17 junho 2011

Terapia do cajuzinho

Atualmente existem no Brasil cerca de 700 tipos diferentes de terapias alternativas à ciência médica que prometem saúde física, paz interior e alegria de viver, curam uma miríade de doenças existentes e outras tantas por existir. Não há qualquer regulamentação sobre essas técnicas chamadas alternativas. É tipo vai-quem-quer, cada um por seu próprio risco e sorte. Dei uma googlada rápida e encontrei terapias holísticas, orientais, naturais, manuais, etc. Encontrei entre as holísticas, seja lá o que isso signifique, desde o Aconselhamento; Acupuntura (Cromopuntura e Laserterapia) (Audiopuntura); Auriculoterapia; Alimentoterapia; Antroposófica (Terapia/ Medicina Antroposófica); Fitoterapia; Massagem; Apiterapia; Aromaterapia; Arquétipo; Artes divinatórias (Astrologia, Numerologia, Tarot, Búzios, Runas e similares); Artes marciais (Kung-Fu, Judô, Karatê, Tae-kon-do, Tai-chi-chuan, Capoeira, dentre outras), Arteterapia; Auriculoterapia; Ayurveda; Biodança; Bioenergética; Biorressonância; Calatonia; Calatonia Auricular; Terapias dos Chacras; Terapia Chinesa (Acupuntura, Massagem, Moxabustão, Fitoterapia e Artes Marciais); Chi-kung; Movimentos Chineses; Taoismo, I Ching; Tao; Cinesiologia Corporal(Leitura Corporal); Corporal (Terapia Corporal); Cristaloterapia; Cromopuntura; Cromoterapia; Cura prânica; Dança do Ventre; Do-In; Estética Integral; Fitoterapia; Floral (Terapia Floral); Hidroterapia; Hipnose Holística (Terapia Holística); Holístico (Paradigma); Holografia/Holograma; Indiana (Terapia/Medicina Indiana); Insight; Iridologia; Jim Shin Jyutsu; terapia de Jung, Carl. G.; Laserterapia; Litoterapia; Cristaloterapia; Lowen, Alexander; Magnetoterapia; Mantras; Massagem; Massoterapia; Meditação; Relaxamento; Meridianos (de Acupuntura); Mitologia pessoal; Moxabustão; Musicoterapia; Naturoterapia / Naturopatia; Nei Ching; Neurolingüística; Oligoterapia; Ortomolecular (Terapia/Medicina Ortomolecular); Parapsicologia; Pulsologia; Quiropatia; Radiestesia; Radiônica; Reflexologia; Reich, Wilheim; (Terapia Reichiana); Reiki; Relaxamento; Ressonância Biofotônica ou Biorressonância; Rolfing; Samkhya; Shiatsu; Símbolo; Sincronicidade; Tai-chi-chuan; Taoísmo; Terapeuta Holístico; Terapia /Medicina /Psicologia Antroposófica; Chinesa; Corporal; Floral; Holística; Ortomolecular; Transpessoal (Terapia Transpessoal, Trofoterapia, Tui-na; Ventosas; terapias de vidas passadas, Vivências; até a Yogaterapia.

E isso tudo sem mencionar as terapias que envolvem a ingestão sistemática de pozinhos e gotinhas sem nenhum princípio ativo, contêm talvez ou cheirinho, uma suspeita de álcool cujas concentrações se contam em partes por milhão, e cuja eficácia só se pode explicar através do incontestável efeito placebo. Há também as curas espirituais, que, sozinhas, já justificariam um novo capítulo.

Em minutos percebi, para meu espanto, que cada uma delas se subdivide em inúmeras outras subclasses. Quando me deparei com o trabalho hercúleo de tentar chegar ao fundo se um saco sem fundo resolvi parar por ali. Minha curiosidade em fazer um inventário completo dessas terapias acarretaria muito mais trabalho que uma breve inspeção.

A maioria delas parte do pressuposto de que toda matéria dos três reinos - aí fatalmente incluídos os seres humanos - possui energias sutis, que alguns chamam de espírito, ou alma, que não podem ser comprovadas ou aferidas empiricamente, para citar apenas algumas. Afirmam que nossos corpos abrigam regiões de concentração energética e linhas idem que se entrecruzam. Esses pontos invisíveis e indetectáveis são, assim, estimulados por uma gama de métodos mais ou menos doloridos. Mas é de senso comum que um pouco de dor só pode ser indício de que algo bom vai acontecer, ajuda no tratamento. Os mais delirantes falam de vidas passadas, ilusão que de tão absurda, não sei ao menos criticar. Nossa fração imaterial seria imortal e voltaria para compor outros seres depois de nossa morte, numa espiral ascendente até o que eles chamam de perfeição espiritual. Completado o ciclo, os espíritos emigrariam para outro planeta. Credo quia absurdum. Aqueles que não crêem nessas premissas, estarão relegados ao limbo das curas alternativas. Para mim, incréu contumaz, energia vital tem nome e sobrenome: adenosina trifosfato, também conhecida pelo apelido ATP, que é produzida pelas mitocôndrias através da combustão de glicose dentro das células durante um processo conhecido como ciclo de Krebs. É ela que nos mantém vivos, aquecidos a 37°C. Cessada a produção de ATP, está terminada nossa vã passagem pela terra. Se você foi magnífico ou um crápula, isso não faz mais diferença. Aqueles que não podem se haver com esta dura realidade ficam escusados para abraçar as teorias que mais lhe dêem alento.

Para corroborar sua teoria equivocada algumas pessoas usam o argumento bisonho de que apenas o nosso corpo físico seria pouco para justificar nossa existência mesma. Presunçosamente, elas parecem não se dar conta de que um mero centímetro quadrado da epiderme de nosso antebraço abriga informação suficiente para um trabalhoso pós-doutorado. Há ali pano para as mangas nos quesitos bioquímica, físico-química, dermatologia, citologia, metabolismo e estruturas celulares, genética, interações de hidrogênio e pontes de Van der Waals. Quem ainda assim acha que isso é pouco, deveria tratar o narcisismo que lhe cega.

Mas de onde se originaria a aptidão que a raça humana parece ter de acreditar no imponderável? Em 1927, Sigmund Freud, em seu Mal-Estar na Cultura aponta a tendência natural dos seres humanos em todas as culturas por ele estudadas de crer em forças superiores capazes de nos proteger e livrar de todas as ameaças impostas, aquelas contra as quais nada podemos, a saber, as intempéries e os elementos da natureza. Além disso, nosso narcisismo é de tal ordem que estamos dispostos a crer que, através de nossa interferência, na forma de orações e súplicas, ordens superiores da dimensão imaterial poderão interceder por nós e assim nos livrar de catástrofes ou nos dar alento contra o que não pode ser mudado.

A escolha de terapias é tão farta e variada que você, em momento de penúria, poderá escolher a que melhor lhe convier obedecendo a seus próprios critérios econômicos, de ordem moral, teatral, logística, ética ou religiosa. Mas saiba que a raça humana é dada ao me-engane-que-eu-gosto desde que o mundo é mundo. Desde sempre os mais espertos investiram contra as fraquezas dos seus semelhantes, prometendo a cura de doenças e prosperidade em todas as frentes, embrenhando-se de um atalho através do imaginário dos incautos. Um promete e o outro acredita.

Baseado nesta premissa inglória,inventei eu também uma terapia infalível, a qual prosaicamente denominei de Terapia do Cajuzinho. É muito fácil e barata. Você pode tentar fazer em casa, a princípio sem a ajuda de um profissional treinado, mas aceite os riscos. Se o distinto leitor não deseja abusar da sorte, entre em contato com nossa central de atendimento que designaremos um profissional treinado para lhe atender – a uma quantia módica, claro. Pegue um cajuzinho fresco, grande e cheiroso, feito por uma preta quituteira das boas. Levante-o à altura dos olhos, mire-o longa e pensativamente enquanto se concentra no seu problema. Depois feche os olhos e repita o mantra: “eu deposito em você todas as minhas angústias, toda a minha esperança por um dia melhor. E enquanto eu estiver saboreando você, minhas tristezas se transformarão em alegrias imediatamente”. Repita esse ritual quantas vezes tiver vontade por dia. Mas atenção, se você não conseguir acreditar no meu método terapêutico, ele não irá funcionar. E essa premissa vale também para qualquer outro método.

Ao final de uma semana, você poderá começar a desfrutar dos primeiros resultados secundários, que se farão perceber à altura da linha dos quadris. Os resultados primários poderão ou não advir, como em qualquer outra terapia.

Sempre fui preguiçoso e indolente. Desde que percebi o mundo ao meu redor, achava que se conseguisse alguma coisa na vida seria por insistência ou pela mera espera. Um dia minha hora chega, eu pensava. Ainda na infância eu percebi que aquilo que é bom o suficiente para ser ardentemente desejado por muitos, foi feito só para uns poucos. E para ser um deles, o sujeito tem que ter nascido em berço de ouro, condição em que apenas a sorte desempenha papel fundamental, ou ele terá que se esforçar muito mais que seus competidores, pagando assim, à vida, um preço mais alto pelo prêmio. Seja como for, as duas alternativas me soavam injustas, e resolvi apenas esperar.

Considerei minha vida como um muro de pedra (Stonewall?) e resolvi me encostar nele na esperança de que algum dia ele se romperia finalmente sob meu peso. Meu esforço foi sempre pouco, em relação ao que consegui tirar da vida, pois o mínimo significava muitíssimo. Se eu cresse, estaria propenso a achar que trocaram minha ficha lá em cima. Talvez eu nem tenha me esforçado tanto quanto imagino que o tenha feito. A vida toda eu fiz o que quis, sempre me considerei um livre pensador, sempre li o quero ler e nunca o que me mandavam ou pediam para ler. Na escola secundária, desenvolvi um método infalível de escrever e até discursar sobre livros nos quais nunca toquei. Só recentemente fui ler Machado e me dei conta do que perdi não tendo lido antes. Mas esse é o preço. Enquanto meus colegas contemporâneos já fazem contas para se aposentar, minha carteira de trabalho é inexplicavelmente imaculada por não mais que dois contratos de três anos cada. Sempre fui um outsider, sempre correndo por fora do páreo.

Por isso, quando me disseram que poderia resolver meus problemas deitado não tive dúvida: aceitei fazer psicanálise. E tem mais: Jaques Lacan afirma que nesse método de tratamento o falar, mesmo deitado, é uma forma de trabalho. Só mesmo as putas e os analisandos podem se dar ao luxo de trabalhar deitados. Estava assim dirimida toda a minha culpa. Esse método tem ainda a vantagem de não se basear em crenças. Um dia eu disse para minha analista com todas as letras que ela era uma charlatã, que não se importava comigo, que só estava interessada no meu dinheiro, que não acreditava nem nela nem na psicanálise. Ela sorriu com paciência e disse: “Isso aqui não é igreja, você não tem que acreditar. Você só tem que vir”. Aliás, como canja de galinha, uma ponta de suspeita também não pode fazer mal. A verdade só serve para causar aborrecimento. Ninguém gosta de ouvir a verdade. Se alguém disser que quer lhe dizer umas verdades, saia correndo. Quem só diz a verdade não tem muitos amigos. Nunca é tarde para lembrar que assim como a Verdade da fé, a Verdade da ciência também não é absoluta, ela é não-toda e deve ser tomada cum grano salis. Mas isso já é assunto para outro dia.

31 março 2011

Irmã Imaculada

Há uns oito anos fui convidado pelo sogro de uma aluna particular para dar aulas a alguém a quem ele se referia como sua “mentora espiritual”. Ele era um homem religioso e sério e, cautelosamente, explicou que sua mentora era uma freira que vivia enclausurada em um convento e perguntou se eu me oporia a ir lá uma vez por semana para dar aulas de alemão. Ele pagaria pelas aulas. Não me opus.


Como tratava-se de aulas de conversação, eu sabia que ouviria estórias interessantes contadas por alguém que vive apartada da cultura, por sua própria escolha. Só esse detalhe já teria garantida minha aquiescência. No dia combinado estava eu lá, às oito de uma manhã de sol recalcitrante. A essa hora do dia um calor senegalês pintava com tintas fortes a paisagem estonteante que se vê do adro com chão de pedra, debruçado sobre o centro do Rio de Janeiro. Parei perplexo diante da imponente fachada do prédio, contemplei a beleza de sua arquitetura barroca, e inventei por longos minutos um pouco de sua história. Que tipo de gente pode escolher se isolar do mundo, imaginei?



Fui fazer minha pesquisa e descobri que o Convento de Santa Teresa é produto da dedicação de Jacinta Rodrigues Aires e sua irmã, Francisca, que conseguiram autorização do Governador Gomes Freire de Andrade, Conde de Bobadela, para a construção de um convento de Carmelitas Descalças dedicado a Santa Teresa de Ávila. O Governador deu-lhes um grande terreno e a antiga capela construída em 1620 no Morro do Desterro (mais tarde chamado Morro de Santa Teresa). Tal convento seria o primeiro convento feminino da cidade do Rio de Janeiro. Em 1751 as irmãs e outras religiosas se transferiram para o Convento. Ali, as religiosas vivem isoladas do mundo exterior, ou seja, enclausuradas. Assistem às missas,diariamente, atrás de grades. Segundo irmã Imaculada os jardins do pátio onde estão a Igreja e o Convento possuem muitas roseiras, o que a faz se lembrar de passagens bíblicas.

As obras começaram em 1750, no lugar da capelinha, e em 1757 as primeiras freiras já o habitavam, ainda que as obras prosseguiram por muito tempo. A fachada possui uma torre sineira entre a igreja e as habitações conventuais. O sóbrio projeto da igreja e convento deveu-se ao engenheiro-militar José Fernandes Pinto Alpoim, que antes havia construído ali perto o Aqueduto da Carioca(também conhecido como Arcos da Lapa). A proximidade com o Aqueduto permitiu um suprimento regular de água fresca ao Convento. Em finais do século XVIII se colocaram na portaria do Convento uma série de belos azulejos brancos-azuis provenientes de Portugal, de autor desconhecido, além de três bons altares de talha em estilo rococó, também de autoria ignorada. No convento há um retrato da fundadora, Madre Jacinta, datado de c.1769 de autoria do pintor colonial carioca José de Oliveira Rosa. No século XX houve algumas obras que removeram certos elementos do interior mas não chegaram a descaracterizá-lo.

