Viçosa, prosaicamente chamado Cantinho do Céu. Embora não fosse uma favela nos moldes que os sociólogos definem e que eu considero como o subproduto vergonhoso da má distribuição de renda nas cidades grandes, o Cantinho tinha em comum com elas várias características, como a falta de um monte de coisas, falta de saneamento básico, falta de calçamento e serviços em geral. Mas o lugar não era violento, não se falava em drogas, facções criminosas nem em dono do pedaço. Era só pobreza mesmo, pobreza por todos os lados e uma imbatível poeira fina avermelhada que tudo cobria dentro de casa quando fazia sol, e barro que impedia a passagem de carros, quando chovia. Houve dias de não se poder ir à aula por estar a estrada intransitável. Eu ia de bicicleta para a escola que ficava a oito quilômetros de distância do Cantinho, e em tempos de chuva tínhamos que ir à pé, subir um morro até o asfalto e lá pegarmos carona para a cidade. Muitos alunos universitários moravam ali, em casinhas igualmente pobres e passamos tempos difíceis naquele inicio de anos 80.

No Rio, Cazuza, Frejat, Lobão et caterva enfiavam o pé na jaca, curtindo a vida adoidado, muita praia, muita grana, muita festa, os bastiões do esforço brasileiro da tríade sex, drugs and rock’n’roll e compunham canções sofríveis que estranhamente gozavam de grande sucesso entre as massas néscias. Em Viçosa, minha turma de amigos metia a cara nos livros de física e cozinhava “sopas” para não ir para a cama em jejum. No quintal de minha casa tinha um cerca de bambu velhíssima, caindo aos pedaços, tombada sob o peso de um luxuriante e pródigo pé de chuchu. Na panela cheia de água, jogávamos dois cubinhos de caldo Knorr e o que mais tivesse na hora. Geralmente era chuchu mesmo, ou uma planta silvestre que tinha muito por ali que eles chamavam de lobrobró. Comíamos aquela iguaria em volta da mesa com pedaços de pão novo ou velho, igualmente, mas sempre com grande entusiasmo e fazendo troça da situação de penúria em que nos encontrávamos. Meu amigo e vizinho Jairo nos convidava para ir à sua casa comer suflê de jejuá. Todos riam. Com os cotovelos apoiados no peitoral de madeira da janela dos fundos da casa pobre do Cantinho do Céu eu assistia o sol preguiçosamente se pôr vermelho por detrás das montanhas de Minas Gerais e sonhava com dias melhores. A idéia da transitoriedade das coisas sempre esteve muito presente na minha vida associada à certeza quase religiosa de que eu iria virar o jogo. Eu sabia que mais dias menos dias aquilo também passaria. Como passou. Jairo mora em Bonn há mais de vinte anos e se tornou um artista plástico de sucesso na Alemanha.

Com tempo disponível e angustiado pelo desejo de conhecer coisas inúteis fui pesquisar o tal de lobroró na biblioteca da universidade (não havia computadores) e descobri que Ora-pro-nobis (Pereskia aculeata), vem do latim "rogai por nós", e é uma cactácea, um cacto trepadeira, com folhas carnudinhas. Dizem que seu nome foi criado por pessoas que colhiam a planta no quintal de um padre, enquanto ele rezava: Ora pro nobis. O povo inculto não tardou em reduzir a expressão latina a seu equivalente sonoro brasileiro. É um vegetal rico em ferro, ajuda a curar anemias das mais graves. Também é usado no preparo da farinha múltipla, complemento nutricional no combate à fome, mas lá em casa era colocada só na sopa. Como possui 25,4% de proteínas, vitaminas A, B e C bem como, além do ferro, minerais como cálcio e fósforo é conhecida como "carne dos pobres".

Entre outros ofícios que tive, o ensino de inglês e alemão sempre foi minha principal fonte de renda. Num determinado momento da minha vida, já fui técnico em laticínios e engenheiro de alimentos formado, mas não deu certo. Nunca tive o perfil que a profissão exige e, a julgar pelo trabalho que tive para me formar, achava que trabalhar na área seria hipocrisia demais. Repeti várias matérias, tirava notas baixíssimas e sofri para passar nos Cálculos I, II, III e o numérico, álgebra linear, estatística, cinco disciplinas de Física e um monte de bioquímica. Dois dias antes da festa de formatura eu ainda não sabia se ia colar grau com a turma, estava dependurado em Físico-química. Para tirar a nota de que precisava para passar, tive que fazer um trabalho final, prova oral para uma banca de três professores da qual o meu não participava para finalmente poder provar que detinha algum conhecimento acadêmico sobre algo de que jamais precisei na vida.

Meu algoz se chamava José Carlos, era gay enrustido, casado com mulher e me odiava. Odiava a minha liberdade, as minhas roupas coloridas, minhas calças de lycra, meu cabelo comprido, minha joie de vivre e a minha transparência num meio tão hostil, competitivo e mesquinho quanto o universitário. Repeti sua matéria três vezes. Quando saiu a nota, comprei uma caixa de feux d'artifice e fui para o meio da praça comemorar, sozinho. Feito um alucinado soltei os fogos e dei pulos tipo gol do Brasil, proferindo gritos condizentes com a situação. Depois disso, aperfeiçoei as línguas que já falava na Inglaterra e Alemanha, e esses foram os melhores anos da minha vida. Claro, anos 80, vinte e poucos anos de idade e querendo de tudo provar. Foi o máximo. Quando vivi na Europa trabalhei como pude, o que aparecia eu fazia, de lavador de pratos e garçon de um restaurante elegante em Londres, a recepcionista de hotel e funcionário da limpeza de hotel em Munique. Lá, tomei conta de criança, dei aula particular de Português, empacotei farinha e até li jornal para velho cego dormir. Is it soft, or do you want more?

No Rio, trabalhei nas mais afamadas escolas de idiomas e já tive que usar métodos dos mais tradicionais aos mais teatrais para fazer aluno aprender a falar. Alguns davam sono, com aluno lendo um texto ridículo à página vinte e sete e o colega não sabendo onde a leitura parou, para poder continuar. Outros métodos eu considero verdadeiras transfusões de sangue. Em poucos minutos de aula a turma toda está com os nervos à flor da pele, com os ânimos elevadíssimos, o professor falando alto, estalando dedo, fazendo barulho com a boca, dançando, fazendo perguntas cretinas à velocidade de uma metralhadora, apontando na cara de uns e outros e praticamente implorando que falem. A sensação que se tem é que de repente pode estourar uma briga, um quebra-quebra ou um baile funk. Um horror. Espero nunca mais ter que fazer isso na vida.

Há uns vinte anos, entretanto, quando minha paciência já tinha esgotado dessa tarefa extenuante, resolvi parar de vez e procurar outra coisa para fazer. Assim, conversei com o diretor da escola onde dava aulas e avisei também aos meus alunos particulares que não dava mais. Nesse dia não levei livro texto e nem de exercícios, fui mesmo só para me desculpar e explicar os motivos pelos quais eu não continuaria visitando-os semanalmente. Como sempre a conversa foi em inglês e ao final do que talvez fosse uns três quartos de hora de animado papo um deles falou comigo:
- Se quiser voltar semana que vem para continuarmos a conversa...
- E você acha que isso é aula?
- Bom, não sei se podemos chamar de aula, mas eu gostei de praticar meu inglês com você.
- E está disposto a me pagar por isto?
- Por que não?
Estava oficialmente inventado um novo método: o meu, o da conversa fiada.

A coisa tomou, assim, outro rumo. Eu deixei de lecionar em cursos de idiomas, selecionei os alunos que mais me interessavam e passei a visitá-los uma vez por semana para fazer simplesmente o que eu mais gosto de fazer depois de cantar: conversar fiado. E, for incredible that appears, funciona.

Algumas pessoas parecem ter inteligência e habilidade natas para aprender e depois de apenas algumas aulas estão falando fluentemente e usando coisas que viram apenas uma única vez, são o sonho de consumo de qualquer instrutor de idiomas; tem gente que diz até que é vivência de vidas passadas. Eu acredito em talento, mas acredito mais ainda em trabalho, estudo e exercício de repetição. Tenho um amigo que consegue ser vulgar em cinco ou seis idiomas, e não creio que tenha aprendido em livros as barbaridades que diz aos borbotões, enquanto a turma se escangalha de rir. Outros, entretanto, fazem aulas duas vezes por semana por anos a fio e jamais conseguem articular sozinhos uma única frase.

Houve aquele executivo cheio da grana de um grande banco de investimento, que depois de oito anos com duas aulas semanais, a primeira delas às oito da manhã de segunda feira ainda era assim:
- Fulano. Good mornig! How was your weekend? Eu dizia cheio de esperança.
- Calma aí, prófi. Minha cabeça ainda não está funcionando.
Só que nos cinqüenta e nove minutos restantes de aula, ela continuava sem funcionar. Aquilo era um balde de água fria no meu ânimo. Ajudava a acordar. Meu sangue fervia, mas, mestre na arte de dissimular, eu mantinha a calma. Se a cabeça dele funcionava para outras coisas que não o inglês, ainda vou descobrir. Mas para línguas, ela era zero. Perguntar-me-ás, então, ó Catatau, por que eu fiquei tantos anos com ele. Bom, o cara era engraçado, sorridente, gostava de mim, pagava bem, havia sido meu fiador no primeiro apartamento que aluguei quando vim morar no Rio e estava sempre de bom humor. Isso tudo sem falar que ele era bem bonitão, o que compensava qualquer crise histérica que eu secretamente tive que aprender a controlar.