No meu valente fusquinha 72 embiquei na estreita alameda de pedras, engatei uma segunda e subi uma rampa íngreme até o adro do convento. Deixei o carro do lado de fora, entrei na saleta com piso de enormes táboas de madeira, toquei a sineta e esperei ser atendido. Aguardei longos minutos e toquei novamente. De repente ouvi um barulho e alguém disse sim por detrás de uma pequena janela de madeira verticalmente presa ao meio, de modo que quem estivesse de fora não veria quem estivesse de dentro e vice-versa. Apresentei-me à voz, expliquei a que se devia a visita e ela pediu que eu esperasse. Depois a voz voltou e, educadamente, pediu que eu subisse as escadas laterais e esperasse no parlatório, três andares acima. Olhei para a direita e vi as escadas, de pé ali há duzentos e cinquenta anos.



O parlatório é uma saleta de uns seis metros quadrados mobiliado com apenas uma pequena cadeira de madeira. Não possui janelas externas, mas em uma de suas paredes há uma gigantesca abertura que presumo ter um metro de largura por uns dois metros e meio de altura conectando essa à sala contígua. A parede que separava as duas salas tem no mínimo cinquenta centímetros de espessura, de modo que nem se eu quisesse, poderia ter contato físico com que estivesse lá dentro. Essa abertura possui grades de ferro de ambos os lados e em cada interseção dos pesados ferros de que é feita, há fincos também de ferro com pontas afiadas, apontando para ambos os lados, tanto para dentro, quanto para fora. Colocar os braços para dentro significaria furar o peito nas pontas afiadas dos fincos da grade. Achei o espaço extremamente opressivo e o mal-estar me fez molhar de suor a camisa de antes mesmo que ela ocupasse a cadeira que ficava do lado de dentro e quase inaudivelmente me dissesse bom dia. A despeito do sol rachando lá fora, eu me encontrava agora na mais aterradora penumbra do claustro.



Não sei era o nervosismo, ou o calor ou o mal-estar de ter cinquentas facas apontadas diretamente no meu rosto, mas a verdade é que eu mal pude me dar conta que ela dissera bom dia uma segunda vez. Desde muito pequeno me lembro de me sentir mal se tem algum objeto contundente apontadao na minha direção. Com tão pouca luz, sem poder ver direito seu rosto, oprimido pelo espaço exíguo e sucumbido à claustrofobia balbuciei Guten Tag com a boca trêmula. Não havia banheiro, nem acesso a água, então tive que me resignar e lutar com todas as minhas forças contra o enjôo que me assolava. Ela percebeu e disse, <em>“vou abrir a janela de dentro para ventilar, mas não pode ser por muito tempo, a madre superiora não gosta”. "Então estou frito mesmo. Seja o que Deus quiser, pensei". Um fio de suor frio me escorria pelo rosto, mas eu sou cascudo e fiquei firme. E começei a conversar com ela.



Perguntei seu nome e ela me disse um nome que não é Imaculada, mas aqui devo chamá-la assim. Eu sou deste jeito, se conto o milagre não conto o santo, e vice-versa. Perguntei se esse era seu nome de batismo e ela disse que não, mas que aquele era um nome que já tinha ficado para trás quando abraçou a vida monástica. Nunca mais o havia pronunciado. Na primeira aula falamos basicamente da história do convento, sua fundação, seus benfeitores, eu perguntando avidamente e ela respondendo com alegria. Ela parecia saber tudo a seu respeito, nomes e datas. Seu alemão estava em bom estado, errava na declinação, um acusativo aqui um dativo ali, mas de forma geral conseguia se comunicar sem grandes complicações. Havia aprendido esta e outras cinco línguas dentro do convento, com outras freiras, estudando geralmente sozinha, mas contando com ajuda de uma ou outra sempre que precisava. Como em alemão vale o que está escrito, minha aluna não tinha muitos problemas de pronúncia. Vencido o pânico, a aula passou rápidamente.



Nos encontros seguintes falamos de religiosidade, literatura, seus autores clássicos preferidos e outras amenidades. Sempre tive a impressão que ela queria, mais que praticar a língua, era ter contato com o mundo externo. Ela sabia muito pouco do que se passava do lado de fora, mas não era impedida de sair. Não era uma presidiária nos termos que se conhece. Poderia sair a qualquer momento. Só não poderia voltar. Perguntei a ela como iam ao médico ou dentista. Ela disse que tinha que pedir permissão oficial à madre superiora e nunca podiam sair sozinhas. Sempre acompanhadas de uma ou duas irmãs. A advertência era apenas que não conversassem muito com pessoas que vivam aqui fora. Mas como tinha “bons dentes”, não tinha saido de lá por mais de doze anos. As aulas eram encaradas como uma transgressão, pelas quais ela tinha que brigar virtualmente com sua superiora imediata. Eu escutava aquelas coisas completamente pasmo. Pasmo e encantado pois eu me perguntava como alguém pode em sã consciência abdicar da vida assim. Perguntei se jamais iam ao ginecologista e ela disse que não. Isso já seria querer demais.



Ao final de todos os encontros ela oferecia uma bênção, que eu aceitava de bom grado. Nesse momento, ela punha-se de pé, dava um passo para trás, estendia a mão direita em minha direção e dizia uns versos. De brincadeira, porque freira também brinca, ela perguntava: em que língua você vai querer ser abençoado hoje? E assim era em francês, inglês, latim, grego, italiano, português e alemão. Cada dia era uma oração diferente em uma língua diferente. Eu baixava a cabeça em sinal de respeito, mãos espalmadas sobre os joelhos e ouvia atentamente suas palavras antes de me levantar, agradecer e sair. Nunca confessei para ela que sou ateu, não queria estragar o único presente que ela poderia me dar. Embora eu não tenha motivos para acreditar na dimensão divina, sabia que naquelas bênçãos havia um bem-querer, um bem-dizer dos quais eu não queria prescindir. Ela gostava de mim e estava dizendo com aquelas palavras que me desejava o bem. E eu agradecia de todo coração. Quem não gosta disso?



Um dia perguntei a ela o que lhe havia levado a uma vida comtemplativa, apartada do mundo. Ela disse que sofreu uma grande perda quando tinha dezoito anos. Seu pai, a quem ela amava de paixão faleceu repentinamente em seus braços, vítima de enfarto agudo do miocárdio. Aquela perda parece ter sido forte demais para ela, ficou apaixonada, como ela mesma disse e resolveu se fortalecer na religião. Enquanto me contava isso seus olhos se encheram de lágrimas e eu percebi que aquela mulher tão bonita ainda em seus cinquenta e poucos anos carregava ainda uma ferida aberta no peito que nem o tempo e nem a religião puderam fechar. Depois de trinta e cinco anos de reclusão estava ainda tudo aberto, tudo sangrando.



Ela vestia hábito preto fechado e tinha uma faixa branca cobrindo testa e têmporas, nem um fio de cabelo à mostra. Seu rosto quase não vi, mas percebi na penumbra que era uma mulher bonita. As freiras viviam ali uma vida de pobreza franciscana, cuidando de horta, acordando às quatro da manhã para as primeiras orações – ela me dizia o nome de todas essas horas - e dedicando muito tempo ao estudo. Possuia apenas dois trajes pretos, dois de cor bege, para o trabalho diário e duas camisolas.



Quando eu achava que já nos conhecíamos e que ela confiava em mim o suficiente pedi a ela que me descrevesse seu cabelo e, se possível, que mo mostrasse. Ela, a princípio demonstrou grande embaraço ante o pedido esdrúxulo. Ficamos em silêncio por longos momentos e, quando eu já julgava que ela me pediria para ir embora, ficou de pé, trancou a pesada porta atrás de si, abriu uma pequena entrada de ar de seu cômodo e tirou devagar o pano preto que cobria sua cabeça. Um facho de luz inundara seu cubículo e vi seu rosto pela primeira vez. Enquanto ela desapertava os panos que a aprendiam, me disse sussurrando seu nome de batismo. Como um triunfo, uma redenção, ela, sorrindo, disse e repetiu seu nome. Depois de seis meses conversando com um espectro, eu pude finalmente saber seu nome e gozar com a exuberância de seu rosto e seus belos cabelos louros, mal cortados à altura dos ombros. Meu coração disparou no peito, lamentei tê-la pedido isso e desejei que ela parasse. A cena não durou mais que alguns instantes, mas foi o suficiente para despertar uma outra curiosidade: até que ponto ela iria?



E ela não foi muito mais longe que isso. Uma semana após a fantástica exibição, ela cancelou para sempre as aulas alegando pressão política interna e um atrito entre si e as outras freiras, que reclamavam de suas regalias. Mas escondido bem no fundo da minha coração dorme ainda a suspeita de que ela havia ultrapassado seus limites e eu havia sido, senão o culpado, pelo menos o responsável. Tenho tido que conviver com essa sensação desde então. Lamento ter perdido a chance de aprender com ela a ver o mundo a partir de uma outra perspectiva. Lamento ter perdido a chance de aprender a abdicar, a praticar o desapego, a dar valor a pequenas coisas, à humildade, ao esforço, à dedicação, e ao empenho que ela coloca em tudo que faz. Esse breve encontro com uma freira enclausurada me expôs à minha própria cegueira, me ensinou a ter mais cautela com as palavras e respeitar mais os limites de cada um.

29 dezembro 2010

O Poder do Mal

Um levantamento do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro apresentado no segundo semestre de 2010 aponta para uma diminuição no número de vítimas por balas perdidas em todo o Estado, com redução de 18,4%, mas o número de mortes aumentou 175%. De acordo com o estudo, 84 pessoas foram vítimas no período de janeiro a junho, sendo 11 fatais. Em relação ao mesmo período de 2009, houve uma redução de 19 vítimas. O relatório foi produzido baseado na definição popular de "bala perdida", termo que não constitui conceito jurídico ou sociológico. Assim, fica entendido como "vítima de bala perdida" a pessoa que não tinha nenhuma participação ou influência sobre a ocorrência no qual houve disparo de arma de fogo, sendo, no entanto, atingida. Os números de 2009 foram os seguintes: 103 pessoas vítimas de balas perdidas nos primeiros seis meses do ano, sendo quatro fatais e 99 não fatais.

Esses números são totalmente absurdos. Em que mundo vivemos? 175% de aumento! E as mortes causadas por mal uso de armas de fogo por militares? Foi notícia no Rio de Janeiro um policial que atirou contra um homem trabalhando dentro de casa porque confundiu com uma metralhadora a furadeira elétrica que o cidadão empunhava, enquanto esse estava a apenas 40 metros da vítima. Um policial abriu fogo contra um carro de passeio porque supunha que dentro dele havia bandidos. Dentro havia apenas uma dona de casa assustada e acuada como um bicho, com seus dois filhos pequenos. Uma das balas, descuidada, mas nem tão perdida assim, matou seu filho de dois anos, sentado na cadeirinha no banco de trás. Quem vai consolar essa mulher? Quanto dinheiro deveria o Estado pagar em indenização? Existe indenização possível que pague essa dor? É esse o preço que se tem que pagar para se viver em uma cidade grande? Quem será o próximo? Quando vai chegar a minha vez?

Mas será que essas balas seriam de fato “perdidas”? Qual seria a definição de “perdida”? Qual era o objetivo da bala quando foi produzida? Enferrujar na gaveta? Perdidas elas seriam se, uma vez disparadas, tivessem caído no mar ou na mata. Mas perfuram o corpo de alguém causando morte ou ferimento grave, cumprindo assim, a sua finalidade primeira. A quem creditar a culpa por essas mortes estúpidas? O franco atirador raramente é identificado e punido. A quem interpelar judicialmente por um filho abatido enquanto soltava pipas? Quem vai preso nesses casos? De onde partiu a bala? O absurdo da coisa é tal que serve apenas para acrescentar mais indignação às perguntas que surgem aos borbotões no bojo dessas tragédias. A coisa é tão séria, é tão sem propósito que se torna tarefa impossível falar do assunto sem usar superlativos e adjetivos óbvios. É inconcebível viver em uma sociedade em que o cidadão não tem a segurança de sair de casa com a certeza de voltar intacto. A bala que mata uma pessoa inocente não pode ser uma bala perdida, pois a natureza da bala é matar. Para ela não faz a menor diferença se a vítima é culpada ou inocente. Foi para isso que ela foi produzida e comercializada e colocada no tambor do revólver. A crônica policial das grandes cidades está repleta de tais casos e poder-se-ia fazer aqui uma lista interminável de nomes de vítimas fatais ou que sobreviveram seqüeladas, mas resolvi listar apenas os mais recentes.

Casos notórios de brasileiros que tiveram as suas vidas interrompidas por balas perdidas nos últimos anos:
• Édna Correa Lima, de 74 anos, e a neta dela, de 15, passavam pelo local quando houve um tiroteio entre policiais e bandidos.
Gabriela Prado Maia Ribeiro, 15 anos, baleada no peito, descendo as escadas do metrô.
• Vanessa Matos Ramos, de 29 anos, quando passava pela rua.
• Maria Isadora, de 2 anos, tiro no abdômen, no colo da mãe.
• Gustavo Vieira, de 11 meses, baleado na cabeça, no colo da mãe.
• Wellington Rodrigues, de 11 anos, alvejado durante troca de tiros entre policiais militares e traficantes.
• Gabriel Rocha, de 8 anos, brincava na rua quando, atingido no peito durante um tiroteio entre traficantes.
• Maria Eduarda, de 1 ano, dormia em seu quarto quando foi baleada.
• Ana Vitória Novaes dos Santos, de 6 anos, saía à rua com um urso de pelúcia nos braços, que ganhara no natal.
• Lázaro dos Santos, de 13 anos, levou um tiro no ouvido, enquanto jogava vídeo game.
• Esposa de William da Silva, 32, dentro de casa, o tiro bateu na parede e a atingiu na nuca.
• Deise Teixeira de Oliveira, 60, tiro na cabeça, dentro de um coletivo.
• Cauane Tomás de Almeida, de 11 anos, região do abdome.
• Otacílio Carvalho França, ficou paraplégico.

Não posso falar da natureza da bala de revólver sem me lembrar de uma fábula em que um escorpião pede a um sapo que o carregue nas costas para atravessar um pequeno riacho. O sapo se desculpou e disse que não poderia, o risco seria grande demais. O escorpião retrucou e o convenceu de que matá-lo seria tolice, pois os dois morreriam afogados. Convencido da lógica proposta pelo escorpião o sapo, inseguro, mas cheio de boa vontade, o deixou subir. Entretanto, quando estavam no meio da travessia o sapo sentiu uma picada mortal em sua nuca. Virou-se estupefato e o escorpião, constrangido, se desculpou dizendo: Não pude evitar. Esta é a minha natureza. Os dois morreram.

Amizades de anos e anos terminam em um segundo se um deles tiver a má sorte de dizer ou fazer algo que desagrade o outro. Uma inconfidência deixada escapar por descuido pode comprometer relacionamentos antigos. Já vi amizades de décadas ruírem por bobagem, suspeitas infundadas, senões. Casamentos felicíssimos deixam de existir num passe de mágica, se de repente uma dúvida se interpuser entre eles. Tudo de bom que existiu, a lembrança de toda a alegria, solidariedade e os bons momentos partilhados nada podem quando o Mal mostra suas garras. E não raramente saem da relação dizendo que não deu certo. Como não deu? Oito anos felizes não deram certo?

Quem se interessa em lutar pela paz, em contribuir para um mundo melhor ao invés de destruir vidas, me parece que terá trabalho em dobro, pois o Mal é mais potente que o Bem. É muito mais fácil e barato prejudicar do que fazer o bem. Alguém vai à macumba para fazer o bem a alguém? Tente afetar a vida de 300.000 pessoas com um só gesto. Você terá que lançar uma bomba nuclear sobre uma cidade para afetá-las todas imediatamente e de maneira indubitavelmente irreversível e eficiente. Tente tirar 300.000 pessoas da miséria absoluta e verá que uma vida inteira de dedicação e trabalho árduo não bastará. Deverá se tornar uma Madre Teresa de Calcutá e ainda assim, como ela, se curvar humildemente ante a sensação de fracasso. Quantas delas vivem e morrem em total anonimato todos os anos sem jamais serem agraciadas com prêmios Nobel?

A história é prodiga em exemplos tanto de uns quanto de outros. Herr Hitler conseguiu, com algum esforço e ajuda de dedicados aliados exterminar 6.000.000 de judeus, ciganos, homossexuais e dissidentes políticos em seus campos da morte. Mas creio que se ele os quisesse ajudar, transformar suas vidas para melhor, entrando assim para a história por uma outra porta, teria que estar vivo até hoje para executar sua obra.

Em uma linda colcha de tricot só se nota aquele ponto perdido, aquela laçada mal dada que se julgava disfarçada bem ali no cantinho. Você supôs que ninguém notaria? Enganou-se. Meses de trabalho duro diário recebem senão um comentário maldoso: Está maravilhosa, mas aquele pontinho ali é que estragou tudo. Numa ópera de quatro horas de boa música, a magnífica performance dos cantores e músicos vai para as cucuias por causa daquele dó de peito desafinado do pobre tenor. No dia seguinte, só aquela falha merece destaque nas críticas dos jornais. Luciano Pavarotti já em final de carreira foi vaiado em cena aberta no Teatro La Scala de Milão, o maior templo da música erudita mundial por causa de um resfriado. Sua trajetória artística impecável não bastou para que lhe poupassem do vexame. É parte do instinto básico do ser humano se comprazer com a desgraça alheia. Um acidente na beira da estrada, mesmo que não esteja obstruindo a pista pode causar um engarrafamento monstro por causa da curiosidade mórbida dos motoristas que diminuem a marcha e insistem em esticar o olho. Só notícia ruim vende jornal.

Essas coisas não são desconhecidas de ninguém, mas a maioria das pessoas prefere ignorá-las, como parte de um acordo tácito de felicidade tipo Poliana Moça. Três dias depois do enterro, ninguém mais se lembra da menina que morreu baleada dentro da escola. Frases de efeito, verdades tolas e truísmo pueril merecem lugar de destaque nas conversas cotidianas, pois assim a gente justifica o injustificável, explica o inexplicável e se engana dizendo que Deus sabe o que faz.

18 dezembro 2010

Os gays e suas mães

O homem é dono do que cala e escravo do que fala.
(S.Freud)

Quando perdi minha mãe, resolvi escrever para meus amigos e contar da minha perda. Fiz uma carta padrão e enviei para minha lista de amigos por email. Está transcrita abaixo.

Ola,
Minha mãe faleceu em Juiz de Fora ontem. Achei que devia lhe comunicar e escrever algumas linhas sobre quem era dona Carolina. Não fosse somente a admiração que tinha por ela como pessoa, guerreira, otimista delirante, o talento para dar o passo maior que a perna sempre sem pensar se vai dar errado lá na frente, sem dizer mas dando a entender que o maior fracasso do mundo valeu a pena tentar; mais que isso eu tinha uma aproximação especial com ela desde criança.

Herdei da minha mãe o talento de fazer virar o jogo, de não aceitar a adversidade de braços cruzados, humildade sim, mas aceitar humilhação, jamais! Analfabeta até a vida adulta dizia aos sete filhos que não temos talento para roubar, portanto, pra deixar de ser pobre lascado, o melhor é estudar. E ela conseguiu, todos nos formamos em alguma coisa. É dela o mérito que tenhamos quando adultos uma vida melhor do que a que experimentamos quando crianças, no interior de Minas.

Mamãe era servente escolar e ganhava salário mínimo.
Em dezembro de 1968, grávida de seis meses, saiu a transferência dela de Guidoval para Juiz de Fora. Contratou um caminhão e colocou em cima dele nossos parcos cacarecos e lá fomos todos juntos sem saber ao certo pra onde. Tinha uma panela de feijão cozido e ela comprou pães para comermos na viagem. Ela só havia estado em Juiz de Fora uma vez na vida. Papai não subiu no caminhão. Inseguro, ficou morando com a mãe dele até nos instalarmos na nova cidade. Só então ele chegou.

Por muitos anos vivi colado com ela, e agora vou ter que, como as lagartixas, me ver regenerando a minha metade que morreu com ela ontem.

No sábado à noite, quando ela já estava nos seus estertores, deu-se a festa de formatura de meu sobrinho, que a mamãe adorava. Desolada, sem animo para ir ao baile e dançar a valsa com o filho, minha irmã disse que não iria, não tinha condições. Mas uma outra irmã, mais velha, se lembrou da mamãe: "Rose, no dia do seu casamento há trinta anos morreu o irmão da mamãe, e ela foi assim mesmo à cerimônia. Quando voltou para casa, mudou de roupa e foi enterrar o irmão. Se ela estivesse aqui agora, te obrigaria ir ao baile do seu filho. Portanto, pare de chilique e vá se aprontar. E bem bonita!" E assim quase todos foram ao baile - e dançaram muito.
Na manhã seguinte, às seis horas, tocou o telefone.

O que fica dela é o achar que vai dar certo.
Não acredito em vida após a vida, em reencontro, em au-delà, mas ela estará agora e para sempre viva no meu coração e na minha memória.


Mãe e mulher não são a mesma coisa, são funções estanques com contornos bem definidos. Prova disso é que a visão de um seio de mãe amamentando um bebê é considerada anti-erótica, dificilmente excitaria alguém e funciona de maneira oposta à visão de um seio desnudo de mulher. Aquelas mulheres que não conseguiram ascender ao lugar de mãe, as que não souberam fazer a diferença desses papéis gostariam que seu filho fosse gay. Não há maneira mais eficiente de mantê-lo solteiro, longe de uma rival e, portanto, livre só para ela. E se o pai – ou qualquer outra pessoa que preencha este lugar – não fizer um corte, se não der um basta quando ela se excede nos cuidados e mimos, ela vai continuar tentando a vida toda. Só que o esforço da mãe, sozinho, não basta: é preciso que o filho também esteja disposto a participar da brincadeira. São precisos dois para se dançar um tango.

Ninguém pode desconhecer a preferência velada que as mães sentem por seus filhos homens e o relacionamento espinhoso que mantêm com suas filhas. O difícil de explicar, entender e aceitar são os motivos pelos quais elas agem assim. A teoria psicanalítica preconiza que ali pelos três anos de idade, quando a menina se dá conta de que os meninos possuem um pênis e ela não, ela sente um grande pavor, intui que deve ter feito algo terrível, de que ela não se lembra, para que este lhe tenha sido cortado.

A grosso modo, por isso ela passaria o resto da vida devendo um falo ao mundo, e para compensar sua falta, coloca um milhão de outras coisas em seu lugar. Afinal, se dois ou três pares de sapato bastam para manter seus pés protegidos, por que desejar duzentos? Quando finalmente, já adulta, ela dá à luz um menino, é como se tivesse quitado sua dívida com o mundo, está dela remida e vai fazer o que for possível para ficar próxima dele o máximo de tempo possível. A rixa que as sogras têm com suas noras advém daí: é que estas são as suas sucessoras e, via de regra, suas rivais. Nenhuma moça é boa o suficiente para tomar conta do falo que essa mulher engendrou dentro de si, botou para fora e carregou em segurança até ali.

Os gays são os filhos ideais para qualquer mãe, são eles que não as abandonam, que as fazem companhia, que as fazem rir, que cuidam delas quando ficam velhas e doentes, pois jamais colocaram outra mulher em seu lugar. Um homem gay adulto, mesmo casado com outro homem continua sendo considerado solteiro por ela e por sua família, portanto, disponível para cuidar da mãe sempre que necessário. O lugar de destaque dessa mulher estará para sempre preservado no imaginário de amor perfeito desse homem. O amor deles é reservado para sempre para essa mulher ideal que eles conheceram quando ainda eram bebês.

Ao contrário do que muitos acham, ninguém nasce gay, ou lésbica. A sexualidade, entre outras características, vai sendo formada aos poucos, através de identificações por que a criança passa na primeira infância. O que de fato nascem são bebês que só chegaram a nascer por serem o resultado do desejo de alguém. Se serão reconhecidos como filhos por quem os pariu, isso já é outra questão. O bebê, ao nascer poderá ou não ser adotado como filho pelos seus pais. O fato é que mesmo antes de nascerem já não pertencem a essa mulher, pois já estão inscritos simbolicamente na cultura na qual ela vive. Já se sabe de sua existência, já se fala deles, já se refere a eles no masculino ou feminino, já detêm direitos por lei. Prova disso é que mesmo estando dentro do corpo dessa mulher, ela não tem, por lei, direito de dispor dessa criança a seu bel prazer. Mesmo nascendo feito um cd virgem, são portadores de um imenso potencial de virem a ser o que quiserem na vida.

Sem o desejo de alguém, a cria humana morre minutos após nascer. A nossa espécie não é como outras do reino animal. Requeremos cuidados intensos durante pelo menos os primeiros cinco ou seis anos de vida. Daí para frente a criança meio que sobrevive sozinha. Para comprovar minha teoria há as crianças que vivem em situação de rua, vendendo doces em sinais de trânsito. Mal aprendem a falar e já sabem esticar o bracinho e pedir dinheiro em troca de sua mercadoria.

Quando o bebê nasce, ele tem muito poucos desejos, são apenas as necessidades básicas para se manter vivo: alimento e fralda limpa. Está ali presente também uma demanda de amor que, ao ser ou não atendida, pode determinar a saúde desse bebê. Não é desconhecido de enfermeiras da pediatria o fato de bebês filhos de parturientes deprimidas, e, portanto, incapazes de demonstrar afeto, recusarem o alimento nos primeiros meses de vida. Alguns morrem de anorexia. Nesses primeiros meses de vida a mãe – ou a tomadora de conta, que seja – tem como suprir cem por cento de suas necessidades. Ao se desenvolver para se tornar adulto, entretanto, o sujeito vê esses desejos se multiplicarem até se tornarem incontáveis, todos eles sempre prometendo – mas nunca de fato entregando – a verdadeira e duradoura felicidade. Tão logo se satisfaz um desejo, necessidade ou capricho, outro igual ou mais premente já se configura no horizonte. E assim passamos a vida toda correndo, perseguindo a tal felicidade. As coisas capazes de tamponar esse buraco, é melhor se afastar delas. Qualquer tipo de fanatismo, o religioso mais comumente, perversão sexual e drogas pesadas cumprem muito bem esse papel.

Mal o bebê abre a boca e chora avisando que lhe falta algo, de lá vem ela correndo, descobre o que ele deseja e lhe supre imediatamente. Mais ou menos aos oito meses de idade, segundo alguns autores, uma paixão que busca recompensa erótica se forma no bebê tendo a mãe como objeto de prazer. Não importa se é menino ou menina, ambos se apaixonam perdidamente pela mãe e não querem mais se desgrudar dela, o pai passa a ser um empecilho entre os dois. O que cada um vai fazer com essa paixão desmedida – e não correspondida – é que vai determinar a direção que a sexualidade dessa pessoa vai tomar mais tarde.

O menino de três anos, que mais tarde se tornará homossexual, ao perceber que essa mulher fálica por quem ele está apaixonado e de quem ele espera a tal recompensa erótica jamais será dele, que ela não poderá lhe dar o que ele dela espera e que ela já pertence a outra pessoa (ao pai, a outra mulher e mais uma lista de impedimentos) ele toma o seu lugar, transforma-se nela e passa a desejar o pênis do pai. Se o inimigo é mais forte do que eu, uno-me a ele. Nunca é demais lembrar que toda essa operação é inconsciente e ninguém seria estúpido o suficiente para afirmar que crianças desejam fazer sexo com seus pais.

O prazer erótico dos bebês ainda não está localizado em seus genitais, seu corpo é uma zona erógena por inteiro, por isso diz-se que sua sexualidade é polimorfa perversa. Todos já viram um bebê ter uma ereção durante o banho e urinar um jato comprido no rosto da mãe. Ela ri como deve rir e jamais imagina o que aquilo significa para ele. E o pai ou mãe que ousar realizar aquilo que filho/filha inconscientemente fantasia, estará destruindo de maneira irreversível seu aparelho psíquico. A “saúde mental” de pessoas consideradas psíquica e emocionalmente estáveis é calcada em cima da falta, do “eu não tenho”, “eu gostaria, mas não posso...”, “ah, se eu pudesse...”. Esse é o primeiro não com que havemos de aprender a lidar. Se o corpo receber aquilo com o que fantasia, a mente da criança pequena se decompõe, vira cocô. Ela não tem como se colocar frente a uma equação tipo xis sobre zero.