Entre meus amigos já ficaram patentes frases que ouvi de alunos, que de tão engraçadas, passaram a incorporar o jargão de nossas conversas. Uma delas é essa ai em cima: for incredible that appears, que já ouvi aluno tascar, e que de tão linda, hoje uso normalmente.
Sempre pródigo em cretinos, nosso país está cheio daqueles que acham que professor de idioma tem que ser estrangeiro, ter nome estrangeiro e ter vivido lá fora por alguns anos. Ter estudado e lido duzentos livros, conhecer bem o idioma nem é tão importante. Houve aqueles que quando souberam que aquele que se lhes apresenta é brasileiro filho de brasileiros, com primeiro nome italiano carcamano e os de família, portugueses, declinaram de fazer aulas. Na entrevista preliminar alguns perguntam candidamente:
- Você já esteve lá?
- Já estive em muitos lugares. Lá onde, a senhora quer saber?
- Nos Esteites, claro!
- Não, menti.
- Então não vai dar, estou procurando alguém que tenha vivido lá.
No início eu ficava irritado, mas depois relaxei. Para algumas pessoas, aquele lá se refere a algum lugar onírico que só os bem aventurados têm a graça de conhecer, algum país encantado, uma cornucópia, onde as torneiras jorram leite e mel e de onde provêm todas as coisas boas do mundo. A estupidez também pode ser engraçada, mas me reservo o direito de não ter que me relacionar com certas pessoas no dia a dia. Levantei-me, pedi licença e fui embora.

Uma vez estava conversando com um aluno de Niterói, um rapaz jovem, mas já formado e trabalhando. Era fluente em inglês, mas dizia o que lhe vinha à cabeça com grande desembaraço, sem se preocupar com a gramática. Para que? Se seu discurso fazia algum sentido, isso lhe era indiferente. O importante para ele era a fluência e o fato de ele achar que se fazia entender. Certa vez ele estava eufórico, pois tinha comprado seu primeiro carro, com seu dinheiro. Entretanto, como ainda morava com a família, achava que devia ao pai satisfação e tacou essa: I am not supposed to give my father satisfaction of the things that I do with my money, but by the yes, by the no, I always talk to him before taking a decision like this. O duro é segurar a cara séria depois de ouvir uma pérola como esta. A frase é linda, mas não faz o menor sentido em inglês. Além do contorno homoerótico incestuoso, tem tradução at the foot of the letter. Outra expressão que ele tirou diretamente do português e que usava indiscriminadamente nas aulas era let’s go and let’s come, tipo vamos e venhamos. E era usada assim: Her intention was not bad but, let’s go and let’s come, what she did in the end was inacceptable. Uma beleza. É claro que eu também as uso hoje em dia.

Outra pérola que já recebi de presente foi conversation goes, conversation comes. Nunca corrigi, por medo que a aluna parasse de usar, mas comemorava sem demonstrar a grande alegria que eu sentia cada vez que ela dizia isso. E isso vinha assim: I was visiting my grandmother the other day when, conversation goes, conversation comes, she told me she wants to take another trip to New York. . E o que o que dizer de the thing walks black by there?.
Nunca fui bom professor. Sempre achei que uma boa risada precede a gramática. Sou como os alemães: não admito os errinhos, que serão severamente censurados, mas tolero bem os errões.

Uma vez eu estava prestes a começar uma aula de inglês, no consultório de uma aluna em Copacabana quando meu telefone fez um barulhinho, que eu ignorei. Por motivo de clareza vamos chamar assim aquela visita. Havia colocado meus pertences numa cadeira ao lado daquela em que eu me sentara e, inadvertidamente, um livro meu tocou um botão qualquer do meu telefone celular. Quando cheguei em casa à noite um amigo me ligou às gargalhadas. Era o Ézio, com um senso de humor inexplicável e gosta de rir por qualquer motivo. Mas nesse dia, me passou uma tremenda descompostura.
- Quer dizer que é assim que você ganha seu dinheiro, seu cara de pau? Impostor. Não tem vergonha de enganar as pessoas? Chama aquilo de aula? Ela te paga por essas visitas?
É claro que eu tinha resposta para todas aquelas indagações, mas naquela época eu ainda tinha vergonha de responder e ele riu a valer às minhas custas. Sem entender nada e já acreditando possuir meu amigo poderes sobrenaturais, eu quis saber como ele tinha ouvido minha aula. A tecla que foi apertada por engano era o rediscar automático do último numero discado. E como ele havia sido a última pessoa para quem liguei, o telefone rediscou a chamada. Ele não estava em casa, mas sua secretária eletrônica registrou tudo. Isso garantiu a ele uma hora inteira de risadas, pela qual ele nunca me pagou.

Ao longo desses trinta anos tive a oportunidade de trabalhar com pessoas das mais diversas, de juízes e médicos e atores famosos a prostitutas e travestis da Avenida Atlântica, sempre com o mesmo entusiasmo e alegria. Do dinheiro que me pagam, misturado aos caraminguás dentro da minha carteira, ninguém diria de onde saiu e do que se teve que fazer para ganhá-lo. Mas there is good money and there is bad money e dinheiro ilícito eu dispenso. Meu ofício é tão fácil e prazeroso que me constranjo em chamá-lo de trabalho. Não é. Quando chega segunda feira eu acho ótimo. Às vezes a impressão de estar vendendo fumaça se faz tão presente que me surpreende estar ganhando o suficiente para manter a casa funcionando e poder fazer três refeições por dia. Freud diz que Träume sind Schäume, (sonhos são espumas) referindo-se à efemeridade dos sonhos. Já eu, eu vendo fumaça.