A partir dessa identificação simbólica com a mãe, alcançada através da união ao objeto de seu desejo, o menino passa a ser um apêndice de seu corpo físico imaginário. Não é raro ver gays falarem de suas mães como extensões de seus corpos físicos: mamãe e eu somos uma só pessoa, ela fala e eu assino embaixo e quando ela fica doente eu sofro tanto quanto ela e vice-versa. Mamãe é uma bailarina maravilhosa. Sou uma cópia mal feita dela. Ou será que ela é que é cópia minha? Quem nunca ouviu um gay falar assim de sua mãe? E essa aproximação não esmaece com os anos, gays idosos relatam jamais ter amado outra mulher na vida, as conversas giram invariavelmente em torno dessa mulher fantástica. Também não é rara a semelhança física entre eles, com trejeitos, andar e risada idênticos um ao outro, do que eles têm grande orgulho, pois seu reconhecimento parece coroar o esforço de ter conseguido ser parte do corpo dela. Infelizmente, o que muitas mães não sabem é que a sexualidade de seus filhos encaminhou-se nessa direção por causa um amor desmedido que não pôde acontecer.

Quando o coroado estilista inglês Alexander McQueen perdeu a mãe em fevereiro de 2010, o golpe parece ter sido demais para ele: dez dias depois de sua morte e véspera do enterro dela, ele se enforcou com seu cinto marrom favorito em seu guarda-roupas, sozinho em seu luxuoso apartamento de Londres. Dias antes ele havia dito na imprensa que metade dele havia morrido com ela. Esses dados podem ser facilmente averiguados na internet.

Porque vivemos em um caldo cultural heteronormativo, em que o macho adulto branco está sempre no comando e as mulheres aceitam caladas receber em média setenta por cento do salário dos homens para executar igual tarefa, poucas mães têm a clareza de espírito para poder aceitar e amar seus filhos homossexuais do jeito que eles são. Obnubiladas por séculos sob o jugo dominador dos homens, elas próprias, e sem se dar conta, são as que educam seus filhos para serem machões porque foi dessa forma que nasceram e foram criadas. Elas próprias, paradoxalmente, não raramente expulsam de casa seus filhos adolescentes quando descobrem sua homossexualidade.

Tudo na cultura judaico-cristã ocidental é feito pelo e para os heterossexuais, filmes, novelas, televisão, restaurantes, lojas, etc. O certo é saber que o certo é o certo. E ai de quem sair um milímetro da risca de giz. Em pleno século XXI, o rapaz que se atrever a demonstrar sua afetividade pelo namorado em público poderá ser assassinado. O simples caminhar pelas ruas em grandes cidades brasileiras pode ser arriscado. Sempre se matou muitos gays no Brasil, muito mais que no país dos aiatolás. Se nos causa revolta ver fotos de jovens de vinte anos enforcados em praça pública no Irã por sua orientação sexual, saibam que em nosso país a cada três dias um homossexual é assassinado pelo mesmo motivo – e ninguém vai preso (dados levantados pelo Grupo Gay da Bahia). Entretanto, só depois do advento das câmeras de segurança e da militância incansável de grupos que lutam pela igualdade de direitos, o assunto passou a ser mais abertamente discutido nos meios de comunicação e os criminosos processados.

O traço cultural do machismo vem sendo passado de geração em geração desde muitos séculos. As meninas devem ser sempre boas, obedientes e castas, os meninos podem tudo, principalmente no que se refere a sexo heterossexual. As meninas são vigiadas o tempo todo e sua virgindade deve ser protegida a qualquer custo como se disso dependesse sua honra. O filho, mesmo traindo a namorada, conta com total apoio e discrição parental. Em Minas Gerais os pais dizem toma conta de sua cabrita porque meu bode está solto. Isso quer dizer, meu filho pode comer sua filha quando ele quiser, tome conta dela se não quiser vê-la desvalorizada. Vivendo nesse meio, não é difícil imaginar que uma mãe não conseguiria aceitar facilmente seu filho homossexual. A situação mais comum que se vê desenvolver entre mãe e filho gay é aquela adotada pela política de inclusão de gays nas forças armadas americanas: você não me conta e eu não lhe pergunto, e assim a gente vai fingindo que se engana e se aturando e se amando mutuamente.

O Grupo Arco Iris de Cidadania LGBT do Rio de Janeiro desenvolve um importante projeto social chamado Entre Garotos, que acolhe rapazes de quinze a vinte anos de idade em situação de vulnerabilidade. Em três anos já atendeu a mais de cento e cinqüenta garotos que relatam histórias escabrosas de abuso físico e psicológico sofrido dentro de casa, escola e grupo religioso. Muitos deles são expulsos de casa pelos pais e não têm a quem recorrer, pois a família muitas vezes lhes fecha as portas. A situação de humilhação associada à baixa auto-estima acaba por lhes confundir a visão e eles se tornam promíscuos, abandonam os estudos, abusam de álcool, passam usar drogas e, no limite, se infectam com o vírus da AIDS.

Quanto à D. Carolina, por mais que eu tentasse, ela preferiu evitar uma conversa franca a vida inteira. Nunca me perguntou nada acerca de minha sexualidade e saía sempre pela tangente quando eu tentava conversar com ela a respeito. Com medo de ofendê-la com indiscrições, eu aceitei jogar seu jogo. Ninguém pergunta nada que já não saiba a resposta, ou que não tenha condições de ouvir. Cada um conhece seus limites. Por comodidade ou receio, nunca saberemos, ela fez com que a franqueza não fosse a tônica de nossas conversas. Pouco antes de falecer ela esteve em minha casa para uma rápida visita, num momento de rara audácia em revelações. Raramente esteve aqui, mas quando vinha sempre ficava pouco e sempre com a bolsa no colo em posição de desconforto ou pressa. Disse que minha casa era bonita, que tinha orgulho das coisas que conquistei na vida e mencionou a trajetória de nossa família, mas que não podia aceitar o meu “estilo de vida”. Não explicou exatamente o que queria dizer com aquilo, mas interpretei como uma referência velada ao fato de ser eu casado com um homem e ter adotado um menino, ao invés de ter feito um. Lamento que não tenhamos ultrapassado esse limiar. Desperdiçamos tanto tempo com abobrinhas quando poderíamos ter conversado sobre o que realmente interessa. Mas fomos o que pudemos ser um para o outro.

Uma vez li numa lápide: As lágrimas mais amargas derramadas sobre túmulos são aquelas por palavras deixadas por dizer, por coisas deixadas por fazer. Quanto a isso estou tranqüilo, pois eu disse tudo o que pude dizer, respeitando os seus limites.
Minha admiração por ela vai estar sempre acima disso, que hoje, em perspectiva, vejo como apenas um detalhe.

23 outubro 2010

I’m a bluff

Em 1979, aos dezoito anos de idade, saí de casa e fui estudar na Universidade Federal de Viçosa. Como morar em outra cidade, longe da família, significava ter que trabalhar, fui ao IBEU local e pedi para dar aulas. Eu havia completado apenas o ciclo básico, quando era adolescente, mas a necessidade não me deixava opções. O diretor foi bastante gentil e disse:
- Se você não se importar em fazer um teste, estou precisando de alguém para me substituir numa turma de iniciantes.
- Claro que não!, respondi pensando que seria uma prova escrita. O pior que podia acontecer era eu não passar, pensei, já que eu mal sabia a língua.
Pediu que eu o seguisse, entrou em uma sala com doze alunos, me entregou um livro em cuja capa se lia English 900 e se sentou na última carteira com uma prancheta e um lápis na mão.
- Só demos uma aula. Paramos na página cinco. Pode começar daí, disse.
Sem entender – e já entendendo – comecei a apagar o quadro negro, enquanto rezava silenciosamente uma Salve Rainha. Naquela época tinha quadro negro nas escolas de inglês, e eu ainda rezava Salves Rainhas em momentos de grande aperto. Eu nunca tinha visto aquele livro e jamais havia dado uma aula na vida.
Ao final da aula ele disse:
- Tá meio verde, mas acho que pode ser, sim. Terça e quinta às 19h?
- Claro!
Desci as barulhentas escadas de madeira do sobrado antigo pulando os degraus de dois em dois e quando cheguei na calçada ele me gritou.
- Ei, rapaz! Qual é mesmo o seu nome?
- Angelo!
- Não quer saber quanto vai ganhar?
- É mesmo. Quanto, heim? Gritei de lá.
- Vinte cruzeiros por aula.
- Tá ótimo. Obrigado.
Rapidamente calculei que esse dinheiro daria justo para pagar o alojamento e os tíquetes do refeitório por um mês. Fui para casa sorrindo.
E foi dessa maneira canhestra que comecei na profissão: assustado, despreparado e sem saber ao certo o que estava acontecendo.

No ano seguinte, mudei-me para uma casa velha num bairro pobre de Viçosa, prosaicamente chamado Cantinho do Céu. Embora não fosse uma favela nos moldes que os sociólogos definem e que eu considero como o subproduto vergonhoso da má distribuição de renda nas cidades grandes, o Cantinho tinha em comum com elas várias características, como a falta de um monte de coisas, falta de saneamento básico, falta de calçamento e serviços em geral. Mas o lugar não era violento, não se falava em drogas, facções criminosas nem em dono do pedaço. Era só pobreza mesmo, pobreza por todos os lados e uma imbatível poeira fina avermelhada que tudo cobria dentro de casa quando fazia sol, e barro que impedia a passagem de carros, quando chovia. Houve dias de não se poder ir à aula por estar a estrada intransitável. Eu ia de bicicleta para a escola que ficava a oito quilômetros de distância do Cantinho, e em tempos de chuva tínhamos que ir à pé, subir um morro até o asfalto e lá pegarmos carona para a cidade. Muitos alunos universitários moravam ali, em casinhas igualmente pobres e passamos tempos difíceis naquele inicio de anos 80.

No Rio, Cazuza, Frejat, Lobão et caterva enfiavam o pé na jaca, curtindo a vida adoidado, muita praia, muita grana, muita festa, os bastiões do esforço brasileiro da tríade sex, drugs and rock’n’roll e compunham canções sofríveis que estranhamente gozavam de grande sucesso entre as massas néscias. Em Viçosa, minha turma de amigos metia a cara nos livros de física e cozinhava “sopas” para não ir para a cama em jejum. No quintal de minha casa tinha um cerca de bambu velhíssima, caindo aos pedaços, tombada sob o peso de um luxuriante e pródigo pé de chuchu. Na panela cheia de água, jogávamos dois cubinhos de caldo Knorr e o que mais tivesse na hora. Geralmente era chuchu mesmo, ou uma planta silvestre que tinha muito por ali que eles chamavam de lobrobró. Comíamos aquela iguaria em volta da mesa com pedaços de pão novo ou velho, igualmente, mas sempre com grande entusiasmo e fazendo troça da situação de penúria em que nos encontrávamos. Meu amigo e vizinho Jairo nos convidava para ir à sua casa comer suflê de jejuá. Todos riam. Com os cotovelos apoiados no peitoral de madeira da janela dos fundos da casa pobre do Cantinho do Céu eu assistia o sol preguiçosamente se pôr vermelho por detrás das montanhas de Minas Gerais e sonhava com dias melhores. A idéia da transitoriedade das coisas sempre esteve muito presente na minha vida associada à certeza quase religiosa de que eu iria virar o jogo. Eu sabia que mais dias menos dias aquilo também passaria. Como passou. Jairo mora em Bonn há mais de vinte anos e se tornou um artista plástico de sucesso na Alemanha.

Com tempo disponível e angustiado pelo desejo de conhecer coisas inúteis fui pesquisar o tal de lobroró na biblioteca da universidade (não havia computadores) e descobri que Ora-pro-nobis (Pereskia aculeata), vem do latim "rogai por nós", e é uma cactácea, um cacto trepadeira, com folhas carnudinhas. Dizem que seu nome foi criado por pessoas que colhiam a planta no quintal de um padre, enquanto ele rezava: Ora pro nobis. O povo inculto não tardou em reduzir a expressão latina a seu equivalente sonoro brasileiro. É um vegetal rico em ferro, ajuda a curar anemias das mais graves. Também é usado no preparo da farinha múltipla, complemento nutricional no combate à fome, mas lá em casa era colocada só na sopa. Como possui 25,4% de proteínas, vitaminas A, B e C bem como, além do ferro, minerais como cálcio e fósforo é conhecida como "carne dos pobres".

Entre outros ofícios que tive, o ensino de inglês e alemão sempre foi minha principal fonte de renda. Num determinado momento da minha vida, já fui técnico em laticínios e engenheiro de alimentos formado, mas não deu certo. Nunca tive o perfil que a profissão exige e, a julgar pelo trabalho que tive para me formar, achava que trabalhar na área seria hipocrisia demais. Repeti várias matérias, tirava notas baixíssimas e sofri para passar nos Cálculos I, II, III e o numérico, álgebra linear, estatística, cinco disciplinas de Física e um monte de bioquímica. Dois dias antes da festa de formatura eu ainda não sabia se ia colar grau com a turma, estava dependurado em Físico-química. Para tirar a nota de que precisava para passar, tive que fazer um trabalho final, prova oral para uma banca de três professores da qual o meu não participava para finalmente poder provar que detinha algum conhecimento acadêmico sobre algo de que jamais precisei na vida.

Meu algoz se chamava José Carlos, era gay enrustido, casado com mulher e me odiava. Odiava a minha liberdade, as minhas roupas coloridas, minhas calças de lycra, meu cabelo comprido, minha joie de vivre e a minha transparência num meio tão hostil, competitivo e mesquinho quanto o universitário. Repeti sua matéria três vezes. Quando saiu a nota, comprei uma caixa de feux d'artifice e fui para o meio da praça comemorar, sozinho. Feito um alucinado soltei os fogos e dei pulos tipo gol do Brasil, proferindo gritos condizentes com a situação. Depois disso, aperfeiçoei as línguas que já falava na Inglaterra e Alemanha, e esses foram os melhores anos da minha vida. Claro, anos 80, vinte e poucos anos de idade e querendo de tudo provar. Foi o máximo. Quando vivi na Europa trabalhei como pude, o que aparecia eu fazia, de lavador de pratos e garçon de um restaurante elegante em Londres, a recepcionista de hotel e funcionário da limpeza de hotel em Munique. Lá, tomei conta de criança, dei aula particular de Português, empacotei farinha e até li jornal para velho cego dormir. Is it soft, or do you want more?

No Rio, trabalhei nas mais afamadas escolas de idiomas e já tive que usar métodos dos mais tradicionais aos mais teatrais para fazer aluno aprender a falar. Alguns davam sono, com aluno lendo um texto ridículo à página vinte e sete e o colega não sabendo onde a leitura parou, para poder continuar. Outros métodos eu considero verdadeiras transfusões de sangue. Em poucos minutos de aula a turma toda está com os nervos à flor da pele, com os ânimos elevadíssimos, o professor falando alto, estalando dedo, fazendo barulho com a boca, dançando, fazendo perguntas cretinas à velocidade de uma metralhadora, apontando na cara de uns e outros e praticamente implorando que falem. A sensação que se tem é que de repente pode estourar uma briga, um quebra-quebra ou um baile funk. Um horror. Espero nunca mais ter que fazer isso na vida.

Há uns vinte anos, entretanto, quando minha paciência já tinha esgotado dessa tarefa extenuante, resolvi parar de vez e procurar outra coisa para fazer. Assim, conversei com o diretor da escola onde dava aulas e avisei também aos meus alunos particulares que não dava mais. Nesse dia não levei livro texto e nem de exercícios, fui mesmo só para me desculpar e explicar os motivos pelos quais eu não continuaria visitando-os semanalmente. Como sempre a conversa foi em inglês e ao final do que talvez fosse uns três quartos de hora de animado papo um deles falou comigo:
- Se quiser voltar semana que vem para continuarmos a conversa...
- E você acha que isso é aula?
- Bom, não sei se podemos chamar de aula, mas eu gostei de praticar meu inglês com você.
- E está disposto a me pagar por isto?
- Por que não?
Estava oficialmente inventado um novo método: o meu, o da conversa fiada.

A coisa tomou, assim, outro rumo. Eu deixei de lecionar em cursos de idiomas, selecionei os alunos que mais me interessavam e passei a visitá-los uma vez por semana para fazer simplesmente o que eu mais gosto de fazer depois de cantar: conversar fiado. E, for incredible that appears, funciona.

Algumas pessoas parecem ter inteligência e habilidade natas para aprender e depois de apenas algumas aulas estão falando fluentemente e usando coisas que viram apenas uma única vez, são o sonho de consumo de qualquer instrutor de idiomas; tem gente que diz até que é vivência de vidas passadas. Eu acredito em talento, mas acredito mais ainda em trabalho, estudo e exercício de repetição. Tenho um amigo que consegue ser vulgar em cinco ou seis idiomas, e não creio que tenha aprendido em livros as barbaridades que diz aos borbotões, enquanto a turma se escangalha de rir. Outros, entretanto, fazem aulas duas vezes por semana por anos a fio e jamais conseguem articular sozinhos uma única frase.

Houve aquele executivo cheio da grana de um grande banco de investimento, que depois de oito anos com duas aulas semanais, a primeira delas às oito da manhã de segunda feira ainda era assim:
- Fulano. Good mornig! How was your weekend? Eu dizia cheio de esperança.
- Calma aí, prófi. Minha cabeça ainda não está funcionando.
Só que nos cinqüenta e nove minutos restantes de aula, ela continuava sem funcionar. Aquilo era um balde de água fria no meu ânimo. Ajudava a acordar. Meu sangue fervia, mas, mestre na arte de dissimular, eu mantinha a calma. Se a cabeça dele funcionava para outras coisas que não o inglês, ainda vou descobrir. Mas para línguas, ela era zero. Perguntar-me-ás, então, ó Catatau, por que eu fiquei tantos anos com ele. Bom, o cara era engraçado, sorridente, gostava de mim, pagava bem, havia sido meu fiador no primeiro apartamento que aluguei quando vim morar no Rio e estava sempre de bom humor. Isso tudo sem falar que ele era bem bonitão, o que compensava qualquer crise histérica que eu secretamente tive que aprender a controlar.

Entre meus amigos já ficaram patentes frases que ouvi de alunos, que de tão engraçadas, passaram a incorporar o jargão de nossas conversas. Uma delas é essa ai em cima: for incredible that appears, que já ouvi aluno tascar, e que de tão linda, hoje uso normalmente.
Sempre pródigo em cretinos, nosso país está cheio daqueles que acham que professor de idioma tem que ser estrangeiro, ter nome estrangeiro e ter vivido lá fora por alguns anos. Ter estudado e lido duzentos livros, conhecer bem o idioma nem é tão importante. Houve aqueles que quando souberam que aquele que se lhes apresenta é brasileiro filho de brasileiros, com primeiro nome italiano carcamano e os de família, portugueses, declinaram de fazer aulas. Na entrevista preliminar alguns perguntam candidamente:
- Você já esteve lá?
- Já estive em muitos lugares. Lá onde, a senhora quer saber?
- Nos Esteites, claro!
- Não, menti.
- Então não vai dar, estou procurando alguém que tenha vivido lá.
No início eu ficava irritado, mas depois relaxei. Para algumas pessoas, aquele lá se refere a algum lugar onírico que só os bem aventurados têm a graça de conhecer, algum país encantado, uma cornucópia, onde as torneiras jorram leite e mel e de onde provêm todas as coisas boas do mundo. A estupidez também pode ser engraçada, mas me reservo o direito de não ter que me relacionar com certas pessoas no dia a dia. Levantei-me, pedi licença e fui embora.

Uma vez estava conversando com um aluno de Niterói, um rapaz jovem, mas já formado e trabalhando. Era fluente em inglês, mas dizia o que lhe vinha à cabeça com grande desembaraço, sem se preocupar com a gramática. Para que? Se seu discurso fazia algum sentido, isso lhe era indiferente. O importante para ele era a fluência e o fato de ele achar que se fazia entender. Certa vez ele estava eufórico, pois tinha comprado seu primeiro carro, com seu dinheiro. Entretanto, como ainda morava com a família, achava que devia ao pai satisfação e tacou essa: I am not supposed to give my father satisfaction of the things that I do with my money, but by the yes, by the no, I always talk to him before taking a decision like this. O duro é segurar a cara séria depois de ouvir uma pérola como esta. A frase é linda, mas não faz o menor sentido em inglês. Além do contorno homoerótico incestuoso, tem tradução at the foot of the letter. Outra expressão que ele tirou diretamente do português e que usava indiscriminadamente nas aulas era let’s go and let’s come, tipo vamos e venhamos. E era usada assim: Her intention was not bad but, let’s go and let’s come, what she did in the end was inacceptable. Uma beleza. É claro que eu também as uso hoje em dia.

Outra pérola que já recebi de presente foi conversation goes, conversation comes. Nunca corrigi, por medo que a aluna parasse de usar, mas comemorava sem demonstrar a grande alegria que eu sentia cada vez que ela dizia isso. E isso vinha assim: I was visiting my grandmother the other day when, conversation goes, conversation comes, she told me she wants to take another trip to New York. . E o que o que dizer de the thing walks black by there?.
Nunca fui bom professor. Sempre achei que uma boa risada precede a gramática. Sou como os alemães: não admito os errinhos, que serão severamente censurados, mas tolero bem os errões.

Uma vez eu estava prestes a começar uma aula de inglês, no consultório de uma aluna em Copacabana quando meu telefone fez um barulhinho, que eu ignorei. Por motivo de clareza vamos chamar assim aquela visita. Havia colocado meus pertences numa cadeira ao lado daquela em que eu me sentara e, inadvertidamente, um livro meu tocou um botão qualquer do meu telefone celular. Quando cheguei em casa à noite um amigo me ligou às gargalhadas. Era o Ézio, com um senso de humor inexplicável e gosta de rir por qualquer motivo. Mas nesse dia, me passou uma tremenda descompostura.
- Quer dizer que é assim que você ganha seu dinheiro, seu cara de pau? Impostor. Não tem vergonha de enganar as pessoas? Chama aquilo de aula? Ela te paga por essas visitas?
É claro que eu tinha resposta para todas aquelas indagações, mas naquela época eu ainda tinha vergonha de responder e ele riu a valer às minhas custas. Sem entender nada e já acreditando possuir meu amigo poderes sobrenaturais, eu quis saber como ele tinha ouvido minha aula. A tecla que foi apertada por engano era o rediscar automático do último numero discado. E como ele havia sido a última pessoa para quem liguei, o telefone rediscou a chamada. Ele não estava em casa, mas sua secretária eletrônica registrou tudo. Isso garantiu a ele uma hora inteira de risadas, pela qual ele nunca me pagou.

Ao longo desses trinta anos tive a oportunidade de trabalhar com pessoas das mais diversas, de juízes e médicos e atores famosos a prostitutas e travestis da Avenida Atlântica, sempre com o mesmo entusiasmo e alegria. Do dinheiro que me pagam, misturado aos caraminguás dentro da minha carteira, ninguém diria de onde saiu e do que se teve que fazer para ganhá-lo. Mas there is good money and there is bad money e dinheiro ilícito eu dispenso. Meu ofício é tão fácil e prazeroso que me constranjo em chamá-lo de trabalho. Não é. Quando chega segunda feira eu acho ótimo. Às vezes a impressão de estar vendendo fumaça se faz tão presente que me surpreende estar ganhando o suficiente para manter a casa funcionando e poder fazer três refeições por dia. Freud diz que Träume sind Schäume, (sonhos são espumas) referindo-se à efemeridade dos sonhos. Já eu, eu vendo fumaça.

15 setembro 2010

Santa Lola

Toda cidade em cada região do interior brasileiro tem seus santos. Na minha terra não foi diferente. Ali perto de Rio Pomba, no interior de Minas Gerais tinha uma santa de inquestionável eficiência e a quem todos reverenciavam. Ela se chamava Santa Lola.

É difícil escrever sobre um personagem que tangencia a divisa entre as esferas do imaginário e do real e o que eu sei sobre ela são apenas fragmentos de narrativas contadas esporadicamente por minha mãe e minha avó. Há muitos anos nunca mais ouvi ninguém falar dela. Perguntei às minhas irmãs o que elas poderiam dizer sobre a santa, mas parecem saber ainda menos do que eu. Pesquisei no Google e não há uma só linha sobre Santa Lola. Tem uma homônima, com dois eles, mas é marca de roupa. Até onde eu sei, sem relação com a santa em questão. Sei que não inventei por que lá em casa todo mundo já ouviu falar. Sei que ela existiu porque confio nas palavras de minha mãe minha avó. Elas jamais mentiriam a respeito de algo tão sério. Minha avó a viu pessoalmente nos anos cinqüenta e minha mãe tentou visitá-la nos anos sessenta, mas a essa época, a balbúrdia na sua porta já era grande e ela já não mais recebia devotos.

Contava-se que ela era uma menina muito religiosa, mas também peralta e brincalhona que gostava de subir em árvores com a molecada. Um dia, quando tinha treze anos, ela caiu de uma árvore e teve o estômago atravessado por um galho seco de grosso calibre. Estamos falando do interior de Minas Gerais, no inicio de século XX, quando mesmo na cidade mal havia hospitais, que dirá na roça. Ela morava numa casinha muito pobre e nada fazia crer que se tornaria tão famosa um dia. Pois bem, foi levada de carro de boi para o hospital mais próximo, que ficava em Ubá e lá ficou entre a vida e morte por muito tempo. Sua mãe era uma devota católica praticante e pediu de joelhos que a vida de sua filha fosse poupada. No hospital, a menina recebeu a extrema-unção do padre local, confessou seus pecados e recebeu a hóstia sagrada.

Só que ela não morreu. As semanas se passaram e ela continuava viva. Um dia seus pais pediram para levá-la para casa no estado em que estava para que lá pudessem cuidar melhor dela, já que não tinham condições de se hospedar naquela cidade. Não sei como isso seria resolvido hoje em dia, com a ética medica tão rígida. Mas naquele tempo os médicos se reuniram e acharam que não havia mal algum em deixá-la ir morrer em casa. Semanas viraram meses e a rotina de cuidar dela parecia ter-se integrado no dia-a-dia da casa. Recebia diariamente a hóstia sagrada, era limpa e virada na cama, mas não consumia alimento, pois estava traqueostomizada. No início recebia líquidos via traquéia para se manter viva. Depois não sei direito o que se passou, se os pais resolveram parar de dar, ou se ela pediu para não receber mais, só sei que pararam de dar a ela o alimento diário. Também não sei se recebia água. Hoje em dia isso seria ou eutanásia ou ortotanásia, ambas eticamente discutíveis. Mas a menina não morreu. As semanas viraram meses e os meses viraram anos até que sua fama se espalhou pela região. Em poucos anos todos sabiam que uma menina estava viva pela Graça de Deus.

Não tardou os romeiros começaram a chegar e pedir a ela intercessão junto às esferas superiores da dimensão divina em casos de doença grave, ou questões menos urgentes como a compra de uma fazenda ou só para pedir graça e proteção. Dizem que os pedidos costumavam ser atendidos. Foi nessa época que minha avó foi visitá-la e viajou durante um dia inteiro para cobrir pouco mais de cinqüenta quilômetros de Guidoval a Rio Pomba. Não sei mais quando e por que essa viagem se deu, pois eu ainda não era nascido e mineiro não gosta de dar detalhes de nada. Eu perguntava isso e muitas outras coisas, mas a tendência era sempre desconversar.Tudo na moita. Muitos anos depois minha mãe foi visitar a santa, mas nessa época ela já não recebia mais romeiros em casa. Minha mãe teve que pernoitar acampada na porta da casa dela e aquela turma de viajantes passou a noite em vigília rezando e pedindo. Não sei se a essa época eles pediam graças para a enferma ou se somente para si, por intermédio da santa. Nada disso posso contar com muita certeza, pois lá se vão quarenta e cinco anos.

Pouco tempo antes de falecer, minha mãe esteve aqui em casa e eu a perguntei se era verdade que Santa Lola de fato existiu. Ela silenciosamente abriu sua bolsa de mão e tirou de dentro um santinho todo amarfanhado, aquelas impressões que trazem a efígie de algum morto com uma oração no verso. Era a foto de Santa Lola, bem velhinha, deitada no seu leito, ainda lá na casinha da roça. Mamãe se emocionou ao falar dela como se emociona ao falar de um ente querido. Ela nunca a viu, mas jamais duvidou de sua existência ou de seus milagres.

Não tenho explicações cabíveis para a sobrevivência por mais de cinqüenta anos de alguém deitado em uma cama dura recebendo apenas uma porção de alguns gramas de farinha de trigo por dia. Sabe-se que a hóstia era a única ingestão diária dela. Mas sei também que nem tudo se explica à luz da ciência. Quem confia demais na ciência pode ter duras decepções. Há características idiossincráticas do sujeito que são responsáveis, por exemplo, pela resposta de um organismo a um tipo de medicamento. Pode-se especular sobre a redução ao mínimo das atividades vitais dela até um estado basal de sobrevivência de alguém que pesava pouco mais de trinta quilos. Pode-se pensar em uma conversão histérica elaborada que fez com que seu corpo emaciado pela dor passasse a queimar lentamente os carboidratos armazenados nos músculos e ossos e se acostumasse a consumir o mínimo apenas para que ela respirasse. Que tipo de gozo havia se instalado naquele aparelho psíquico incipiente de modo que o ajudar ao próximo serviria também como sustentáculo e fonte alternativa de vida para ela?
Entretanto, não sou dono da Verdade - nem sempre respondo de maneira eficiente pela minha própria. Chego a desconfiar que é uma certa arrogância achar que tudo se explica. Quem nos garante que uma força superior realmente não agiu ali fazendo com ela vivesse para ajudar as pessoas? Será que era esse o seu sintoma? Quem nos garante que seu corpo não foi usado com um propósito maior que nos escapa o entendimento?

Minha avó e minha mãe não tiveram dúvida alguma com relação a sua existência nem quanto à natureza de sua sobrevivência. Estavam convencidas de que era milagre, intercessão direta do Altíssimo. Talvez elas tivessem razão. Talvez a resposta seja tão simples assim. De qualquer maneira estou certo que nunca se preocuparam em saber os verdadeiros motivos do tal milagre.

Já me digladiei entre essas várias possibilidades, já inventei tantas outras, a maioria totalmente incabíveis, e às vezes sinto que já queimei neurônios demais tentando achar uma explicação para a mera existência de Santa Lola. Há coisas que não têm mesmo explicação. Mistérios existem. E temos que nos haver com este fato.

A vingança da pequena órfã

Desde que eu era muito pequeno, em meados dos anos 1960, na minha pequenina Guidoval, zona da Mata mineira, me lembro da existência dessa menina. Ela se chamava Carminha e era filha adotiva da minha tia, que era irmã do meu pai.

Ninguém da minha família sabe até hoje com ela chegou até a casa de minha tia, mas era fala comum que ela era “boazinha” e ajudava minha tia com as tarefas domésticas. Bonita, nunca foi: tinha a pele parda, ruça, com textura de papel celofane, era bem magrinha, dentuça, pálida, descabelada, e, para completar, era fanha e tinha lábio leporino. Mas minha tia a tomou como filha adotiva. Ou, pelo menos, era assim que a sociedade Guidovalense via a situação da garota. Minha tia tinha pretensões à sociedade local. Seu marido era dono da única padaria na cidade e era dono também de um cassino clandestino onde, dizem, fazendas trocaram de mãos. Não eram ricos, mas gostavam de se passar por.

Quando éramos pequenos, éramos proibidos pela nossa mãe de ir visitar aquela casa, pois nossa família era pobre e mamãe temia que eles nos dissessem isso. Meus cinco primos andavam bem vestidos, com roupas de marinheiro azul marinho com listras brancas e aquele paninho caído nas costas. Eu achava aquilo o máximo. Minhas duas primas andavam de vestidos de organdi branco com várias saias até os joelhos e usavam laçarotes de fita de seda branca na cabeça. Umas princesas.

Lá em casa somos sete filhos, minhas seis irmãs e eu. Todos com intervalo de um ano e meio um do outro. Mamãe contava com rancor que quando éramos pequenos, passando por grande dificuldade, pediu à cunhada se poderia mandar uma de minhas irmãs, a segunda, todos os dias para almoçar. Minha tia então disse que sentia muito, mas que todos os dias não seria possível. “De vez em quando até vai, mas todo dia, fica difícil”.

A casa deles era uma das únicas que tinham geladeira e televisão na cidade, mas não podíamos ir lá desfrutar de tamanha maravilha. Um dia eu passei em frente a casa deles e vi que estavam assistindo televisão de porta aberta. Reparei que era colorida. Só muitos anos depois, soube que naquela época não havia TV em cores e o que eu julgava ser colorido era uma tela de plástico de três cores que eles colavam na frente do vídeo para dar a impressão que era TV a cores.

Minha mãe era funcionária da limpeza e também cozinheira da escola estadual onde minha tia era diretora e sempre reclamava que minha tia zangava com ela na frente de todos quando via, por exemplo, que uma sala não havia sido bem limpa. Uma vez, cozinhando a sopa das crianças para a merenda, mamãe inadvertidamente deixou entrar fumaça na panela e a comida ficou com gosto de carvão. Nem precisa dizer que o fogão era à lenha. Minha tia fez um escândalo e a suspendeu do serviço por uma semana com uma advertência por escrito.

Para todos os fins, minha tia fazia entender que Carminha era sua terceira filha, e colhia os louros da sociedade local por isso. Todos comentavam de sua abnegação e bondade para com os mais necessitados, uma alma boníssima. Só que a realidade, segundo a própria menina, era bem diferente. Desde o primeiro dia em que chegou àquela casa, sempre foi tradada como empregada. Recebeu de presente uma vassoura no dia em que botou os pés na sala de entrada. Ela tinha a essa época apenas oito anos, e, com o passar doas anos, suas responsabilidades foram também aumentando. Nunca pode fazer suas refeições junto com família: comia na cozinha, junto com a outra empregada e isso depois que todos haviam almoçado, os restos do que sobrou nas bandejas que foram à mesa. As roupas que vestia também eram restos de suas “irmãs”. Pode parecer clichê, pode parecer com a estória da Cinderela, e eu até gostaria que fosse, por causa do final que essa princesa teve. Mas não foi bem assim.

Alguns anos mais tarde nossas famílias se mudaram de Guidoval, a minha transferiu-se para Juiz de Fora e a da minha tia foi para Belo Horizonte, deixando minha avó sozinha na cidade. Mas voltávamos sempre lá para as férias escolares. Isso era muito bom. Ficávamos hospedados na cada da vovó e eu gostava da Carminha. Lembro-me de irmos nadar no rio da cidade eu, ela e meu primo. Hoje este rio está assoreado e morto. É um rio morto, sem peixes, cheio de lixo. Mas naquela época tinha cachoeira de águas claras que batiam nas pedras. Numa manhã de muito sol fomos nadar fora da cidade. Andamos léguas a pé os três. Chegando lá, Carminha tirou a roupa no maior sem-cerimônia e nadou nua. Nunca vou me esquecer. Eu tinha 14 anos e ela uns 18, já com corpo de mulher. O que lhe faltava no rosto, a natureza havia lhe recompensado sobejamente nas formas perfeitas. Meu primo ficou mais chocado que eu quando viu seus seios duros de frio na água gelada. Ela ria às gargalhadas. Uma beleza para os sentidos. Insistiu para que tirássemos nós também nossas roupas, mas, travados, nadamos de cueca. Meu primo também era alguns anos mais velho que eu, e, assim como eu, também se tornaria homossexual. Mas juro que a nudez de Carminha nada tem a ver com isso.

Creio que foi a grosseria de sua mãe que mais tarde o fez se casar e arranjar vários filhos. Ele não era um sujeito muito forte e não aprendeu as lições que Carminha tentava em vão lhe ensinar. Minha tia, por outro lado, era uma mulher muito dura e quando estava com raiva gritava o que lhe viesse na cabeça. Uma vez a vi humilhando até as lágrimas esse meu primo. Presenciei a uma cena doméstica que enquanto eu viver não vou esquecer. Quando percebeu que ele era afeminado ficou furiosa e despejava na cara dele seu embornal de acusações: “Barrigada desperdiçada. Você não serve para nada! Para que servem a merda desses bagos ai dependurados no meio de suas pernas? Isso é para enfeite? Se é, então corta e joga para o cachorro que assim terão alguma utilidade”. Fiquei enrijecido de pavor ao ouvir aquelas palavras e trinta e quatro anos mais tarde ninguém me convence que elas também não se endereçavam a mim. Ela era fogo.

Poucos anos depois dessa cena lastimável ele se casou com uma moça de uma cidade do interior de Minas, acho que era Congonhas. Como dois anos depois do enlace a moça ainda não engravidara, ele resolveu pegar pesado logo de cara: fez um trato com São Judas Tadeu, para quem não há nada impossível, oferecendo duzentos pares de sapatinhos de lã de bebê para serem distribuídos entre os pobres de Belo Horizonte, caso a moça engravidasse. Naquela época ele já sabia tricotar como poucos. Eu também sabia e fizemos muitos pull-overs de lã enquanto conversávamos longamente nas noites frias dos invernos mineiros, bebericando uma caninha da roça. Passou então a mão nas agulhas e atirou-se naquela tarefa inglória. Eu ia dizer hercúlea, mas depois me ocorreu que Hércules jamais teria feito um trato desses com santo. E santo costuma cobrar. Não é que ela engravidou? Quando a moça estava com três meses de gravidez e a promessa estava já cumprida, no entanto, teve um aborto espontâneo e perdeu a gestação.

Meu primo não se deixou abater e dessa vez ofereceu não duzentos, mas quatrocentos pares de sapatinhos de lã ao mesmo santo. E ela engravidou novamente e a gravidez ia de vento em popa. Quando ele se deu conta do absurdo que é tricotar quatrocentos pares de sapatinhos, comprou uma máquina tricotadeira e com poucos zigue-zagues de mão os sapatinhos iam caindo já aos pares na cesta de vime. Depois era só fechar rapidamente com ponto Paris e estava pronto, mas a maior parte do trabalho já tinha sido executada. Isso vale? Mas de repente, seu projeto sofre novo revés. Meu primo resolve, não sei por que cargas d’água, ir a um centro espírita na Lagoinha fazer uma consulta sobre o andamento de seu pedido lá nas esferas superiores da dimensão divina. O pai de santo, bebendo cachaça e fumando charuto, incorporado com um Preto Velho zombeteiro, disse a ele em transe “ô mizinfim... aquela máquina... aquela máquina qui ocê comprô num pode... tá pijudicano seu pidido... tá amarrano a sua vida...” Com grande desapontamento por ter sido flagrado trapaceando, ele saiu dali arrastando a chinelinha, voltou para as agulhas e completou a tempo a promessa. Creio que o santo tomou gosto pela coisa, pois nos quatro anos que se seguiram, sua esposa engravidou - e teve - mais três bebês saudáveis. Isso foi no início dos anos 80. Nunca conheci nenhuma dessas crianças.

Carminha era uma mulher libertária, alegre, engraçada, inteligente. Foi através da amizade com ela que passei a gostar de poesia e a prestar atenção em música. Foi através da amizade com ela que aprendi a desobedecer, a questionar, a levantar a cara, a dizer que eu também tinha opinião, a não me deixar ser humilhado. Não sei como ela conseguiu manter uma cabeça relativamente saudável em um ambiente tão inóspito. Não sei como conseguiu desenvolver sentido de auto-estima vivendo com uma mãe postiça que a humilhava. Ao contrário da mãe, meu primo a adorava e a minha prima mais nova também gostava dela.

Durante o período de aulas, incentivado pela Carminha, demos início a uma intensa correspondência. Lembro-me que os envelopes, dela e meus, eram sempre extravagantes e coloridos. Nessas cartas eu expunha meus questionamentos acerca da minha sexualidade, minha família, meus quereres, pensava na vida tendo-a como minha primeira interlocutora. Minha mãe conhecia a fama de respondona da Carminha e não gostava dela. Achava que a menina faltava com a gratidão que devia a minha tia.

Assim que se deu conta de que as cartas chegavam e de quem eram, enciumada passou a abri-las sistematicamente e lê-las antes de entregá-las a mim. Mamãe nunca teve a sutileza dos fraudadores que eu via nos filmes, nunca ferveu água na panela para amolecer a cola das cartas no vapor e assim poder abri-las sem que ninguém soubesse: metia a mão e rasgava o envelope como se a carta fosse para ela. Carminha me disse para enfrentá-la e eu o fiz. Deu uma grande confusão e levei até surra, mas hoje, olhando o fato em retrospectiva, acho que o saldo foi positivo. Eu era adolescente e estava experimentando a vida com toda força nos anos 70.

Quando Carminha tinha uns 20 anos, cansada da vida que tivera durante tantos anos sob o jugo e sanha cruel da “mãe”, ela deu um revertério. Pelo que eu soube na época, ela protagonizou uma cena de novela. Uma noite chegou tarde da rua e encontrou a mãe furiosa com seu atraso. Naquele momento se encontravam apenas as duas em casa houve uma discussão. Ofendida e acuada por algum motivo, Carminha resolveu lavar toda a roupa suja com minha tia. O tom da conversa subiu, e, aos berros, ela rememorou os doze anos que havia passado, não como empregada doméstica, por que empregada doméstica recebe salário, mas uma escrava naquela casa, nunca se sentira amada, só explorada. Minha tia a chamou de ingrata e começaram a se ofender verbalmente uma à outra. O caldo entornou mesmo quando minha tia deu-lhe um tapa no rosto e, ato contínuo, ela revidou. E revidou com a cobrança de juros e correção monetária atrasados, dando-lhe uma estrondosa surra entre lágrimas e risadas histéricas. Como devem ter gozado as duas! Quando minha tia caiu no sofá, convoluta e estupefata ouviu apenas o bater violento da porta. Carminha havia ido embora para sempre.

Mineiro é muito reservado, vamos dizer assim. Não conta nada. Esta e outras histórias cabeludas dos bastidores de nossa família só se ouvem anos e anos depois de ocorridas, assim mesmo por um descuido de quem as contou. Uma de minhas irmãs compra um big apartamento na planta e a família só fica sabendo muito tempo depois quando ela própria se trai nunca conversa informal. Um de nós faz uma viagem pela Europa, visitando cinco países e na família ninguém fala nada. Uma de minhas irmãs vai se separar do marido e o assunto morreu ali mesmo. Aquela que ouviu a inconfidência, por sua vez, jamais sairia cotando para as outras irmãs e o assunto vai vazando assim ao longo dos anos. Será para não suscitar olho-grande? Indiscrição? Não sei.

Da história da vingança da Carminha só se soube fragmentos contados entre dentes com mãozinha na boca aqui e ali ao longo de mais de trinta anos de discrição e silêncio. Ninguém garante que cada um que conta não aumenta uma ponta.

Disclaimer Esta é uma obra de ficção. Portanto, qualquer semelhança com pessoas reais vivas ou que ja tenham subido não passa de mera coincidência.

03 setembro 2010

O salão de baile

Galy Karaburdji Nóbrega casou-se com Luiz Theberge Nóbrega em Janeiro de 1940 e viveram juntos, segundo eles felizes, até que ela faleceu em dezembro de 2004, exatamente um mês antes de completarem 65 anos de casados.

Embora eu os tivesse conhecido quando já beiravam os 90 aos, este senhor não admitia que lhe chamassem de “Seu” Luiz, por que isso lhe fazia parecer muito velho. Essa proibição me colocava sempre em dificuldade, pois devido à minha criação, eu considerava um desrespeito chamar um senhor de idade que acabara de conhecer pelo primeiro nome. Por isso, estava sempre pisando em ovos quando me dirigia a ele. Por diversas vezes ele me corrigiu na frente de todos até que acostumei. Eles não gostavam da companhia de pessoas idosas, porque segundo eles, esses eram muito ranhetas e rabugentos. Assim, preferiam a companhia de pessoas mais jovens.

Eles haviam se conhecido quatro anos antes do casamento em um acampamento de jovens no topo da Pedra da Gávea, a 850 metros de altitude, no Rio de Janeiro. Luiz era mais falante que Galy e adorava contar repetidamente como se deu o primeiro encontro. Ambos faziam parte de grupos de caminhadas: ela era Bandeirante e ele era membro do Clube Excursionista Brasileiro, que se dedicava a andar distâncias continentais desbravando florestas e desvendando mistérios da natureza selvagem.
Dessa feita, o motivo da excursão era a investigação de inscrições fenícias que se encontram no rochedo daquela montanha de pedra. Luiz só me contou sobre esse encontro após a morte da Galy e se emocionava até as lágrimas a cada vez que me contava: sempre como se fosse a primeira. O seu grupo de rapazes havia carregado um gramofone, um trambolho pesadíssimo morro acima para tocar um LP com a Alvorada, de Carlos Gomes ao nascer do sol. As pessoas sempre tiveram seus motivos particulares para justificar suas ações mais inexplicáveis. Naquele momento, haviam acendido uma fogueirinha para o café e a música soava majestosa quando essa mocinha apareceu do nada, sorriu, aproximou-se e lhe ofereceu uma balinha. Incrédulo diante de tamanha formosura, ele lhe ofereceu uma xicarazinha de café e pelos próximos 65 anos nunca mais se desgrudaram. Não sou grande conhecedor de música, mas suspeito que a tal Alvorada de Carlos Gomes seja a conhecida protofonia da ópera O Guarani.

Quando me contou essa história pela primeira vez, foi buscar um livro antigo, amarelecido pelas décadas no qual ele leu e depois me mostrou uma inscrição colhida durante aquela expedição na montanha de rocha. Eu então rapidamente anotei em um pedaço de papel, já na intenção de um dia vir a escrever sobre eles: LAABHTEJ BAR RIZDAB NAISINEOF RUZT, que lidas de trás para frente dava: TZUR FOENISIAN BADZIR RAB JETHBAAL - Tiro, Fenícia, Badezir primogênito de Jetbaal. Por diversas vezes ele me contou dessa descoberta, e sempre com grande entusiasmo. Essa inscrição realmente desperta mais perguntas do que respostas. Depois de tal façanha, Luiz passou outros 70 anos intrigado com o que essas palavras poderiam significar. Morreu sem conseguir descobrir.

Casaram-se e vieram morar junto com os pais dela nessa casa, que fica embaixo da minha, em Santa teresa. Como havia três quartos eles fizeram o quarto dos dois casais em extremos opostos e usavam o quarto do meio como sala de estar. Segundo eles, a convivência foi sempre pacífica e jamais houve um momento de discórdia, uma dúvida, um senão, um elevar de voz. Viviam segundo um modelo que me parece comunista: todos os quatro trabalhavam e ninguém tinha conta em banco. Quando recebiam seus salários, todos colocavam seus soldos em uma caixinha de madeira com tampa trabalhada que ficava na estante da sala de visitas. Depois de pagas as contas da casa, quem precisasse de dinheiro para alguma coisa tinha total liberdade de pegar o quanto houvesse restante. Essa caixinha hoje pertence a mim e a guardo com muito apreço.

Galy nasceu na República da Estônia, que mais tarde seria parte integrante da antiga União Soviética em 1915. Seu nome de batismo era Galina, mas logo que seus pais chegaram ao Brasil e aprenderam Português descobriram que Galy soava melhor e assim passaram a chama-la. Já naquele tempo nosso país era pródigo em cretinos que sem demora passaram a chamar a menina de galinha. Galina Karaburdji era filha única de Demétrius e Claudia Karaburdji. Eles imigraram para o Brasil em 1918. O Brasil foi a primeira escolha devido às nossas famosas condições climáticas. Passaram alguns meses em São Paulo, mudando-se a família para o Rio logo em seguida. O pai de Galy foi, durante muitos anos, comandante de um submarino russo e logo após a Primeira Guerra Mundial a situação política na Estônia tornou-se insuportável especialmente para essa família porque eles eram considerados burgueses. Uma bóia trazida como souvenir do tal submarino foi mantida dependurada na parede como souvenir até recentemente. Só depois do falecimento de ambos, a casa foi reformada e tivemos que nos desfazer da maioria de seus apetrechos. Galy contava que um dos soldados do submarino de seu pai era irmão mais novo do compositor Tchaikovsky. Pelo que ela contava, esse rapaz era bem mais novo e via no irmão uma figura paterna, pois escrevia longas cartas para ele, nas temporadas que o submarino ficava fora da União Soviética. Ainda guardo uma foto desse rapaz abraçado a um companheiro, esmaecida por cem anos de gaveta. A veracidade de tal informação infelizmente jamais poderá ser atestada, já que não há qualquer inscrição no verso da mesma.

Dona Claudia morreu em 1949 e Seu Demétrius em 1955. Refiro-me desta maneira a eles, porque era assim que o casal a eles se referia. De tanto contarem histórias, acabei me acostumando com mais esses dois personagens. Não me lembro de mais detalhes sobre eles, exceto que adoravam dançar, jogar baralho e receber amigos em casa.

Freqüentavam clubes de dança no centro da cidade e levaram uma vida muito boa em nosso país. Quatro cinzeiros pequenos em forma de naipe de baralho, dois pretos e dois vermelhos enfeitam ainda hoje um console de madeira na minha casa, testemunhos silenciosos daquela época.

Galy e Luiz falavam várias línguas e tinham muitas histórias para contar de suas andanças pelo mundo. Tudo o que ganhavam com seus trabalhos, gastavam em viagens pelos quatro cantos do globo. Conheceram o Brasil tão bem quanto Amaral Neto e viajaram por todos os continentes. Uma vez me contaram de uma viagem que fizeram de fusca pelo interior da Bahia. O carro quebrou no meio do nada e passaram grande aperto, tendo que contar com a ajuda dos moradores de uma fazenda para comida e água. Viver é isso!

Ela tinha sido uma decoradora de interiores e designer de móveis para uma empresa chamada Laubisch Hirt durante toda sua vida profissional. Até algumas semanas antes de adoecer, ela ainda saía com sua bolsa embaixo do braço para visitar seus clientes mais antigos e dar dicas de decoração. Eu mesmo recebi dela dicas valiosas quando estava reformando minha casa. Foi ela quem decidiu qual luminária seria dependurada em cada cômodo, qual a melhor disposição dos móveis de forma a otimizar o espaço interno e me fez trocar toda a cerâmica que eu já havia comprado para o terraço. Estupidamente comprei cerâmica clara e ela me convenceu a trocar por algo mais sóbrio com um argumento simples e grande sutileza:
- Mande por isso no chão e terá que usar óculos de soldador para vir tomar banho de sol na varanda. Seu terraço vai ficar com cara de banheiro social. Você vai adorar.

Eles viveram uma vida de tranqüilidade e amor nesta mesma e única casa, decorada de forma humilde e mobiliada espartanamente. À exceção de dois guarda-roupas e uma cômoda da marca Laubish-Hirt que ficaram, todos os seus móveis eram cacarecos; algumas caixas de frutas serviam como mesinha de centro ou armário de cozinha. Galy nunca foi boa cozinheira. De fato, ela odiava a cozinha e todas as tarefas relacionadas com dona-de-casa. Só muito raramente entrou naquele cômodo da casa. O Luiz é que cozinhava e dava conta dos afazeres domésticos. Galy estava sempre muito ocupada com suas leituras. Ela adorava os clássicos russos, Gorki, Tchekhov, Tolstóy que lia no original. Até beirando 90 anos lia o que lhe caía nas mãos. Até meu pequeno Retrato em Branco e Preto ela leu e fez valentes comentários a respeito. Costurava sem óculos, o que me dava muita inveja, pois eu, aos quarenta em ponto precisei óculos de leitura, cujo grau vem crescendo a cada ano. Lenta e meticulosamente Luiz cortava cenouras e batatas, que seriam cozidas e misturadas à maionese. Um rosbife completaria a refeição que deveria durar uma semana inteira. Eles comiam a mesma comida por uma semana, só na seguinte ele se animava a cozinhar algo diferente. A bebida era sempre água tônica.

Tudo o que fizeram a vida toda foi cuidar um do outro, fazendo-lhe companhia, lendo poemas e os romances de Eça de Queiroz, em voz alta, um para o outro. Tudo isso para mim era tão impressionante que com o tempo eu me acerquei mais e mais do casal. Todas as outras atividades, como o trabalho, por exemplo, lhes pareciam extremamente frugais e dispensáveis. Trabalhavam o mínimo e não se preocuparam em ganhar mais dinheiro do que o suficiente para comer e viajar de vez em quando. Já velhinhos, usavam roupas que pareciam frangalhos, camisas puídas e vestidos com buracos aqui e ali, mas não se deram conta disso. Ao contrário, sempre alegres faziam planos de novas viagens e estavam de viagem marcada em uma excursão para Dezembro de 2004 quando Galy caiu doente e não puderam ir. Erike, um dedicado acompanhante que eu contratei para fazer companhia ao Luiz depois da morte da Galy me contou que eles faziam sexo até uns três anos antes, ou seja, ela tinha uns 87 e ele uns 90 anos.

A alegria de viver e vitalidade que ostentavam impressionavam a todos. Ambos tinham seus corpos bastante eretos. Havia muitas fotos deles na juventude praticando esportes, nadando, escalando montanhas, ele segurando halteres sobre a cabeça com os braços esticados, corpo todo em forma. Essas fotos, que eram centenas, eu guardei por muito tempo até que o peso de possuí-las se me tornou insuportável e eu as presenteei ao tal rapaz que lhe fez companhia. Erike produz camisetas e fez belos apliques com a cópia de algumas delas nas estampas que produz.

Mesmo velhinha Galy exibia seios grandes e empinados e jurava que jamais usou sutiã. Usava maquiagem e saltos altos até dentro de casa. Luiz saía de casa todas as manhãs para suas caminhadas pelo centro da cidade, sempre trazendo para ela frutas frescas e suas trouxinhas de maçã.

Uma manhã de sábado Galy gritou forte meu nome e me chamou lá embaixo. Cheguei à varanda e quando não vi o velho, pensei no pior. Vesti de qualquer jeito o primeiro calção que encontrei e desci ainda sem camisa. Para minha surpresa, Luiz abriu a porta sorrindo e me fez entrar. Aliviado, não recusei e desci as escadas já dentro de casa. Caminhei até os fundos e lá estava a mesa posta na varanda, debaixo de uma parreira de buganvile toda cacheada de flores vermelhas, e aquela vista linda do centro da cidade. Estavam bebendo algo que imaginei ser água gelada. Ela me mandou sentar e me ofereceu um copo, que aceitei. Em seguida veio de lá o Luiz com um copo cheio de gelo e uma garrafa de água tônica. Eles adoravam água tônica.
- Que bom, eu disse. Está tão quente... Vamos beber água tônica?
- Sim, with a splash of gin, ela completou com um sorriso e uma piscadela.
Fiquei surpreso que eles estivessem bebendo gin tônica às nove da manhã de um sábado, mas se nessa idade eles podem, por que eu não poderia? A resposta viria logo a seguir. Ela tomou nas mãos a garrafa de Gordon’s Dry Gin que estava malocada embaixo da mesa e virou no meu copo. Glup, glup, glup. Deixou verter até completar o volume. Era drink longo. Cocei a cabeça e resolvi entrar no jogo. Ficamos ali conversando e dando risada por mais de duas horas, só bebendo, sem petisco. Quando desci para atender a emergência, ainda não havia tomado café da manhã, portanto estava me virando no gin tônica de barriga vazia. Quando finalmente decidi subir por volta de onze e pouco tentei ficar de pé, mas me faltavam as pernas. Vacilei o andar e contei um passo para trás. Eles riram a debalde.
- Gin tônica não é para iniciantes, rapaz! Fica firme!, disse Luiz com voz forte.
- Se isso é água tônica com um splash of gin, não imagino o que vocês tomam como gin tônica, eu disse antes de subir para deitar-me.

Não posso falar de Galy sem enfatizar a alegria de viver que exalava. Uma vez chegou em casa furiosa por que foi visitar uma amiga de juventude no hospital. Ela chegou quando eu estava entrando em casa e me convidou para um café.
- Não acredito que a Genoveva está se entregando, Luiz. Você tinha que ver a cara dela. Chega a estar pálida lá deitava. Será que quer morrer?
- E quantos anos tem a Genoveva? eu quis saber.
- 86! Mas isso não lhe dá o direito de abrir mão assim-assim.
Preferi ficar bem calado nessa hora. De fato, dois dias depois veio a notícia de que Genoveva havia partido. Parece que tomou a decisão e se foi.

Segundo o casal, nunca houve uma briga entre eles. Em 1974, houve um pequeno atrito por causa de alguma coisa de que ambos se esqueceram, mas no calor da discussão ele teve a infelicidade de chamá-la de chata. Aquela palavra feriu de morte seu coração delicado. Ficou chateada por semanas e só voltou a falar com ele quando este escreveu um documento de próprio punho, datado, e assinou embaixo jurando por escrito que nunca mais a chamaria de chata. É apenas um bilhetinho informal, mas por que ele deu sua honra como garantia, tem peso de compromisso. Ela aceitou seu pedido de perdão e eles guardaram a notinha enquanto viveram. Aquela foi a única vez que ele se atreveu a ofendê-la. Guardo com imenso carinho também esta notinha.

Já velhinhos foram fazer uma excursão em Abrolhos. Viajavam sempre de ônibus com a desculpa de que se vê mais. Foram até alguma cidade no litoral baiano e de lá tomaram uma escuna que os levou até os atóis. Passaram rapidamente pela pousada para trocar de roupa e foram logo nadar nas piscinas encetadas no meio dos arrecifes. Naquela brincadeira toda Luiz não se deu conta de uma onda grande que veio de repente e o derrubou. Quando tornou a ficar de pé estava banguelo: a onda havia levado seu par de dentaduras. O salva-vidas percebeu que o velho estava em apuros e ofereceu ajuda, convocando toda a turma de excursionistas da terceira idade para ajudar na busca.
- Vamos todos agora mergulhar e tentar achar as dentaduras do senhor Luiz!
Luiz sabia bem que era tarefa se afigurava impossível, mas não perdeu a pose. Nem a piada.
- Muito bem. Prestem atenção todos: se alguém vir um badejo enorme com um sorriso suspeito, pode pegar que são as minhas dentaduras.
Resultado: passou seis dias comendo sopinha e banana, até o dia do retorno à terra.

Num determinando momento meu casamento não ia bem das pernas e a separação já era iminente. Algumas vezes Marcelo saía de casa à noite dizendo que ia dançar e só voltava ao amanhecer. Como nesse tempo eu ainda gostava dele, ficava muito triste quando isso acontecia. Uma noite cheguei à janela do escritório para vê-lo descer a rua deserta e não acendi as luzes, para não ser percebido. Fiquei assim olhando de soslaio aquela cena até que ouvi barulho de porta se abrindo logo embaixo de minha janela. Era o casal Luiz e Galy, super chiques: ela de costume cinza claro acetinado, bolsinha combinando e ele de terno preto. Onde estariam indo àquela hora? Já era quase meia noite, não era mais hora de jantar e eles estavam saindo de casa.
- Será que vão dançar?, pensei comigo.
Em dois minutos tomei a decisão acertada: também vou sair. Meu filho estava dormindo no quarto dele e a empregada, no dela. Eu podia sair.
- Nada de tristeza, pára de drama, faça-me o favor, disse para mim mesmo.
Rapidamente tratei de tomar um banho e fazer a barba e lá fui eu, meio a contragosto também curtir a noite. Agradeço aos dois até hoje pela força que me deram sem saber aquela noite.

Luiz Theberge Nóbrega nasceu em 26 de maio de 1912 em uma família abastada. O pai havia feito fortuna trabalhando como advogado em Manaus durante o ciclo da borracha. Naquele tempo ele ganhava tanto dinheiro que durante anos manteve casa em Lausanne, na Suiça, para onde ia com a esposa e os filhos. Ficavam seis meses lá e seis meses no Brasil.

Foi durante uma dessas viagens que Luiz nasceu nessa cidade européia e contava isso sorrindo, como a primeira de suas façanhas. Quando o plástico e outros tantos derivados do petróleo consolidaram seu lugar no mercado e a borracha gradualmente foi perdendo seu status de máquina da economia brasileira, seu pai resolveu voltar para o Rio de Janeiro. Poucos anos depois de seu retorno, ele aceitou o conselho de um amigo e investiu todo seu patrimônio em uma fazenda de café na região de Rezende, no sul fluminense.

Esse foi seu grande erro por que como não sabia nada das manhas da agricultura dessa rubiácea, em poucos anos perdeu tudo que tinha. Ficou pobre. Dessa experiência seu pai tirou um ensinamento que passou para os filhos: nunca ponha todos os seus ovos em uma única cesta. Falida, a família se viu obrigada a se mudar para um local então considerado longínquo e inóspito no Rio de Janeiro, a praia de Ipanema. Naquela época o chique era morar no centro da cidade ou até o Flamengo. Só ia buscar pousada naquelas paragens da zona sul as famílias menos abastadas.

Luiz e Galy nunca quiseram ter filhos. Por opção viveram exclusivamente um para o outro e rechaçaram todos que tentaram se interpor entre eles. Nas palavras da própria Galy, por duas vezes nos anos quarenta ela engravidou e “tivemos que agir rápido”. Nunca percebeu dentro de si o menor sentimento maternal e, para se manter coerente com suas idéias, fez dois abortos numa época em que ninguém falava sobre isso.

Um dia Luiz me chamou pedindo que eu descesse lá correndo. Prevendo o pior, pedi minha empregada que descesse comigo. No quarto do casal, escuro e abafado por janelas e pesadas cortinas de veludo jazia Galy em cima da cama. Abri portas e janelas e percebi que estava viva, porém respirando com muita dificuldade. A perna esquerda estava inchada e do pé merejava um líquido incolor. Perguntei o que era aquilo e ele me explicou que há duas semanas eles estavam indo para a zona sul de ônibus quando o motorista deu uma freada brusca, e como estavam de pé, Galy caiu arranhando profundamente o tornozelo esquerdo em um parafuso de um banco. Ela não quebrou nenhum osso, mas ofendida que estava pela sua queda, resolveu vir para casa e descansar. Apenas. Recusou médico, hospital, curativo e farmácia. Não quis tratamento algum e o proibiu de buscar ajuda. Até que, vendo o estado em que ela se encontrava, ele finalmente teve coragem de contrariá-la e veio me chamar.

Pedi então que a minha empregada vestisse nela outra roupa, pois aquela estava imunda e imediatamente a levei para o hospital. Como não podia andar, peguei-a no colo e subi as escadas e a coloquei no fusca. O ferimento não tratado havia aberto uma porta para infecção e a perna estava toda contaminada. Foi tratada com antibióticos fortes para o eczema que se alastrara pelos membros inferiores, mas já estava em septicemia. No estado de suspensão de lucidez, de repente só falava em alemão e as enfermeiras e médicos não podiam se comunicar com ela.

- Quando eu morrer, disse, quero que você me jogue no mar ou na floresta. Não quero ser enterrada junto daquela família de vespas do Luiz. Não deixe isso acontecer.
- Tá bom Galy. Mas pense na mão de obra que isso vai me dar. Além disso, posso ter problemas com a polícia se atender a seu pedido.

Rimos à beça com aquele papo absurdo em alemão no
meio de dezenas de outros pacientes alojados em camas contíguas na geral do hospital, que assistiam boquiabertos à nossa conversa.
Assim, passei muitas horas ao seu lado tentando oferecer conforto e ajudar de alguma maneira. Ficou apenas quatro dias no Sousa Aguiar e faleceu.
Depois que ela se foi, ele ficou muito mais próximo de nós do que havia estado nos últimos quatro anos. Passava a maior parte do dia espichado em uma espreguiçadeira ouvindo aquelas músicas tristes da Radio MEC. Em que estaria pensando? Convidado, vinha todos os dias se sentar na minha varanda e costumávamos conversar por longas horas. Tinha cadeira cativa sentado à minha direita na sala de jantar e adorava divertir meus convidados recitando Manoel Bandeira de cor e de pé, copo na mão.

Bebia o que todos estavam bebendo e não reclamava de nada. O convidado ideal. Luiz deixava meus amigos gays totalmente à vontade para fazerem suas piadas picantes e ria conosco às gargalhadas, sem o menor pudor, sem um traço de preconceito. Seu cabedal de histórias e fatos passados parecia não ter fim e eu os ouvia sempre com grande interesse e atenção. Sempre tomávamos vinho, que é para molhar a palavra, como ele sempre dizia. Ele sobreviveu ainda um ano a sua esposa e falava demais nela e de como tinha tido uma vida perfeita a seu lado, que sorte a vida tinha lhe concedido em encontrar a mulher perfeita.

Um dia fomos Luiz e eu à igreja Ortodoxa Russa de Santa Teresa levar de presente uns quadros que havia na parede de sua casa desde que a família imigrou da Estônia, há quase um século. Tratava-se de cinco quadros de santos da igreja ortodoxa, que ele sempre odiou. Disse que lutou durante anos a fio para retirá-los da parede. Tudo em vão. Venceu a maioria e os quadros ficaram. Lembro-me bem de um deles: era um quadro de fundo falso onde havia um Cristo de rosto contorcido de dor, entalhado em metal, provavelmente prata, envolto em vasta cabeleira humana. Realmente era um horror, mas certamente havia valor histórico e econômico naquela peça rara. O pároco, vendo os quadros, deu um chilique e mandou retirá-los imediatamente de sobre a mesa de jacarandá com medo dos cupins.
- Tirem já esses quadros de cima da mesa. Isso tudo é lixo. Não quero que os cupins destruam o patrimônio da igreja.

Embora tivesse odiado os quadros por mais de sessenta anos, Luiz ficou revoltado com a falta de sensibilidade do padre. Meteu os quadros de volta na sacola de plástico e descemos de volta a rua em silêncio. De repente ele falou:
- O padre me deu uma ótima idéia. Ele disse que é lixo. Tem razão. É lixo mesmo e é para lá que eles vão. Vou jogar tudo no lixo hoje mesmo, disse com raiva.
- Luiz, não quero me meter, mas esses quadros devem valer uma grana. Não quer tentar vender e passar eles nos cobres?
-Não preciso de dinheiro. Agora eu quero é jogar no lixo. Espera comigo o caminhão?
- Mas Luiz, pense um pouco mais, tentei argumentar.
- Angelo, você não pode me negar o prazer de jogar no lixo esses quadros horrorosos que eu odiei a vida toda. Hoje eles vão.
Não tive escolha. Às cinco horas parou o caminhão da Comlurb na porta de casa, Luiz se aproximou quando a pá estava no alto e jogou lá dentro as duas sacolas contendo cinco quadros de santos da igreja ortodoxa russa do século xix que poderiam valer uma fortuna. Quando a pá desceu, moeu e engoliu os quadros eu baixei a cabeça, em respeito. Naquele momento me lembrei de uma cena do filme Titanic em que a personagem de Rose, já velhinha se debruça no beiral do navio e atira ao mar uma pedra preciosa que para ela não tinha preço. Aqui o valor simbólico era ao contrário, mas os opostos se equivalem. Eu tinha que respeitar o desejo dele, e assim o fiz.
Antes de entrarmos em casa ele disse:
- A casa é sua.
- Como?
- Você fica com a casa quando eu morrer.
- Luiz, depois a gente fala sobre isso, você está nervoso, respondi depois de alguns instantes.
Na semana seguinte ele tornou a falar no assunto e conversamos mais abertamente acerca de sua oferta.
- Quando eu morrer, disse, peço apenas que não me deixe apodrecer sozinho aqui, pode pegar a chave e ocupar minha casa.
- Fique tranqüilo, isso não vai acontecer. Não vou deixar você apodrecer aqui. Eu moro em cima. O cheiro ficaria insuportável depois de uma semana.
- Falo sério sobre a casa. Galy e eu pensamos em deixar para a Igreja em que nos casamos em 1940, mas aquele padre me dá nojo. Nunca gostei dele. Padres me dão nojo. Será que eles próprios acreditam nas mentiras que falam? Quando meu pai morreu, mamãe chamou um padre para encomendar o corpo. Ele trouxe um auxiliar não sei para que. Quando entrou, parou junto à porta e cochichou ao seu ajudante: Já pagaram? Já pagaram? Eu ouvi aquilo e fiquei revoltado. Queria botar todo mundo porta fora, mas minha mãe não deixou.
- Já que quer me dar a casa, então vamos ao cartório fazer tudo direitinho. Vamos fazer um testamento, tudo nos conformes. Sua família pode aparecer de repente e me tirar de lá.
-Imagine! Isso não será necessário. Dos meus seis irmãos e irmãs, tenho apenas uma irmã viva que mora em São Paulo. Ela está muito bem de vida e jamais se importaria com essa casa velha.
- Ledo engano. No dia seguinte à sua morte eles aparecem do nada feito urubus e me põem na rua.
Ele riu e marcamos então a data de irmos ao cartório.

Poucos dias antes de seu aniversario de 95 anos ele sofreu uma queda na varanda e quebrou o quadril. Aparentemente ele estava cochilando sentado numa cadeira de plástico quando esta virou e ele caiu. Levei-o às pressas para o hospital e foi constatada a fratura. Não puderam operar imediatamente por que ele tinha pressão alta e os médios esperavam que ela se estabilizasse para então submetê-lo ao procedimento. O risco cirúrgico seria alto demais.
Uma semana depois ele expirou no Hospital Miguel Couto.

Quando morreu, Luiz já tinha deixado claro que estava mais do que pronto para ir. Como ele me disse, ele passou toda a sua vida do jeito que ele queria, escolheu seus empregos, passou 65 anos com a mulher que ele amava e nunca teve que fazer qualquer coisa de que ele não gostasse. Ele teve vários empregos na vida, disse não a ótimas propostas de trabalho, mas passou a maior parte de seus anos mais produtivos como um agente imobiliário. A vida toda escolheu empregos que não exigissem dele dedicação exclusiva ou tempo integral, pois queria estar livre para viajar quando quer que lhe desse na telha. Como ele sempre dizia, sua vida tinha sido uma festa constante.

Entretanto, depois Galy morreu, ele sentiu que a festa tinha acabado. Uma noite, enquanto saboreávamos uma garrafa de vinho na varanda aqui de casa, ele me disse sorrindo, embora seriamente, que ele sentiu que a vida tinha sido um grande baile. Mas que já tinha acabado. A pista estava vazia, todo mundo já tinha ido embora, as cadeiras haviam sido colocadas de cabeça para baixo sobre as mesas e a turma da limpeza estava ocupada com suas vassouras e baldes varrendo e limpando o chão para a próxima turma que viria curtir outro baile. Eu nunca vi este homem amargo ou ressentido de qualquer coisa.
- Todos os meus amigos estão mortos, meus pais e irmãos estão mortos, minha esposa está morta. E eu estou pronto para ir também, disse ele sem sinal de amargura.
Estou orgulhoso e grato à vida por ter sido escolhido como o depositário de todas essas histórias.

Em nenhum momento sua família esteve por perto quando precisamos dela. Eu ligava para São Paulo e Brasília, onde ele tinha parentes distantes e comunicava o estado de saúde de ambos. Avisados, ninguém veio aos enterros. Contrariando pela última vez o desejo de Galy, aquela história absurda de se unir à natureza na mata ou mar, Luiz, Terezinha, minha empregada e eu a sepultamos no São João Batista mesmo. Luiz concordou em não colocar seu corpo na sepultura de sua família. Um ano depois, Terezinha e eu fomos os únicos presentes ao enterro do Luiz, no mesmo cemitério.
Um mês exato após seu falecimento recebi a visita de um oficial de justiça com uma ação judicial contra mim impetrada por sua sobrinha, usando o nome de sua mãe viva, contestando a validade do testamento, me acusando de exercer coação irresistível contra vulnerável e requerendo para si a casa que o Luiz me deixou. Há quatro anos esse processo corre no tribunal do Rio de Janeiro e ainda não há sentença.